Um dos meus comediantes favoritos, o finado Norm MacDonald, tinha uma piada simples e genial sobre o caso de Bill Cosby: uma das maiores celebridades americanas que passou a vida se posicionando como defensor dos valores da família, mas foi descoberto como alguém que drogava e estuprava mulheres por décadas. Norm dizia que as pessoas falavam de Cosby e mencionavam que o pior de tudo era a hipocrisia dele de se dizer do bem esse tempo todo; mas que ele tinha bastante certeza de que o pior não era a hipocrisia… e sim a parte dos estupros.

Hipocrisia, como a maioria de nós entendemos, é dizer uma coisa e fazer outra. E com certeza é uma característica irritante do ser humano. Podemos ser hipócritas de forma consciente ou inconsciente, ninguém é imune, nem eu nem você. Eu evito ser hipócrita, me acho um babaca quando ajo dessa forma, mas… o mundo moderno anda meio exagerado com isso, não?

A gente pode modular o tamanho de cada problema. Existem coisas bem piores do que inconsistência entre o que se diz e o que se faz, o ser humano é falível e o inconsciente pesa muito nas nossas decisões do cotidiano. Então, hipocrisia por si só é um dos menores problemas.

Quando batemos no Lula, por exemplo, a hipocrisia do discurso progressista com as decisões mais conservadoras não é o cerne da questão, e sim coisas como colocar o advogado pessoal como ministro do STF, passar pano para o Putin, entregar cargos valiosos para os corruptos de sempre… se as ações realizadas de forma hipócrita fossem menos impactantes, a crítica teria um peso menor.

Digo isso porque na era do cancelamento de rede social, colocou-se peso demais no simples conceito de hipocrisia, como se ele fosse o verdadeiro crime. O que a pessoa está fazendo ao ser hipócrita? Ações deveriam valer mais do que palavras. Se a ação é danosa para a sociedade, não é uma inconsistência de discurso que vai mudar muita coisa. É a ação que precisa ser combatida, não palavras ao vento.

Fica essa vigilância sobre a fala do outro, esperando a pessoa escorregar e mostrar alguma contradição. Primeiro que contradição não é necessariamente uma coisa ruim. Veja bem, errar é essencial para o processo de aprendizado: muitas vezes nossa mente só conecta pontos óbvios quando percebemos algo estranho. O cérebro é uma máquina de otimização, qualquer coisa que ele puder deixar mais fácil ele deixa. E isso significa que raramente ele sai do seu caminho para revisar ideias.

Por isso ficamos presos com crenças estúpidas por décadas até finalmente sermos confrontados: foi o choque necessário para a mente fazer o esforço de corrigir aquela ideia imbecil. É chato se pegar numa contradição, eu fico azedo quando descubro que estava errado sobre alguma coisa, mas a experiência de vida foi diminuindo o incômodo: por um lado você se sente uma anta por estar errado, por outro a possibilidade de correção se apresenta para você.

Não é papo de LinkedIn, não vou te dizer para celebrar a contradição e o erro; celebre ganhar dinheiro, os primeiros passos do seu filho, encontrar uma pessoa bacana… eu só estou dizendo que se pegar sendo hipócrita é uma possibilidade de evolução. Pode ser usado para melhorar sua vida. Hipocrisia não é esse crime todo que as redes sociais te fazem acreditar, é só uma desconexão entre palavras e ações que todo mundo faz, e francamente… na maioria dos casos não causa nenhum problema sério.

Alguns hipócritas não queriam fazer mal para ninguém. Muitos hipócritas acabam nem fazendo mal para ninguém.

“Ah, a pessoa se diz X, mas fez Y!” – ok, não é ideal, e eu acho até um ato de caridade apontar essas coisas quando você percebe. O mundo tende a ficar melhor se as pessoas ficarem menos confusas, mas se você tem expectativa de viver num mundo sem hipocrisia, nem mesmo a sua, você está mirando numa impossibilidade. Como eu disse antes, hipocrisia pode surgir de erros de percepção, de não se conhecer bem, de ser surpreendido por algo que nunca pensou antes, em resumo: ela pode vir da mudança. E mudança é inevitável.

E nesse viés, eu quero falar sobre o que não é hipocrisia: mudar de ideia. Não tem nada a ver com ser hipócrita a mudança natural de atitudes e pensamentos de uma pessoa com o passar da vida. Eu digo isso até em casos de gente que virou lacradora recentemente. Sagrado direito da pessoa de mudar de ideia e começar a achar horrível o que fazia no passado. Mesmo que você não goste do caminho que a pessoa seguiu, é muito importante que a possibilidade de mudar continue livre para todos nós. Discorde à vontade, mas não seja da patrulha da consistência infinita.

Dizer uma coisa dez anos atrás e dizer outra agora não é hipocrisia. Não faz o menor sentido julgar uma pessoa dessa forma. Eu até acho que a pessoa tem o direito de mudar de ideia de um dia para o outro, ou mesmo do começo ao fim de uma conversa. Mudança nunca é sinônimo de hipocrisia. A hipocrisia exige que você tenha uma desconexão entre o que diz que faz e o que realmente faz. Se você mudar de ideia sobre um tema e começar a agir de acordo com a nova ideia, zero hipocrisia.

A exigência de uma linha de pensamento fossilizada é ridícula e contraproducente para a sociedade. Estamos entre as primeiras gerações que vão ter seus pensamentos e atitudes salvas na nuvem, deletadas apenas se estiverem consumindo espaço demais no futuro. Faz parte do espírito do nosso tempo lidar com a mudança e a comparação entre o que éramos e o que somos agora. É mais complicado se reinventar se você deixou décadas de opiniões registradas numa rede social.

E uma coisa que não deveríamos perder é essa capacidade. Eu posso virar um ultralacrador daqui há 10 anos se eu quiser. Ou posso virar um conservador cristão. Nenhum dos prospectos me atrai agora, mas quem vai tomar a decisão é o Somir de 2033. Vai ser a vida dele, não a minha. E não preciso ter medo de ser hipócrita em nome dele. Isso é importante porque a minha sensação agora é que muita gente deixa de falar o que pensa porque sente esse clima de repressão contra hipocrisia passada, presente ou futura.

É uma tara de punir o outro pelo que pensa que vira um estado de repressão ideológica. É uma forma de pessoas que já detém o poder de nos manter distraídos atirando uns nos outros para não perceber as ações terríveis que eles fazem. Apontar hipocrisia é saudável, patrulhar hipocrisia é ferramenta de controle.

Pode ser hipócrita, não pode drogar e estuprar pessoas. Deveria ser simples assim.

Para me chamar de hipócrita, para dizer que dez anos atrás eu disse algo diferente, ou mesmo para dizer que vai chorar se eu virar lacrador ou conservador (tem gente que me acusa dos dois hoje…): somir@desfavor.com