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Não tem dono?

Não tem dono?

| Desfavor | | 30 comentários em Não tem dono?

O suspeito de estuprar uma mulher de 22 anos após show do cantor Thiaguinho foi preso na noite do último domingo (30/7), em Belo Horizonte, em Minas Gerais. A vítima teria sofrido a violência sexual na volta do show, após compartilhar a viagem para casa com o irmão e ser deixada na calçada de casa pelo motorista de aplicativo. LINK


Vivemos num país de animais. Desfavor da semana.

SALLY

Uma moça foi a um show de pagode e bebeu demais. Na hora de ir embora, de madrugada, um amigo pediu um carro de aplicativo, colocou ela lá dentro e compartilhou a rota com o irmão da moça. A moça chegou desacordada no ao endereço da sua casa, o motorista tocou a campainha insistentemente, mas ninguém abriu. Então, ele deixou a moça na porta de casa e foi embora. Um mendigo que por ali passava, pegou a moça desacordada, a levou para outro lugar e a estuprou.

Alguém tem que levar a culpa. Alguém tem que ser responsabilizado. Ao que tudo indica, a corda vai arrebentar para o lado do motorista, o que nos leva à pergunta: as não têm noção do país em que vivem não? As pessoas acham que vivem na Suíça? Que todo brasileiro tem a mesma consciência, educação, respeito e civilidade que a pessoa aprendeu?

Óbvio que fossemos nós a dirigir um táxi jamais deixaríamos ninguém desacordado na porta de casa, mas isso… somos nós. Somir, eu e você. E nós somos a exceção. Quando a gente faz a coluna “Ei, Você” não é para espezinhar ou humilhar (apesar de que, às vezes acontece). Quando a gente sempre reforça o que é o brasileiro médio não é para espezinha ou humilhar. É para relembrar ao leitor que o Brasil não é a sua bolha e tem muita barbárie por aí.

A realidade é: não é seguro se entorpecer com o que quer que seja até ficar inconsciente na rua. Não é seguro se entorpecer com o que quer que seja e ficar inconsciente em um táxi. Não é seguro se colocar voluntariamente em nenhuma situação ou condição que te deixe vulnerável, principalmente se você for mulher, estiver sozinha e for noite.

É assim que a gente gostaria que fosse? Não. Todo mundo gostaria que o Brasil fosse um país seguro. Mas, as coisas são como elas são, não como a gente gostaria que elas fossem, então, não adianta se comportar da forma que gostaríamos que fosse. É preciso se comportar de acordo com a realidade. E não é esperado que uma pessoa adulta, com 22 anos de idade, não saiba disso.

“Mas Sally, você está culpando a vítima”. Não. A pessoa que a estuprou tem que ser processada, condenada e presa. Não estamos falando de culpa e sim de responsabilidade. Estamos jogando luz no erro de julgamento de uma pessoa para que o leitor observe e aprenda, sem nunca ter que passar por nada parecido. O mundo lá fora não é sua bolha, nele você não vai encontrar pessoas como você, com os seus valores, com a sua ética, com a sua humanidade. Porte-se de acordo, para o seu próprio bem.

“Quer dizer que eu tenho que ficar com medo de sair na rua?”. Não, Pessoa Quer Dizer, não quer dizer isso não. O que estamos pedindo é consciência, não medo. Adotar cuidados mínimos, não de forma apavorada, mas sim consciente de que consequências ruins podem surgir se estes cuidados não forem adotados. É chato? É. É injusto? Pra caralho. É limtador? Sim. Mas é melhor do acabar estuprada em uma vala, não é mesmo?

Vamos analisar a cadeia de eventos e repensar se a grande culpa é mesmo do taxista?

Amigos da moça contaram à polícia que a viram bebendo muito. Isso leva a crer que ela voluntariamente se alcoolizou. Se alguém dopou essa moça de alguma forma, jogando algo na sua bebida, então podem esquecer todo meu discurso sobre cuidados, ela não teve qualquer responsabilidade pelo que aconteceu. Mas se ela escolheu beber até cair no meio da rua, de madrugada, ela se colocou em risco. Não que isso dê o direito de fazer o que fizeram, mas era algo que poderia ser evitado. Era algo que ela poderia evitar. E quando a gente pode evitar um estupro, meus amigos, devemos fazer o que está ao nosso alcance.

Depois do show, a moça visivelmente bêbada foi colocada em táxi “por um amigo”. Desculpa, mas amigo não é. Que porcaria de amigo coloca uma mulher muito bêbada, quase inconsciente, em um carro com um estranho e volta para casa com a consciência tranquila? Custava acompanhar? Custava ligar para alguém ir buscar a moça? Custava levar ela para a sua casa? Custava fazer qualquer outra coisa? Nem que fosse deixar em um hospital, qualquer coisa seria melhor do que isso.

Curioso que ninguém bateu nesse “amigo”, bateram no taxista. E também no irmão da moça, por não atender a porta quando o taxista tocou o interfone e telefonou. Gente, alguém é obrigado a ficar acordado às 3 da manhã para receber irmã inconsciente de tanta bebida? Não é uma criança, é uma mulher de 22 anos. Qual é a obrigação do irmão de estar acordado esperando por ela? Adultos de 22 anos são responsáveis por suas escolhas e por tudo que era previsível e evitável que decorre delas.

Sobre o taxista, o que ele fez não foi legal, mas daí a ser crime? Haja paciência… Ele tirou a moça do carro, tocou interfone, ligou para a casa da moça, tocou interfone novamente… Como eu disse, nós não faríamos isso, mas as pessoas têm diferentes graus de consciência, não dá para esperar comportamento exemplar, compassivo, ético e preocupado de todo mundo. Justamente é esse o risco de se colocar nas mãos de estranhos: você nunca sabe que tratamento vai receber.

Essa mentalidade de que o taxista é um escroto por agir assim é simplória demais. Vai saber como essa pessoa foi educada. Vai saber qual era o grau de cuidado que os pais tinham com ele. Vai saber o que ele entende por cuidado… O que para você é muito óbvio, para outra pessoa pode ser desconhecido. O brasileiro médio, no geral, é muito brutalizado, não dá para esperar o nosso padrão de cuidado como regra.

“Mas ele não deveria deixar ela no meio da rua”. Eu concordo, porém, se a gente entrar no “mas”, dá para encontrar muito culpado. Por mais que vocês estejam acostumados, não é normal viver em um país no qual uma mulher desacordada na rua tem grandes chances de ser estuprada. O normal é que as pessoas socorram, não que abusem. O normal é que o Estado mantenha uma segurança pública nas ruas que proteja a todos, inclusive aos desacordados. A real é: tá tudo errado, não adianta canalizar toda sua revolta para o taxista e decretar ele o culpado oficial.

Então, a única saída é: cuide-se você mesmo, para não depender do cuidado de uma pessoa aleatória, de um desconhecido, que pode nem saber cuidar direito. Se você teve um lar, uma família, uma criação onde te foi ensinado a tratar os outros com cuidado, bom para você. A maior parte não teve e, por consequência, não vai saber cuidar. Por isso, cuide você de você mesmo como você acha que merece, pois se deixar na mão de estranhos, o cuidado pode não ser tão bom.

Vi muita gente defendendo que mulher tomar maiores cuidados é se render a uma sociedade hostil, encorajando mulheres para que elas não adotem nenhuma restrição por preocupação. Quanta bobagem! A sociedade não muda por alguém resolver peitar e se colocar em risco. A sociedade muda com educação, com exemplo e com consciência. Peitar e se colocar em risco só causa danos a quem o faz, não melhora em nada o mundo.

“Mas eu não quero sofrer restrições, não acho justo”. Beleza, e ser estuprada, você quer? Pois basicamente são essas as duas opções. Pensa aí, reflete com calma o que vai te fazer menos mal e escolhe.

Não seja essa pessoa que diz “é um absurdo que eu tenha que me privar disso, vou fazer, pois não é certo ter que me privar disso”. Não, não é certo, nem justo, nem correto. Mas essa conta, será você a pagar, e não vai ser barata.

Não faça isso com você. Não negue a realidade. Porte-se de acordo com o entorno, o brasileiro médio não é sua família, nem seus amigos, nem seus colegas de trabalho, o brasileiro médio é bicho, é o pessoal do “Ei, Você”. Você se colocaria desacordado nas mãos das pessoas do “Ei, Você”?

Quem poderia ter evitado isso tudo, em primeira instância, era mulher, que deveria ter discernimento para cuidar de si mesma e, em segunda instância, o amigo, que tinha um dever muito maior de zelar por ela do que um desconhecido. Mas fica mais fácil bater no taxista, né?

Quando a moça bebe até cair e acha que não vai acontecer nada, todo mundo entende. Quando o amigo dela a coloca inconsciente em um táxi com um estranho e acha que não vai acontecer nada, todo mundo entende. Mas quando o taxista a deixa inconsciente na porta de casa e acha que não vai acontecer nada é “nooooossa, que absurdo, que monstro”. Francamente, não tá coerente isso não.

A maior culpa é do filho da puta que estuprou a mulher. Porém a maior responsabilidade pelo evento ter se desdobrado dessa forma é da mulher e do seu amigo. Já deu desse papo não poder atribuir responsabilidade a alguém só pelo fato da pessoa ter se ferrado.

Para dizer que para começo de conversa tá errado sair de casa para ir a um show do Thiaguinho, para perguntar que porra de país é esse onde um homem carrega uma mulher desacordada pelas ruas sem o menor problema ou ainda para dizer que se não tratar mulher como criança é machismo: sally@desfavor.com

SOMIR

Como ainda paira sobre o caso a possibilidade da mulher ter sido dopada durante o show, eu vou manter fora do meu texto a imensa putez com adultos que ficam bêbados ao ponto de perder a consciência e se colocam em situações de risco. Evidente que ninguém merece ser estuprado, evidente que eu quero viver num mundo onde você pode deixar uma mulher desacordada na rua e não acontecer nada de ruim com ela, mas a sociedade tem uma leniência absurda com quem escolhe se embriagar nesse nível.

E eu queria que o foco deste texto fosse só isso: a necessidade de educar as pessoas sobre o perigo que é se intoxicar nesse nível para se divertir e como isso é sinal que algo está muito errado com a saúde mental do brasileiro. Mas no país dos selvagens, o buraco é bem mais embaixo. É uma disfuncionalidade que toma conta da sociedade, brutalizando o cidadão de tal forma que parece que não tem solução.

E é essa mentalidade de “não podemos melhorar de dentro para fora” que faz com que absurdos como tratar a vítima como criança e o motorista de aplicativo como uma espécie de cúmplice do estupro se forma. O brasileiro acaba achando que sempre faltou uma lei, uma regra externa para controlar os danos dos seus comportamentos.

Mas o Estado só vai até certo ponto. Quase todos os elementos desse caso não podem ser resolvidos com leis e punição, tirando, é claro, o estuprador. Existe um criminoso óbvio e uma vítima óbvia no caso, e está tudo relacionado ao momento no qual aquele homem leva a mulher para um lugar afastado e a estupra. Isso tem lógica dentro do funcionamento das leis. Que o criminoso seja julgado e punido de acordo.

Agora, todos os fatores contribuintes para a situação não fazem parte das regras legais de funcionamento da sociedade, e nem poderiam fazer. A mulher pode ter se embriagado até ficar naquele estado por conta própria, e isso, gostemos ou não, é parte das liberdades pessoais de um estado democrático de direito. O motorista pode ter escolhido se livrar de uma pessoa que não estava cumprindo seu “contrato” ao não sair do carro, e gostemos ou não, não deveria fazer parte de nenhuma lei se responsabilizar pelo que outros adultos fazem se você não tem nenhuma contribuição para isso.

Não é punir o motorista do app que vai resolver qualquer um desses problemas, mesmo se for uma lei, é uma lei que não faz sentido para o brasileiro médio. Eu imagino que se eu fosse o motorista, deixaria essa mulher num pronto-socorro justamente por temer o que aconteceria com ela caso ficasse abandonada na rua. Mesmo potencialmente puto por a pessoa ter desmaiado de bêbada no meu carro. Eu sou do time que achou o cara no mínimo um imbecil por ter abandonado a moça, mas não sou do time que acha que deveria ser obrigação legal dele cuidar dela.

As pessoas continuam entendendo que ser criminoso e ser babaca são coisas diferentes. Não tem como criar leis para evitar que as pessoas façam coisas irresponsáveis, estúpidas ou egoístas. Se a moça não tivesse sido estuprada e só tivesse acordado na calçada no dia seguinte, não seria nem notícia. Aliás, eu aposto que se não tivesse a gravação do homem levando-a embora, mesmo que tivesse sido estuprada, não teria virado notícia.

Pessoas fazem essas coisas o tempo todo, nem sempre com consequências tão terríveis e bem registradas por vídeo. O cidadão médio mal sabe o que é crime e o que não é, acha que pode processar os outros por qualquer motivo aleatório, todo dia tem várias pesquisas bizarras de pessoas caindo no texto sobre Lesão Corporal da Sally. Então não faz sentido achar que um Estado com mais leis regulando comportamentos vai mudar muita coisa.

Se você for analisar o caso de forma fria, é uma sequência de pessoas não pensando muito bem nas consequências de seus atos. Até porque no dia a dia elas devem fazer coisas tão irresponsáveis quanto, mas não sofrem consequências sérias. Mas aí vira notícia, muita gente se revolta, pede mais canetadas aleatórias dos políticos… e esquecem tudo dois dias depois.

Tempo suficiente para mais sequências de irresponsabilidades se acumularem em outra notícia terrível. Claramente não está funcionando o processo de pedir punição legal para quem erra quando não temos nenhuma forma de educação para evitar esses erros. Essas situações vão continuar se repetindo, com ou sem histeria punitiva. Muitos dos lugares mais violentos do mundo tem as punições mais violentas para o crime também.

E não ajuda nada essa distorção da ideia de “não culpar a vítima” que transforma mulheres em crianças. No caso da moça ter ficado bêbada por conta própria, ela teve um comportamento que nenhuma lei do mundo pode evitar as consequências. Já existem leis contra o estupro. O criminoso não fez isso porque achava que não era crime. Nunca se coloque num estado de vulnerabilidade desse tipo, ou no máximo só faça isso perto de pessoas que você conheça e confie. Repito: nunca vai existir uma lei que impeça um crime de acontecer. Não é assim que nada funciona.

Sua segurança pode ser terceirizada até certo ponto. E é muito importante perceber que nosso acordo social não diz que adultos são obrigados a cuidar de outros adultos como se fossem seus filhos. Qualquer lei que você quiser criar para forçar esse tipo de mentalidade vai dar errado, porque não é assim que as pessoas intuem o funcionamento do mundo. O Estado não inventou regras de convivência, ele adaptou bom-senso milenar sobre o melhor equilíbrio entre segurança e liberdade. Você ainda está por conta própria na vida real.

Tem coisas que só mudam se as pessoas forem educadas e incentivadas a pensar mais no que fazem. Criar vilões onde eles não existem atrapalha muito mais do que ajuda. Você tem que se cuidar, porque vive num país onde as pessoas não entendem conceitos básicos de civilidade, e nos países onde isso existe, não foram leis e histeria que criaram o ambiente.

Para dizer que ninguém gasta Boa Noite Cinderela em show de pagode, para dizer que vivemos numa sociedade, ou mesmo para dizer que se deixasse ela numa delegacia corria o risco de ser preso (não duvido): somir@desfavor.com


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