Skip to main content
Morar com os pais.

Morar com os pais.

| Sally | | 30 comentários em Morar com os pais.

Vamos falar sobre um assunto sensível? Morar com os pais.

Convencionou-se estabelecer que morar com os pais é sinônimo de fracasso, mas, será que é mesmo? Você já parou para pensar de onde vem essa “regra” socialmente repetida sem qualquer reflexão?

Em outras culturas, como a americana, da qual o brasileiro bebe a baldadas, morar com os pais depois da idade adulta tende a ser visto como sinônimo de fracasso ou disfuncionalidade. Mas existe um contexto muito diferente da realidade brasileira.

No modelo social deles, com 18 anos os adolescentes saem de casa para fazer faculdade e lá o sistema educacional não se baseia em domicílio, a melhor faculdade para o que você quer ou a faculdade que vai te aceitar quase nunca ficam perto de casa. Então, quem quer cursar faculdade fatalmente sai da casa dos pais.

Ir para a faculdade é um rito de passagem nos EUA. Algo para o qual as famílias se preparam por toda a vida. Quando a criança ainda é um bebê os pais já começam a juntar dinheiro pensando nesse momento. Além disso, existe uma infraestrutura que vai desde dormitórios até trabalhos temporários para acolher os jovens universitários que chegam, de modo a que eles possam se sustentar longe dos pais.

Então, nos EUA, quem continua com os pais não conseguiu ser aprovado em nenhuma universidade ou não quer estudar – e ambos os casos são vistos com demérito, uma vez que lá você tem que fazer um enorme esforço para não ser aprovado em lugar nenhum.

Não dá para pegar o mesmo modelo e aplicar no Brasil, seria como tentar encaixar um quadrado no buraco para um círculo. No Brasil, muitas vezes quem já está formado e inserido no mercado de trabalho não consegue arcar com os custos de vida de morar sozinho.

Nos EUA, qualquer trabalho é digno e minimamente remunerado para a pessoa sobreviver com dignidade. No Brasil, tem advogado ganhando 2000 reais. Muito emprego de meio expediente paga mais nos EUA do que o salário de um diplomado no Brasil.

Mesmo em outros países sem essa cultura de sair de casa para a universidade, morar sozinho pode ser muito mais fácil. Em países estruturados, onde os serviços públicos funcionam e a pessoa não tem que pagar nada além dos impostos, aluguel e comida, o esforço acaba sendo menor.

O Brasil é um país ridiculamente caro se você quer algum conforto ou segurança. Muitas vezes as pessoas acabam pagando triplamente por um serviço: sofrem desconto no salário para a saúde pública, pagam um plano de saúde particular pois não querem morrer na fila de espera de hospital público e, quando a coisa aperta e precisam de um bom especialista ou atendimento rápido, acabam pagando uma consulta particular. É bizarro. Não tem salário que aguente isso.

Além de tudo isso, a estrutura social mudou. A regra não é mais casar com 18 anos e ir morar com o marido. Antigamente, era um sinal de problema ou disfuncionalidade quando a pessoa relutava em casar jovem e sair da casa dos pais. Hoje existem outras prioridades.

Vamos combinar que é muito mais fácil sair da casa dos pais em pares, casando, pois as contas da casa serão divididas. Se as pessoas estão demorando mais a casar, isso significa que terão que arcar sozinhas com todas as despesas e, muitas vezes essas despesas têm acréscimos indecentemente exorbitantes, como é o caso de condomínio, que muitas vezes sobrepassa o valor do aluguel.

A quantidade de despesas dos dias atuais é absurdamente maior do que nos tempos em que nossos pais ou avós casaram. Antigamente, com um fogão e uma geladeira as pessoas se viraram. Hoje é preciso mais, e nem me refiro a nenhum luxo. É preciso, por exemplo, pagar a conta do celular e ter internet em casa.

Tempos diferentes, sociedades diferentes, costumes diferentes, custo de vida diferentes e remuneração diferentes. No Brasil é perfeitamente possível ser capaz, competente, estudioso, trabalhador e, ainda assim, não conseguir morar sozinho tão cedo quanto se gostaria. E é uma bosta que isso seja visto como um fracasso, pois faz com que a pessoa se sinta triste, desmotivada e com baixa autoestima.

Vejo muita gente tripudiando de quem mora com os pais, mas, quando você vai olhar de perto para essas pessoas tem alguém (um familiar, um cônjuge, uma herança) bancando boa parte do seu custo de vida. Morar sozinho para papai bancar plano de saúde, colégio dos filhos ou aluguel não é morar sozinho, é morar financiado pelo pai. Morar sozinho para que a mamãe te ajude com as suas obrigações não é morar sozinho, é codependência à distância. Então, antes de apontar o dedo e desmerecer quem mora com os pais, as pessoas deveriam olhar um pouco para suas vidas.

E, veja bem, nada contra, queria eu ter pais me financiando, o ponto é: se você não tem sua independência financeira, não faz sentido criticar quem mora com os pais. Ao menos quem mora com os pais não está se fazendo passar por algo que não é.

Depois desta breve introdução objetiva, vamos para a parte principal do texto, a subjetiva: quem disse que é errado querer morar com os pais depois de adulto? De onde saiu essa “verdade”?

Obviamente se é uma situação desconfortável para a pessoa, se ela reclama, se ela está infeliz, não faz sentido continuar debaixo do mesmo teto. Mas, se funciona, se dá certo, se todos os envolvidos estão felizes, onde está escrito que é demérito morar com os pais? Repetir uma premissa milhões de vezes não a torna verdadeira, mas pode fazer com que muita gente acredite que ela é verdadeira.

Acho mais saudável morar com os pais mantendo uma relação de respeito e boa convivência do que se meter em um casamento problemático com uma pessoa sem saúde mental só para sair da casa dos pais (e vejo isso acontecer bastante).

É preocupante as coisas que as pessoas fazem para sair da casa dos pais: desde se juntar com homem abusador/agressor até se endividar entrando em um buraco financeiro quase que irreversível. Em algum momento, com base em critérios que passam longe da realidade do Brasil, alguém determinou que morar com os pais é humilhante e todo mundo abraçou essa teoria sem questionar. Que tal parar para questionar?

É possível morar com os pais e manter sua privacidade, é possível morar com os pais e manter um ambiente de respeito e ajuda mútua, é possível morar com os pais mesmo tendo condições financeiras para não mais morar com os pais, por opção, sem que, para isso, exista algo de errado com a pessoa.

Tudo é negociável, adaptável, conversável. Existem infinitas possibilidades. Se nenhuma delas te atender, perfeito, morar sozinho é uma opção válida. O que não pode é se forçar a sair da casa dos pais para uma situação muito ruim só porque “tem que” sair da casa dos pais se não é um perdedor.

Sim, existem situações em que morar com os pais é uma derrota: quando há conflito, atrito, quando os envolvidos estão infelizes, quando há incompatibilidades irreconciliáveis ou problemas de tal tamanho que a convivência se torna um sofrimento. Continuar nessa situação é uma derrota, mas não por morar com os pais e sim por morar com pessoas que te fazem mal.

O simples fato de morar com os pais não é uma derrota. E está na hora de parar de ver como uma derrota. É apenas uma crença, sem qualquer embasamento, que se convencionou abraçar e propagar. Uma crença idiota que está minando a autoestima de muita gente que não consegue sair da casa dos pais ou que não quer sair da casa dos pais.

Se não impacta sua vida negativamente, se você consegue ter sua privacidade, seus relacionamentos, uma rotina saudável em um clima harmonioso, qual é o problema de morar com os pais? No que isso tanto incomoda aos outros?

Eu vou além: acho muito bonito quando um filho decide coabitar com seus pais na velhice, principalmente quando um dele falece e o outro fica sozinho, em uma situação de vulnerabilidade. Não acho que isso esteja envolto em uma aura de derrota e sim de gratidão. Cuidar de quem cuidou de você é o mínimo que se espera de um ser humano decente.

Mas o jovem… ah o jovem… Muitas vezes ele não sabe conviver, o defeito está nele e acaba sendo projetado para os pais. O jovem se sente oprimido, ultrajado, acha os pais as piores pessoas e sai de casa na marra, se fodendo todo para isso, apenas para descobrir, anos depois, quando tentar se relacionar e coabitar com alguém que “todas as pessoas são tóxicas”, ou seja, que o problema está nele. Desconfie de quem passou duas décadas com os pais e não aprendeu a conviver, salvo casos extremos, o pau no cu é o filho.

Sair da casa dos pais é emocionalmente fácil. Eu bato palmas é para quem consegue ficar, conviver, ser amigo, ser companheiro, ter uma ótima relação de afeto, cuidado e carinho. Se dar bem com os pais morando longe é fácil, não é mérito. Mas as pessoas adoram projetar: se minha vida com meus pais é um inferno então a vida de todo mundo com todos os pais é um inferno e quem mora com os pais é um fracassado. Se seus pais são pessoas bacanas, não é fracasso, é gratidão que chama.

É curioso como uma série de outras escolhas que impactam a sociedade de forma negativa acabam recebendo menos críticas do que morar com os pais, que não causa qualquer dano social. Isso empurra as pessoas para péssimas escolhas e muitas vezes as coloca em situação de violência.

Existe uma crença muito enraizada de que morar com os pais é sinônimo de fracasso, tanto é que as pessoas topam fracassos muito piores (como coabitar com um parceiro desrespeitoso) para não se encontrarem nessa situação: é melhor ficar em uma situação que é socialmente aceitável mas pior do que em uma situação socialmente inaceitável mas melhor.

Não estou militando para que todos morem com seus pais, em alguns casos de fato não é saudável ou não é o melhor para a pessoa. Mas decretar que quem mora com os pais, em qualquer caso, qualquer realidade, é disfuncional ou fracassado? Aí não. Aí é preconceito, é generalização burra, é mera repetição do que a sociedade prega. Uma sociedade que, por sinal, está bem doente.

Muitos “tem que” vem caindo nos últimos tempos: tem que casar, tem que ter filhos, tem que ter diploma universitário… Eram “tem que” que geravam profunda infelicidade em quem se sentia obrigado por eles. Querer fazer é uma coisa, ser obrigado a fazer pois “tem que” é outra. Então, acho que chegou a hora do “tem que” sair da casa dos pais cair também. Se todos os envolvidos querem e se existe uma relação harmoniosa, não tem que porra nenhuma.

Conheço pessoas que vivem com os pais que levam uma vida muito mais plena, feliz e saudável do que gente que saiu da casa dos pais para condições emocionalmente insalubres. Sair da casa dos pais não é o caminho para o sucesso, a realização e a saúde mental. Por sinal, é um tremendo estelionato que se convença alguém que que o caminho é esse: a pessoa o trilha com muito esforço e a recompensa não chega.

Sucesso é um conceito subjetivo resultado de um somatório de fatores e não será a sociedade a te dizer quais são eles, você tem que descobrir sozinho. O que é sucesso para você pode não ser sucesso para mim e vice-versa. Não tem que comprar o conceito pronto de sucesso socialmente aceito, sobretudo quando vem de uma sociedade encharcada de Rivotril, após se violentar por uma série de “tem que”.

Aproveite a oportunidade e reflita sobre todas as crenças que entraram na sua cabeça e que te obrigam (mesmo que você não perceba). Acordar tarde é coisa de vagabundo? Mulher só se realiza quando tem filhos? São os ricos os causadores da pobreza no mundo? Revisite conceitos que acabaram entrando por osmose, pode ser libertador.

Quer morar com os pais e todos os envolvidos estão felizes e de acordo? More. Não tem nada de errado nisso. Pau no cu da sociedade.

Para dizer que é independente mas seus pais cuidam dos seus filhos enquanto você trabalha, para dizer que é independente mas leva a roupa para lavar na casa da mãe ou ainda para dizer que é independente mas sua mãe faz sua comida: sally@desfavor.com


Comments (30)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: