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Introdução – Cultura branca.

Introdução – Cultura branca.

| Sally | | 52 comentários em Introdução – Cultura branca.

Dentro do nosso calendário lúdico, ontem foi o Dia da Exclusão Social, “uma data criada para excluir minorias e maiorias vitimizadas e ridicularizá-las”. Decidimos fazer uma semana temática, cada dia falando sobre um grupo, mas sempre como se estivéssemos falando do homem branco hetero, afinal, é só sobre ele que se pode falar sem ter sérios problemas no Brasil.

O problema começou quando eu enviei meu primeiro texto ao Somir. Calmamente ele me explicou quais seriam as implicações de postar aquilo e o quanto seria contraproducente. Não por querer seguir uma linha politicamente correta ou por ter medo dos desdobramentos (esse trem já partiu, são 15 anos implorando por um processo), mas por ser contraproducente para com os leitores.

Ao que tudo indica, algumas mudanças sociais estão acontecendo em uma velocidade tão rápida que acabam nem sendo percebidas, mas, mesmo sem ser percebidas, influenciam a percepção das pessoas do que é tolerável ou não. E, na percepção do Somir, meu texto seria um grande “inaceitável” que, em vez de cumprir sua função, geraria resistência em todos, inclusive no leitor do Desfavor, não por culpa do leitor, mas por um mecanismo inevitável.

O que consideramos aceitável ou inaceitável sofre uma influência direta do meio no qual vivemos: sociedade, entorno, momento histórico e muitos outros fatores. Como vocês sabem, eu saí do Brasil no começo de 2020, portanto, meu entorno é completamente diferente do de vocês. No meu mundo, eu posso escrever e recitar esse texto problemático em praça pública sem maiores problemas e pode ser até que receba alguns aplausos. Não é o caso do Brasil.

Sabe aquele discurso que a gente sempre faz dizendo que não se educa na porrada? Que não é obrigando uma senhorinha conservadora a ver dois homens se beijando que se elimina preconceito e se gera inclusão? Pois é, walk the talk, chegou a hora de colocar em prática nosso próprio discurso. Se meu parceiro de blog me diz que está fora do tom atualmente vigente no Brasil, então vamos rever nossa estratégia.

Não se combate o politicamente correto escrevendo palavras duras que certamente vão chocar quem as lê, sejam elas verdadeiras ou não. Só se gera reatividade, rejeição e faz com que as pessoas corram para o outro lado. E não é isso que queremos. Pessoas reativas acabam lendo de má vontade, não entendem o que estão lendo por estarem furiosas, acabam focando apenas nos pontos ruins que reforçam suas crenças sobre o que você escreveu.

Como eu disse, não é falta de fé no nosso leitor. Eu não estou dizendo que o leitor do Desfavor seja politicamente correto, sabemos que não é. Estou dizendo que a linha que não se pode cruzar em matéria de comportamento social e discurso é dinâmica, ela muda o tempo todo de acordo com a realidade do ambiente no qual você está e, neste exato momento, ela está retrocedendo no Brasil. Se você não pensa racionalmente nesse mecanismo, pode acabar afetado por ele sem perceber.

Por isso, o que era uma semana temática de humor duvidoso vai virar um exercício de reflexão. Queremos chamar a sua atenção para isso: o quanto o recuo dessa linha te afetou? Talvez tenha te afetado mais do que você imagina, sem perceber. Talvez agora que você pense nisso perceba que está te empurrando para um lugar que você não quer ir.

“Mas Sally, como vou saber?”. Simples, o texto inaceitável será publicado amanhã, seu medidor é: se você tivesse lido o texto de quarta sem ler este texto, teria achado ele inaceitável? Se você só tolerou, compreendeu ou não se ofendeu com o texto de quarta graças à explicação de hoje, sua linha foi recuada junto com a do país. O que você entende tolerável regrediu.

Não é uma crítica, ok? Por mais que a gente tente, essa linha traçada pelo grupo social que nos cerca acaba entrando na nossa realidade, sem que sequer se perceba. O lado bom é: você é senhor da sua linha, pode colocá-la onde quiser, independente do entorno. Talvez tenha que guardar algumas coisas para ambientes controlados, mas, no seu pensamento, ninguém manda.

“Mas Sally, vocês estão fazendo experiências com a gente?” Desde 2008. Conversamos por bastante tempo. A ideia inicial era cancelar a semana temática, deixando apenas o “Ele Disse, Ela Disse”, que de fato mexe com homem hetero branco e, portanto, não gera qualquer problema. Descartaríamos meu texto e faríamos uma semana normal. Porém, isso seria se render a uma imposição que consideramos injusta, portanto, não pareceu a melhor solução. Por mais que cem pessoas odeiem, uma pode se beneficiar.

Depois pensamos em inverter os temas: Somir escreveria sobre meu tema, já que ele tem mais diplomacia e consegue escrever as exatas mesmas coisas que eu, mas sem causar ira, raiva, choro e ranger de dentes. Porém, isso seria trair o Desfavor. Se um texto precisa ser reescrito de forma mais branda, se perde todo o propósito do blog.

Então, essa foi a forma que encontramos de postar textos problemáticos sem que eles tenham um efeito rebote negativo no nosso leitor e, ao mesmo tempo, de convidar vocês para essa reflexão. De todas as soluções, nos pareceu a melhor. Em outros tempos postaríamos o texto e foda-se, mas desta vez queremos o feedback de vocês: se tivessem lido o texto de quarta sem ler este, sua percepção dele ou sua reação a ele teria mudado?

Retroceder não é uma opção, Desfavor nunca será um blog fofinho. Mas enfiar as coisas goela abaixo de quem a gente acha que pode estar reativo ao assunto também não é mais uma opção.

Não respeitamos essa linha idiota do que pode ser dito, muito menos os idiotas que a recuaram, mas respeitamos o efeito que isso tem na cabeça e na vida do leitor, pelo qual temos enorme carinho e consideração. Ninguém fica indiferente ao seu meio. O recuo da linha afetou cada um de vocês, só não sabemos o quanto. Amanhã vocês vão me contar.

Ficou decidido que o melhor a fazer era alterar o formato da nossa semana temática: em vez de dois textos críticos, cada um de nós vai fazer um texto introdutório e, no dia seguinte, o texto crítico, assim podemos receber um feedback de vocês sobre como se sentem com esse tipo de conteúdo. É possível, inclusive, que o recuo dessa linha tenha afetado vocês de uma forma completamente diferente do que imaginamos: o leitor pode estar ainda mais puto, sedento por conteúdo considerado “incorreto”, graças ao entorno opressivo.

“Mas Sally, porque vocês pensam que nós leitores podemos nos incomodar se, apesar de todos os textos que vocês já escreveram, continuamos aqui?”

Há uma tendência de que qualquer coisa dita contra supostas minorias já comece a ser lida com a desconfiança de preconceito, pois isso vem sendo incutido na cabeça das pessoas. Todos os dias em portais de notícia, em redes sociais e até na vida real, se grita “preconceito” para tudo. O racismo está distorcido, banalizado, deformado.

Sabemos que isso se origina de grupos que querem ostentar virtude em benefício próprio: “olha como eu sou nobre, eu sou contra preconceito, eu vejo e logo aponto e critico, olha como eu sou legal”. Todos nós estamos cientes de que essa patrulha existe e que qualquer um de nós está sujeito a ela. Bem ou mal, uma adaptação a esse mundo patrulhado é necessária.

Por questões de sobrevivência, as pessoas passem a viver de acordo com o que essa patrulha impõe, ao menos nas aparências, afinal, custa muito caro ser chamado de preconceituoso e sofrer um linchamento virtual, pode custar inclusive seu emprego, seu sustento. Muitas vezes não dá para peitar, tem que vestir uma máscara de dançar conforme a música. E muitas vezes a máscara acaba se confundindo com o que a pessoa é, por puro costume. Já aconteceu comigo e certamente pode acontecer com vocês.

Não dá para sair combatendo o mundo, e nem acho que seja esse o caminho. O que importa é o que está dentro de você, seus valores, seus critérios, sua cognição. E é sobre isso: queremos te convidar a se lembrar o que está dentro de você, para não viver no piloto-automático, se confundindo com a máscara que você precisa vestir para sobreviver nesse ambiente bosta.

Não tem reação “certa” ou “errada”. Você pode olhar e chegar à conclusão de que a linha tinha que recuar sim. Da mesma forma, você também pode olhar e chegar à conclusão de que ao recuarem essa linha você recuou sem perceber e não quer isso, quer empurrar a linha da liberdade de expressão cada vez mais para frente.

Usem o texto como um termômetro. Não reajam no piloto automático, no efeito manada, no mainstream. Como já diria sua mãe: você não é todo mundo. Se vocês fossem todo mundo, estariam aqui na coluna “Ei, Você”, não nessa.

Estamos te dando um balizador para que você calibre sua balança da forma que entender melhor e não permita que um entorno histérico paute o que você pode pensar ou não. É, basicamente, uma oportunidade de reflexão. Qualquer decisão é válida, desde que seja sua, consciente, pensada e não automática sem perceber.

É provável que se soltássemos o texto sem este disclaimer, ele fosse visto como grosseiro, desnecessário e até preconceituoso. É provável que uma leitura rápida, superficial ou reativa leve a essa conclusão, afinal, já se estabeleceu um caminho neural que leva qualquer crítica a desembocar em preconceito. É inevitável, é algo subliminar, inconsciente.

Na realidade, a intenção do meu texto é justamente o oposto: “ei, você não é inferior, você pode ser muito melhor, mas para isso, precisa mudar de atitude. Tanto tempo se passou e você ainda não percebeu que assim não está dando certo?”. O problema é que não está escrito assim, tão fofinho, está com um humor ácido demais para ser sequer considerado humor. Em todo caso, o conteúdo deveria se sobrepor à forma, mas sabemos que isso quase nunca acontece.

É isso, as circunstâncias tornam necessário um texto explicativo antes de publicar uma postagem que seria perfeitamente normal no Desfavor (tem coisa bem pior aqui). Não por vocês serem burros, mas por acreditarmos que esta reflexão que estamos propondo é mais valiosa do que o próprio texto.

Espero que todos entendam a proposta, leiam com neutralidade e possam observar o quanto o recuo social da linha do aceitável os afetou – e se estão de acordo com isso. Seja lá qual for a escolha, que venha da consciência, não por osmose, imposta por um grupo hipócrita que comanda o país.

E depois contem para a gente: o que é aceitável para você mudou? Nos vemos amanhã.

Para dizer que eu sou preconceituosa mesmo sem ler o texto, para dizer que não entendeu absolutamente nada ou ainda para dizer que quer morar onde eu moro: sally@desfavor.com


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