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Passai Pano.

Passai Pano.

| Desfavor | | 4 comentários em Passai Pano.

O Dalai Lama se desculpou depois que uma filmagem o mostrou perguntando a um menino se ele queria “chupar” a língua do líder espiritual tibetano. Seu gabinete disse que ele queria se desculpar com a criança e sua família “pela dor que suas palavras podem ter causado”. O vídeo também mostra o budista de 87 anos beijando a criança na boca. O caso gerou uma onda de críticas a ele. LINK


Mas não faltou gente tentando defender o líder religioso, com todo tipo de malabarismo argumentativo. Desfavor da Semana.

SALLY

Um adulto usa da sua condição de poder, da sua superioridade hierárquica e do seu status social para fazer com que uma criança o beije no rosto. Depois, faz o mesmo, só que desta vez segurando o rosto da criança e arrancando um beijo na boca. Por fim, pede, em público, que a criança chupe sua língua. É o tipo de coisa que, na melhor das hipóteses, geraria linchamento do brasileiro médio.

No entanto, não foi essa a reação que vimos diante da atitude lamentável do 14° Dalai Lama, Tenzin Gyatso. Eu nem pretendo entrar no mérito do que seria uma reação adequada a isso, meu problema é muito mais superficial: não é sobre o que se faz, é sobre quem faz.

Como budismo é a moda da vez, como é uma religião branquinha e aceitável, como todo mundo quer ser espiritualmente evoluído, pessoas que tacariam pedras com violência se omitiram ou até defenderam o Dalai Lama. Porém, se o protagonista fosse outro, essas mesmas pessoas estariam atacando sem dó.

Vamos começar pela ignorância que confunde: muita gente presume que ele é um iluminado, por isso está no “cargo” de Dalai Lama. Pois bem, uma pessoa não é escolhida Dalai Lama por mérito, tanto é que ele foi “empossado” com dois anos de idade. O processo seletivo é bem questionável: quando um Dalai Lama morre, o próximo é localizado por monges veteranos com base em sinais e visões espirituais. Então, não dá para dizer que ele chegou lá por mérito e se presume boa pessoa.

Dito isto, a reação que vimos foi um bug mental dos gratiluz. Em parte foi bom, pois pela primeira vez vi pessoas questionando antes de atacar. Muita gente, quando viu a notícia, entrou no modo “Como assim? Essa notícia é verdadeira? Por qual motivo ele fez isso?” e foi investigar melhor o assunto, que é algo que todos nós deveríamos fazer sempre, seja uma notícia envolvendo o Dalai Lama, seja uma notícia envolvendo o Zé das Couves.

Mas, essa aparente ponderação rapidamente se transformou em um espetáculo de negação, idolatria e incoerência. Eram pessoas defendendo um ídolo, como se esse sujeito, por receber um nome/cargo considerado especial, fosse melhor do que o resto, fosse superior ou infalível.

Teve gente que resolveu relativizar, argumentar que, veja bem, isso não é tão grave. As pessoas têm o direito de achar algo grave ou não, longe de mim querer impor a minha escala de valor para os outros, a questão é: se a exata mesma cena fosse protagonizada por outro, pelo qual a pessoa não nutre simpatia, essa mesma pessoa estaria gritando “pedofilia!” dez segundos depois.

Quer saber se você está sendo coerente? Pense numa cena que você critica, e depois mude o protagonista: coloque Bolsonaro, Lula, sua mãe, o Papa, seu melhor amigo e um desconhecido fazendo a mesma coisa. Se para alguns o comportamento é aceito e para outros não, é sinal de que sua coerência precisa de um ajuste. Não se deixe cegar pelas suas simpatias/antipatias e afetos/desafetos.

Vários monges saíram em defesa do Dalai Lama dizendo que foi um “comportamento inocente de avô”, pois ele não tem maldade e nada é erotizado no monastério. Sinceramente, se o seu avô beija a sua boca e depois pede para você chupar a língua dele, você deveria procurar a polícia. Isso não pode ser classificado como um comportamento inocente de avô.

Ele não está a par do comportamento socialmente aceito por viver em um monastério? Bem, uma pessoa que se dispõe a ser líder deve conhecer a realidade do mundo, além da realidade do monastério, e se comportar de acordo com ela. Não estamos falando de um religioso excêntrico isolado do mundo e sim de uma pessoa que exerce, além de uma liderança religiosa, liderança política.

Muitos disseram que foi “uma brincadeira”. Certo. Imagina se o Léo Lins fizesse qualquer coisa remotamente parecida com isso o tamanho do faniquito. Por muito menos já sai textão sobre “limites do humor”. Não estamos falando de uma piada, que são meras palavras, estamos falando de contato físico inapropriado com uma criança. Existe um mundo de diferença entre palavras e atos.

Tem ainda quem diga que é algum tipo de demência senil que fez ele perder os filtros e os freios. Bem, que alega isso está mais atacando do que ajudando, uma vez que está dizendo que o comportamento inadequado com crianças sempre esteve lá e agora ele simplesmente não está mais conseguindo esconder.

Tem tentativas de explicação e justificativas para todos os gostos, mas o grande problema não está nelas e sim na normalização cada vez maior do julgamento de acordo com quem fala/faz e não de acordo com o que se fala/faz.

Por qual motivos o Dalai Lama merece mais crédito do que você ou eu? Por qual motivo é menos provável que ele tenha feito algo escroto? “Mas ele é o Dalai Lama!”. Foda-se?

Foda-se a forma, a matéria, o título. O que importa é a essência. Hora de começar a cagar fervorosamente para títulos, status e posições. Ninguém é superior a você e, quem diz que é, provavelmente é um narcisista ególatra bem perturbado da cabeça – mantenha distância.

Guru, coach, líder espiritual ou qualquer pessoa que se diga superior a você em algo é gente para se manter distância. É gente com uma mente distorcida que não vai melhorar sua vida. Sabem quem realmente tem algo a acrescentar? Quem topa caminhar lado a lado com você, aprender junto, construir algo junto – e não te cobra dinheiro por isso.

Na minha modesta opinião, o fato dele ser o Dalai Lama não atenua nada, só agrava: alguém que se diz exemplo, um escolhido, um farol para guiar a humanidade, tem que tomar ainda mais cuidado com o que faz e fala. Então, pior ainda ter feito bosta do alto de um pedestal. Se eu cago, cai no chão. Se alguém no alto de um pedestal caga, cai na nossa cabeça. Então, mesmo por essa visão “do mundo” na qual ele é superior, continua sendo um tremendo desfavor o que ele fez a como as pessoas reagiram a isso.

Você não pode mudar o mundo, mas pode melhorar a você mesmo: policie-se para não ser um hipócrita incoerente e sempre se pergunte se a sua opinião é sobre quem faz ou sobre o que se faz.

Para dizer que pessoas evoluídas espiritualmente podem ter a língua chupada por um menino, para dizer que Buda deve estar orgulhoso ou ainda para dizer que é uma pena que o Dalai Lama com a língua para fora não tenha entrado como uma das imagens da atual Desquete: sally@desfavor.com

SOMIR

Já começo o texto dizendo que eu sou uma das pessoas que nem acha que foi tão grave assim. Pedofilia é um desvio de comportamento severo que precisa de provas contundentes. Comportamentos sem noção como o do Dalai Lama podem ser apenas comportamentos sem noção. Com certeza chama a atenção de forma negativa, mas eu jamais chamaria uma pessoa de pedófila só por causa disso.

Eu posso achar bizarro e nojento o que ele fez, acreditar que deu motivos sim para ser investigado em outras relações com crianças para tirar a dúvida; posso criticar por vários ângulos, mas bater o martelo que o velho maluco quer fazer sexo com crianças por causa disso é histeria. Somos inocentes até que se prove o contrário. E francamente, o número de abortos realizados todos os dias em meninas só aqui no Brasil indica que existe muita coisa comprovadamente errada para resolver antes de perder a cabeça com esse caso.

Dito isso, quando a Sally me propôs o tema, ela falou sobre como a posição (inventada) de ser iluminado desse cidadão influiu na reação das pessoas. Isso me incomoda bastante. Se você tem histeria sobre pedofilia como padrão de comportamento, que ela se aplique a qualquer pessoa. Gurus e figuras influentes do tipo escapam de muita crítica justa por essa aura de infalibilidade que as pessoas colocam neles.

Se fosse um João da Silva aleatório pedindo para uma criança chupar sua língua, eu teria a mesma reação de incômodo não-histérico que tive com o Dalai Lama. Para mim deve ser um pouco mais fácil por ser ateu, afinal, eu vejo esse tipo de figura de poder religioso como uma pessoa aleatória fingindo importância e enganando muita gente. Dalai Lama é um João da Silva para quem percebe como religiões organizadas são apenas empresas que vendem produtos imaginários.

Mas essa não é a realidade de boa parte da humanidade. Mesmo os que não acreditam nas invenções do budismo acreditam nas invenções de outras religiões, e uma coisa influencia na outra. O cidadão médio raramente é fanático ao ponto de só enxergar a sua religião, a fé é um bufê do qual as pessoas se servem de acordo com as vontades do momento. Renegar totalmente o Dalai Lama como figura misticamente iluminada meio que complica a crença em outras religiões, e se você não está com o cérebro lavado por apenas uma, tudo acaba se retroalimentando.

Quando eu defendo que mais pessoas tenham a liberdade de se livrar de religião, não é a ideia de fazer todo mundo compartilhar da minha realidade percebida que anima, é a percepção honesta de que eu me tornei muito mais resiliente a discursos perigosos de terceiros. Perigosos por intolerância, irresponsabilidade ou má-fé estelionatária mesmo. Não é sobre o ser mágico nos céus, é sobre pessoas. Um mundo de ateus que simplesmente não acreditam em um deus não resolveria o problema central: essa crença infundada em pessoas perfeitas e infalíveis. Vários países comunistas teoricamente ateus tinham cultos de personalidade que serviam à mesma função nefasta de oprimir a população.

Eu não estou nem aí para um deus ou outro. Se eles existirem, eu sou uma bactéria em comparação; e daí que eu acredito ou não? Mas quando falamos de pessoas que usam a ideia desses deuses para acumular dinheiro e poder, o problema é extremamente real. Num mundo onde as pessoas tivessem sua “fé pessoal” sem entregar sua vida nas mãos de pessoas que se dizem profetas e sacerdotes dos supostos deuses, eu não vejo problema nenhum na crença. Se ninguém está segurando a arma, a chance de ela disparar é minúscula, não?

Não importa o quão especial a pessoa pareça, é uma pessoa. Ela vai errar, ela vai fazer coisas que você discorda, ela vai ter objetivos que não te agradam… a gente pode tirar muito aprendizado do outro, mas não faz o menor sentido tratar um ser humano como se fosse outra coisa. É terrível quando você desumaniza alguém, e é terrível quando você se desumaniza ao achar que outra pessoa é perfeita e ideal.

Como dizem os evangélicos mais raiz: não tenha ídolos. Os atuais idolatram o pastor, o político e o cantor sertanejo, mas a ideia original do protestantismo era uma rejeição à ideia da Igreja Católica de ficar criando pessoas mágicas aos borbotões para agir como intermediários da salvação. Golpe óbvio que Lutero e afins perceberam: muito conveniente colocar na cabeça das pessoas que Deus terceiriza o contato com a humanidade, não? No final das contas deu errado e o mundo evangélico está cheio de ídolos que não tem “santo” ou “santa” no nome, mas que funcionam de forma muito parecida. Mas, justiça seja feita, a ideia não era ruim originalmente.

Dalai Lama é uma classe ainda pior de figura de poder religioso, é alguém que foi alçado ao cargo por presunção de escolha divina, nunca fez por merecer a admiração, só cresceu acreditando que tinha uma missão especial. Não fosse a revolta tibetana e o exílio dele, não teria chamado atenção do resto do mundo. As coisas foram caindo no colo dele, especialmente porque celebridades americanas com merda na cabeça resolveram que ele era uma fonte de sabedoria infinita e empurraram isso na cultura pop das últimas décadas.

Pode até falar coisas bonitas e inspiradoras, mas o Rafael Pilha também fala coisas muito interessantes. Se amanhã viessem me dizer que eu sou o novo Dalai Lama, eu seria venerado por dizer coisas bonitas e inspiradoras. Aliás, eu aposto que seria ainda melhor que ele e focaria em outros temas que não paz genérica e frase de biscoito da sorte. Todo mundo tem algo para dizer e alguma história de vida, a gente pega o que nos acrescenta e joga fora o resto.

Pessoas são pessoas, só isso. Religião é uma forma de distorcer essa realidade em estruturas de poder mágico. Dalai Lama não merece ser tratado de forma diferente que nenhuma outra pessoa quando pede para uma criança chupar sua língua. Se você for de querer linchar quem faz isso, linche ele também. Se você for de não esquentar a cabeça com esse tipo de coisa, não esquente também. Defender alguém só por causa de uma posição em religião organizada é cair num dos golpes mais antigos da humanidade. Não seja peão no jogo de poder dos outros.

O mundo funciona muito melhor quando nos tratamos como humanos de forma generalizada, para defender ou criticar.

Para dizer que eu vou para o inferno budista, para dizer que sua religião é diferente, ou mesmo para dizer que se você não gosta de uma coisa é crime: somir@desfavor.com


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