Reconstrução?

O tema da invasão dos três poderes em Brasília pelos bolsonaristas continuou rendendo a semana toda. Continuamos falando dele, mas um tanto quanto a contragosto… Desfavor da Semana.

SALLY

Como vocês podem observar em uma rápida leitura da coluna “A Semana Desfavor” (onde selecionamos os maiores desfavores nas notícias da semana), a invasão promovida pelos bolsonaristas foi muito mais vergonhosa do que se imaginava: sim, eles são burros, sim, eles são vergonhosos, sim eles são tudo de ruim que se queira atribuir. Isso já está estabelecido. Podemos virar a página?

Faz muito tempo que uma notícia não “sobrevive” e se mantém atual por uma semana, para ser tema desta coluna. Somir e eu já damos como certo que se algo acontece em um sábado ou domingo, o assunto tem que ser tratado durante a semana, pois estará esquecido no próximo sábado.

Porém, esta notícia completou uma semana de validade e ainda destronou a Shakira, que merecia muito algumas observações. Qual seria a razão? Consciência política? Vontade de mudar o país? Duvido muito.

Muita gente vê um enorme ganho secundário nos patéticos patriotas. Servem para desfilar virtude, inteligência e sanidade (quando a pessoa os critica, mostra o quanto ela é diferente deles, superior), servem para disseminar o medo para trazer mais gado para o seu lado (nada une mais do que um inimigo em comum), servem até para o simples prazer de se gabar (“eu disse, eu avisei, eu sou foda eu prevejo as coisas”).

E nessa de ficar chutando cachorro morto por não gostar dele em vida, se perde tempo e energia com a coisa errada. Pela milésima vez, o foco tem que ser: por qual motivo eles conseguiram invadir, quem tornou isso possível e o que será feito a respeito (deles e de quem facilitou sua entrada). A invasão já passou, hora de olhar para frente se quiserem combater esse tipo de pessoas/pensamento/atitude.

E, como parte desse processo de olhar para frente em vez de ficar sambando na cara de cachorro morto, é preciso entender a razão pela qual dá tanto prazer às pessoas apontar as cagadas alheias (com trocadilho).

Quão bosta uma pessoa tem que ser para precisar apontar para a escória da escória e ressaltar obviedades para se sentir bem? A autoestima de quem faz isso deve estar realmente muito ferida. Parece criança que aponta o erro do irmão sem parar para que a mamãe goste mais dele.

Enquanto a massa se diverte pisoteando em gente imbecil, estão surgindo diversos pequenos focos de incêndio ignorados por todos. Quando não tem ninguém olhando é muito mais fácil cometer desmandos.

Por um lado, os mais de 500 bolsonaristas liberados (todos deveriam estar presos) já estão se articulando para causar um tumulto ainda pior, desta vez com tom de vingança. Por outro lado, Lula já quer fazer uma reforma nos prédios danificados sem licitação (ou seja, pagando o preço que ele quiser) e já começa a abusar do privilégio que essa loucura rendeu a ele.

O mundo não é preto no branco: bolsonaristas malvados, petistas honrados. Tem que sobrar tempo e disponibilidade para vigiar quem detém o poder hoje, para que essa pessoa não abuse do poder. Tem que sobrar bagos para sentar a pata em quem detém o poder hoje sem medinho que “Bolsonaro volte” ou coisas do tipo. Tem que sobrar maturidade para saber que esses bolsonaristas não são “pobres coitados enganados” e que a punição deles não é mais do que consequência das suas escolhas.

Esses animais têm que ser punidos sim, de acordo com a lei. E os animais que estão no poder agora também. Todo mundo tem que ser fiscalizado igual e punido igual. Não é possível que o brasileiro seja tão burro de tirar dessa história a lição “Bolsonaro não presta”, a lição é “não tem que ter político de estimação”. Qualquer político, se ficar excessivamente confiante, faz merda. O que o brasileiro faz? Tira o excesso de confiança de um e passa para o outro.

Político é um funcionário público pago pelo povo para conduzir um Estado de acordo com os interesses do povo. Qualquer coisa que saia disso tem que ser motivo de reclamação, de inconformidade, de atitudes. Essa gaiolinha na qual o brasileiro se enfiou de “é aturar isso ou Bolsonaro de volta” é triste, medíocre e limitadora.

Mais de 50% da população não gosta nem de Lula nem de Bolsonaro, basicamente faltam culhões de bater no peito e dizer “foda-se, eu não vou votar em nenhum desses dois bostas”.

Mas fazer isso significa ver uma briga e não tomar lados, imagina se o brasileiro vai deixar de se meter em briga, barraco ou confusão? Não, não, a opinião dele é importante demais para ele não participar! É a única chance que ele tem de estar certo, de sentir pertencimento, de se vangloriar de algo, logo, ele vai continuar na polaridade.

Esses idiotas que promoveram essa arruaça não são nem monstros terroristas (falta muita competência para isso) nem coitados manipulados (todo mundo adulto, todo mundo ciente do que estava fazendo). Parem de polarizar até criminoso! Um bando de babacas cometeu crimes e esse mesmo bando está sendo preso por isso. Parem de problematizar. Virem a página!

Foquem no que interessa: quem fez merda está sendo punido ou está escapando? Os mandantes também estão sendo procurados e punidos? Quem de alguma forma facilitou que isso aconteça está sendo procurado e punido? Quem está no poder está tirando proveito dessa situação para cometer alguma ilegalidade? Quem está no poder está tomando as providências para que isso não aconteça novamente?

Se o seu foco está em outra coisa, provavelmente você quer alimentar um ego frágil e não melhorar o país. Se sua resposta é exaltar o PT, que com menos de um mês de Governo já está descumprindo promessa, aplicando negacionismo financeiro e terraplanismo fiscal, você é tão idiota quando os animais que invadiram o Congresso. Sim, tem gado dos dois lados da cerca. Não seja gado, não importa o lado.

Vamos por favor virar a página e focar no que está sendo feito e nos que será feito a respeito? Vamos não nos comportar como aqueles que criticamos (gado de político)? Vamos aprender de uma vez por todas que defender político, no Brasil é passar vergonha, não importa a forma como se faça? Obrigada.

Para dizer que se criticar o Lula o Bolsonaro volta, para dizer que o assunto deveria ser os gastos absurdos do cartão corporativo do Bolsonaro (o de todos os Presidentes é) ou ainda para dizer que quer nos ouvir falando da Shakira (semana que vem): sally@desfavor.com

SOMIR

Sabe quando uma criança muito pequena quer brincar de esconde-esconde, mas a estratégia dela é tapar os próprios olhos? Ela tem alguma noção sobre o que é o jogo, mas tem uma falha no raciocínio: como ela ainda não entendeu que tem diferença entre o que ela enxerga e que os outros enxergam, tapar os olhos é uma forma de se esconder.

O adulto próximo normalmente se adapta à situação e abandona o jogo tradicional, brincando com a criança dentro das limitações dela. Fazemos isso porque no caso de crianças pequenas, o importante é a diversão do momento. Se ela fica feliz assim, ficamos felizes também. Aquele erro óbvio dela tem sua graça, acabamos sendo cúmplices em prol de algo maior.

Os bolsonaristas queriam brincar de dar golpe de Estado, mas acabaram fazendo algo equivalente a tapar os próprios olhos no jogo de esconde-esconde: esqueceram que o mundo é muito maior que a cabecinha deles. Quebrar vidros, furar obra de arte e fazer suas necessidades dentro de prédios públicos não tem relação direta com tomar o poder.

Vou mais longe, nem a minuta encontrada na casa do Anderson Torres tentando fazer intervenção no Supremo Tribunal Eleitoral realmente é um passo concreto rumo ao golpe. É parte da insanidade coletiva que ataca os “patriotas”, que realmente parecem acreditar que existiam ferramentas legais disponíveis para derrubar a democracia e desfazer eleições na constituição brasileira.

É o tipo de desconhecimento das regras do jogo que me fez pensar na criança tapando os olhos. E justiça seja feita, é compreensível que mesmo adultos tenham dificuldade de entender toda a complexidade de um Estado e suas leis. Se a criança quiser mesmo continuar brincando de esconde-esconde, vai acabar lidando com alguém que não deixa ela brincar errado e acreditar que ganhou. É algo normal da vida, as pessoas são expostas a situações cada vez mais exigentes para aprender.

E aqui minha analogia começa a seguir por dois caminhos diferentes: por um lado, os poderes vigentes estão tomando as atitudes práticas corretas, processando e prendendo quem descumpriu a lei; mas no campo da propaganda, ainda estamos fingindo que eles “brincaram direito”. Explico: o Brasil não esteve perto de ter sua democracia revogada. A imensa maioria das pessoas não concordou com as invasões e o quebra-quebra. Mesmo quem nutre simpatia pela derrubada do Lula como presidente não achou que foi uma boa imagem para o movimento.

Então, por um lado, mérito onde ele está presente: faz bem ver Executivo, Legislativo e Judiciário indo atrás de quem atacou a democracia brasileira. Mesmo que não tenha sido uma tentativa de golpe minimamente eficaz, tudo tem limite. Impossível manter um Estado Democrático de Direito se não for crime tentar derrubá-lo, não? É meio complicado ideologicamente: exercer o direito de perder seus direitos querendo uma ditadura. Prefiro que as regras continuem como estão, e poderes que não passam pano para esse povo maluco realmente são uma evolução.

Dito isso, esse jogo todo é bem complexo, porque também existe uma batalha de versões na mente do brasileiro. Existe um ganho secundário em acreditar no poder desses golpistas. Não só criar uma sensação de urgência na cabeça dos que não votaram em Bolsonaro, como também gera um conforto de ser superior a essa massa de imbecis que fizeram aquele ato deplorável dia 8 de janeiro.

A criança brincou de esconde-esconde tapando os próprios olhos. Mas era mais “divertido” fingir que o jogo estava acontecendo do jeito correto. De uma certa forma, é como se estivéssemos comemorando ter achado a criança em meio segundo. Ganhamos!

Mas ganhamos porque somos bons nesse jogo ou ganhamos porque o outro competidor não tinha noções básicas dele? A democracia brasileira é forte ou os golpistas eram muito fracos? Se você for acompanhar o que dizem e pensam os patriotas na frente dos quartéis, é de dar pena. É uma gente muito limitada, que acredita em qualquer coisa que digam para eles. É o tipo de público que entra para um culto e doa todos os bens para um charlatão bom de lábia.

Bolsonaro e seus generais de meia tigela também não são bons exemplos de gente competente. Conseguiram muitos votos pela rejeição ao PT, mas na hora do vamos ver, não tiveram gente suficiente para aplicar um golpe de Estado. Não tinha gente suficiente acreditando neles, ou mesmo interessadas em ser mandadas por eles. Eles tinham o apoio do Legislativo para escapar de processos de Impeachment, mas ninguém ali estava no barco de entregar todo o poder para essa turma. Mudou o presidente, 90% das alianças mudaram de lugar. Bolsonaro foi usado (e mereceu).

A reflexão que eu tiro daqui é que ao mesmo tempo que se processa e prende os malucos da invasão, porque é uma necessidade prática da lei vigente, não se pode comemorar muito a vitória da democracia: estávamos brincando de esconde-esconde com uma criança que tapa os próprios olhos. Isso não faz da democracia brasileira algo tão poderoso assim.

Nem mesmo define superioridade de quem votou num candidato ou no outro. Repito: é uma gente de dar pena. Ter pena não significa permitir que a pessoa cometa crimes, mas não se pode esquecer do nível dos golpistas, que é baixíssimo. Ser superior aos malucos defecando dentro de prédios públicos não é grandes coisas não… é obrigação. Pode até ser divertido fingir que foi uma tentativa de golpe séria para se sentir vitorioso, mas não deixa de ser perigoso.

O governo atual bateu em bêbado. A maioria das pessoas que votou em Bolsonaro não estava querendo uma ditadura, era virtualmente impossível tomar o poder dessa forma. Se não continuarmos atentos e muito críticos aos poderes, bolsonaristas, lulistas ou seja-lá-o-quê-istas, aí sim podemos lidar com um grupo que aprende com os erros e da próxima vez não vai só tapar os próprios olhos.

Vencemos (nós que não queremos ditadura) uma gentalha patética, porque era extremamente fácil vencer desde o começo. Não acredite em quem tentar te vender uma ameaça séria, porque é assim que quem sabe jogar esse jogo de concentração de poder sempre começa. Da próxima vez, a criança vai procurar um lugar para se esconder de verdade…

Para dizer que é mais inteligente que um patriota, para dizer que o comunismo venceu, ou mesmo para dizer que já está chamando os aliens para tentar de novo: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Shakira está só faturando em cima de piqué, mas não acho razoável ela jogar hetero em cima de uma menina de 23 anos. Achei desproporcional.

  • Cleimar da Silva

    Mesmo quem nutre simpatia pela derrubada do Lula como presidente não achou que foi uma boa imagem para o movimento.
    Pior, tem aqueles que acharam tão sem noção a ação dos militantes que promoveram esses atos de vandalismo no planalto a ponto de acreditar que isso fosse uma Operação de Bandeira Falsa de tão sem noção que a ação foi.
    E eu volta e meia digo que o Alexandre de Morais é mais realista que o rei. Se você considerar que ele foi indicado por Michel Temer (que segundo a pós-verdade dos lulistas mais radicais, teria encabeçado um golpe de estado contra a Dilma Rousseff), está aí a explicação para uma atuação tão agressiva e tão subserviente por parte dele.
    É tudo em nome da mamata… E sempre foi assim.

  • Cleimar da Silva

    Político é um funcionário público pago pelo povo para conduzir um Estado de acordo com os interesses do povo.
    O caralho. São um bando de oportunistas que usam da popularidade e da notoriedade para construir carreira no campo político usando de seus currais eleitorais para tanto.
    Bolsonaro só teve sua candidatura viabilizada porque o nosso quadro político é tão fragmentado que tinha legenda de aluguel se dispondo a dar espaço pra ele tentar a presidência depois dos resultados eleitorais em 2014 por conta dos factoides plantados de 2011 até então. Caso o número de partidos fosse menor, ele sequer teria chance de se lançar como candidato.

  • Sally, como os hermanos aí da Argentina comentam essa situação de caos político e polarização no Brasil? Nos acham burros, ignorantes, desesperados, perdidos, loucos, insanos, estranhos, ou não ligam para esse tipo de notícia made in Brasil? Teve repercussão aí?

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