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Bolhas furadas.

Bolhas furadas.

| Somir | | 12 comentários em Bolhas furadas.

A vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB de Uberlândia acaba de ser exonerada do seu cargo. Motivo? Um vídeo que gravou com duas amigas dizendo que não gastaria mais dinheiro no Nordeste porque o povo de lá não merecia.

Aqui a gente pode começar uma discussão sobre liberdade de expressão, mas a gente já falou de temas muito parecidos, muitas vezes. Se você pode falar, você tem liberdade de expressão; se a repercussão da sua fala não te é positiva, você ainda tem liberdade de expressão. Quando a gente fala de repressão à liberdade básica de se expressar, estamos falando de censura (ou seja, impedir que a pessoa sequer fale) ou de punições arbitrárias do Estado contra o cidadão. O caso da mulher em questão é o de se dar mal por ter falado algo de forma muito pública.

O que, gostem ou não, acontece. Você não escapa da consequência de falar uma merda muito grande nem dentro da sua casa: basta que alguém ouça e fique puto da vida com você. E veja bem, gostem ou não de novo, não dá pra entrar na cabeça do outro e forçar ele a ter a mesma visão das coisas que você. Eu, por exemplo, escolho manter por perto na minha vida pessoas que não se ofendem por piadas. Não dá pra ensinar ninguém a ter meu senso de humor, mas dá para puxar pra perto quem você percebe que combina com você.

Pois bem, o caso da vez poderia ser só mais uma variação desse mesmo tema, mas hoje eu quero olhar para um ângulo diferente: o que faz tanta gente se achar inimputável na internet? Veja bem, eu falo coisas horríveis para pessoas próximas, coisas que eu não falo nem aqui sob o manto do anonimato. Eu sei com quem estou falando e já tenho uma boa medida de como as pessoas reagem. Exemplo: eu sei que não existe limite de piada politicamente incorreta com a Sally, na pior das hipóteses ela me ignora ou muda de assunto.

E ainda nesse exemplo, isso só acontece porque nós temos conhecimento suficiente um do outro para saber que as piadas ou os comentários raivosos sobre o mundo em geral não são o que nos definem. Se eu fizer uma piada de bebês mortos para ela, ela não pensa que eu mato bebês nas horas vagas. Se eu interpelasse uma estranha na rua e falasse a mesma piada, ela sairia correndo da minha frente, e com razão.

Tudo muito óbvio, né? Então por que parece não funcionar na internet para tanta gente? Todo dia ao redor do mundo dezenas de pessoas caem em furadas enormes porque falaram ou fizeram algo muito controverso em vídeo e publicaram para o mundo todo ver! A única proteção dessa gente é a certeza que no dia seguinte vai ter outro maluco se expondo na pior hora possível e tomando a atenção das pessoas.

Eu fico fascinado com a falta de noção dessa gente. A advogada em questão… eu tenho quase certeza de que na vida real dela, ela não sai falando esse tipo de coisa para estranhos que encontra na rua. Que assim como quase todos nós hipócritas, dá uma olhadinha ao redor para se certificar que ninguém da classe prestes a ser ofendida está ouvindo. Um mundo ideal não tem preconceitos e falas escrotas, mas um mundo ideal não existe. O mínimo que se aprende nessa vida é reduzir o alcance das suas opiniões, piadas e comentários politicamente incorretos.

Mas na vida online, o filtro desaparece. A pessoa fica com a ilusão de que está falando com uma conhecida num canto, não que está gravando uma prova contra si e colocando na casa de incontáveis desconhecidos. Falta entendimento sobre o que é a internet? Ou as pessoas estão desaprendendo com o passar do tempo?

Talvez a resposta seja um misto das duas coisas. A ideia de que a internet permite que o mundo inteiro tenha acesso ao conteúdo que você produz me parece grande demais para o cidadão comum. Ele não visualiza o que realmente acontece quando ele posta um vídeo na internet: o celular dele abre uma transmissão para um computador que atualiza a rede social, a rede social então manda avisos para o mundo todo que aquela porcaria que você publicou está disponível. Um sistema automatizado analisa o seu vídeo e decide na hora para quem vai mostrar.

Você está berrando num volume tão alto que o pessoal que mora no Japão pode ouvir! Por sorte não é tão literal assim, afinal, estaríamos todos surdos, mas a analogia de alcance é essa. Aliás, se eu quiser se mais técnico ainda, é pior que berrar: o seu vídeo imbecil voa pelo mundo na velocidade da luz, que é absurdamente maior que a do som.

E depois que ele está na internet, está feito. Você falou o que queria, mas não sabe quem ouviu. Todo dia falam coisas muito piores que essa advogada, mas ela, assim como todo mundo, fica girando essa roleta da desgraça sem parar. Na absoluta maioria das vezes, essa loteria não paga nenhum prêmio, mas se for o seu dia… prepare-se para muita atenção. E conhecendo a internet moderna, quase certeza que vai ser atenção negativa.

Então, tem o ângulo da falta de entendimento, eu acredito que as pessoas que são pegas nesses vídeos cagados não estavam enxergando o alcance dele; mas tem uma regressão de etiqueta social básica acontecendo ao mesmo tempo. Eu digo isso porque não há nenhuma surpresa evidente sobre o pior do comportamento humano postado em redes sociais. Podemos até ficar decepcionados com a quantidade de gente imbecil que divide o planeta conosco, mas convenhamos: a gente já sabia que a média não era lá essas coisas, né?

As pessoas sempre foram assim, mas a limitação do alcance da sua voz acabava protegendo mais o cidadão. Quando dá muito trabalho ser ouvido por inúmeros desconhecidos, todo mundo pensa um pouquinho mais no custo/benefício. A mulher do vídeo não ia comprar um comercial na Globo durante a novela para falar aquilo sobre os nordestinos, não? Teria um grande alcance, mas quem ia gastar tantos recursos só para dar uma opinião aleatória dessas?

A pessoa esqueceu a lógica social básica porque não tem mais barreira de entrada para popularidade. Você não precisa mais se esforçar para ter plateia, então, esquece que não está falando com um pequeno grupo de conhecidos. As coisas ficam misturadas, o que é público e o que é privado se perdem com a comunicação instantânea da internet.

E aí, você acha que está falando sempre com a sua bolha, afinal, toda informação que você consome tem a ver com a sua bolha. Com essa questão de algoritmos ditando o tipo de conteúdo que você recebe, começa a se criar uma ilusão de intimidade com a internet. Você só vê notícias da sua bolha, você só vê postagens da sua bolha… e isso começa a parecer toda a realidade. Se a realidade da advogada fosse apenas sua bolha bolsonarista, o vídeo não teria gerado interesse.

Mas o mundo não é a sua bolha. As gigantes de tecnologia descobriram que aumentam o tempo de uso de seus sites criando essa bolha de confirmação, e empurraram isso como se fosse o padrão da internet. Distraia um segundo e você começa a achar que está sempre falando com conhecidos, que tudo é confiável, que não tem repercussão negativa.

E quando ela vem, o choque: quando você fura a bolha do outro, ele está imensamente mais propenso a te atacar do que seria o normal. Pudera: para chegar na bolha do outro, tem que ter relação com os temas dela. Tudo o que você disser vai ser tirado do seu contexto e colocado no contexto da bolha adversária. Diga uma coisa contra a bolha do outro e você vai receber todo tipo de xingamento e ameaça. Não porque você realmente fez por merecer tamanha raiva, mas porque você chega no outro com a caveira já feita. Você herda todos os males da bolha que representa, sejam eles reais ou não.

As pessoas vão achando mais e mais normal viver nesse universo paralelo de confirmação de crenças prévias, e vão perdendo a noção da importância de adaptar seu discurso a quem ouve. De falar com pessoas diferentes. E depois, olha só o desastre: se por um acaso sua voz chegar na outra bolha, vai te gerar uma experiência horrível e te deixar ainda mais propenso a ficar com “os seus”.

Pode ser um grande salto essa conclusão, mas eu realmente estou acreditando que a polarização é resultado imprevisto da internet tentando te vender mais maquiagem, celular e assinatura de streaming… as bolhas são um sucesso de publicidade, mas um desastre para as relações humanas.

A vó sabia aos 12 anos de idade que não deveria falar mal dos outros na frente deles, a neta não sabe aos 40… vamos acabar todos autistas, isso sim.

Para dizer que ela não deveria ter sido punida (ok…), para dizer que ela deveria ser mais punida (ok…), ou mesmo para dizer que sabia que era tudo culpa dos publicitários: somir@desfavor.com


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