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Guerra às drogas.

Guerra às drogas.

| Somir | , | 22 comentários em Guerra às drogas.

O presidente colombiano, Gustavo Petro, fez um discurso na Assembleia Geral da ONU nesta semana criticando o que ele chamou de guerra às drogas. Oras, mas se as drogas fazem mal pra tanta gente, qual é o problema de declarar guerra a elas? Bom, se você vem da Colômbia, talvez tenha uma visão bem diferente sobre as coisas.

Petro é o recém-eleito presidente da Colômbia, abertamente de esquerda e defensor de todo tipo de discurso popular entre a esquerda moderna. Pior, foi guerrilheiro revolucionário nas selvas locais. É o tipo da pessoa que fica fácil de colocar dentro de um arquétipo de “traficante comunista” e usar na sua máquina de propaganda como exemplo de ameaça iminente ao bem-estar da família tradicional. Se ele é contra a guerra às drogas, só pode ter um objetivo maligno, não?

Provavelmente não. Estamos falando da Colômbia, e aí, o buraco é muito mais embaixo nessa questão das drogas. O que todo mundo deve saber é que nos anos 80 e 90, os colombianos eram conhecidos pelos cartéis de traficantes que dominavam o país, o mais famoso sendo Pablo Escobar, que por algum tempo chegou a rivalizar com o governo oficial em questão de poder.

O que nem sempre é bem explicado é o papel dos EUA nessa história. Como sempre na América Latina, suas digitais estão por todo tipo de tomada de poder ilegal sob o pretexto de combater o comunismo. Fizeram isso em basicamente todos os países e hoje em dia nem se discute mais a veracidade dos fatos. Era parte da estratégia de Guerra Fria dos americanos: instalar governos avessos a tudo relacionado com a União Soviética em seu quintal.

Gustavo Petro foi um dos cidadãos que se bandeou para o lado da guerrilha revolucionária de esquerda quando os americanos ajudaram a derrubar um governo local que não atendia aos seus desejos. Eu super concordo que se bandear para o lado dos soviéticos não era vantagem nenhuma para o continente, mas eu não tenho como negar o jogo sujo dos americanos para manter o controle sobre seu “quintal”. A gente pode ser contra ditadura de esquerda e de direita ao mesmo tempo.

A Colômbia tinha em suas enormes áreas de floresta e montanhas o material humano, o conhecimento técnico e a liberdade de produzir cocaína. A planta é nativa da região, o povo mascava as folhas de coca há milênios. Com a “invenção” da versão potencializada, o país tinha em suas mãos um produto com demanda interminável. E os produtores colombianos começaram a perceber um potencial enorme: levar a cocaína para os EUA.

A droga já era proibida por lá, mas não era uma preocupação das maiores. Até que se tornou: a droga explodiu em popularidade, os colombianos produziam toneladas de cocaína e exportavam para os EUA com lucros exorbitantes. A coisa ficou tão séria que virou uma crise interna, como era algo ilegal, não havia supervisão estatal. Os traficantes se estabeleceram no sul dos EUA e formaram impérios do crime que começam a assustar até o governo ianque.

Foi na onda dessa violência causada pelo tráfico e a percepção de um Estado cada vez menos capaz de lidar com esse poder paralelo que o presidente americano Ronald Reagan declarou guerra às drogas. Foi num discurso ao vivo para a nação, dizendo que essa era a maior ameaça ao povo! Os EUA entravam numa nova era de repressão ao uso e a venda de cocaína e todo tipo de droga ilegal.

Parecia óbvio ali. Se tem gente fazendo coisa ilegal, o Estado tem que usar sua força para impedir. E como boa parte das drogas entrando nos EUA vinham da Colômbia, parecia óbvio também intervir no país para represar o rio na nascente. Começa então uma invasão “tolerada” dos EUA na Colômbia. Os políticos colombianos estavam ficando sem margem de manobra para lidar com os cartéis, então depois de muitos anos de tolerância corrupta, abraçaram a intervenção americana.

Agora, as coisas se somam: muita gente se tornou revolucionária por causa das intervenções americanas, e como as guerrilhas haviam encontrado um ponto de equilíbrio com os cartéis de drogas (que não precisavam concordar em nada além da vontade de derrubar o poder oficial colombiano), a intervenção americana criou um novo monstro: as FARC. O sucesso em enfraquecer os cartéis gerou uma reação entre esses dois movimentos.

Guerrilhas colombianas que tomavam as enormes florestas locais, sob uma ideia meio vaga de comunismo, mas com o firme propósito de se financiar com a produção e distribuição de cocaína. Toda essa ideia de comunismo e tráfico estarem integrados na América Latina vem das FARC. Não tinha nenhum santo nessas guerrilhas, mas há de se entender que elas foram moldadas por intervenção externa do, em tese, maior inimigo do comunismo e das drogas no mundo.

O colombiano viu ao vivo o desastre humanitário que a guerra às drogas nos EUA estava causando. O plano americano era reprimir, reprimir e reprimir. O resultado foi a Colômbia passando boa parte das últimas décadas num estado de caos e praticamente nenhum avanço prático na redução do consumo de drogas nos EUA ou no resto do mundo.

A tentação de dizer que Gustavo Petro é contra essa ideia de repressão às drogas por ser amigo das FARC é grande, eu sei… mas nada é tão simples assim no mundo. A gente aqui no Brasil sabe que Bolsonaro é um pateta que não consegue mandar nem na própria família, mas a informação que roda o mundo é que nossa democracia está ameaçada pela extrema direita. Vamos tentar analisar o que Petro diz pela via do bom-senso.

E pela via do bom-senso, podemos analisar os dados de quanta gente está usando drogas sem parar, inclusive nos EUA. O país tem a maior população carcerária do mundo, em números gerais e em porcentagem da população. São milhões de pessoas presas, e a maioria está atrás das grades por causa das drogas. Se você consegue prender mais de 2 milhões de pessoas, quase todas por crimes relacionados às drogas, era de se esperar que alguma coisa estivesse funcionando, não?

Pois é… pra provar como a repressão não funcionou, a maior epidemia de viciados por lá é baseada em remédios legais. Opióides. A demanda não foi reprimida. Na verdade, ela foi quase que legalizada: o governo faz de tudo para evitar que drogas cruzem suas fronteiras, mas as empresas farmacêuticas locais criam drogas diferentes muito mais poderosas e atuam livremente no incentivo ao seu uso pela população mais vulnerável.

“Oras, a repressão funcionou então, não são mais as drogas ilegais causando problema!”

Não, não é isso. As drogas ilegais continuam rodando pelo país, porque controlar entrada de cocaína num país como os EUA é enxugar gelo, o que aconteceu de verdade foi que o número de pessoas drogadas ao ponto de serem imprestáveis para a própria vida aumentou. As drogas legais se somaram às ilegais e eles estão lidando com o dobro do problema agora. Quando você só pensa em repressão, você isola a pessoa suscetível ao uso. E pessoa abandonada faz besteira.

O problema não é que mudou o foco das drogas causando problemas nos EUA, o problema é que as legais se somaram ao problema. E a guerra às drogas declarada por Reagan década atrás é parte integrante disso: enfiaram na cabeça que prender traficante e botar fogo em floresta na Colômbia é lidar com o problema. Pior que não ter descoberto uma solução é achar que tem uma que não funciona.

A guerra às drogas causou diversos problemas na Colômbia. Quando Petro vai falar disso na ONU, fala com a experiência de quem viu os americanos chegarem, bagunçarem tudo e continuar basicamente com o mesmo problema de antes. Os cartéis colombianos se tornaram cartéis mexicanos. Jogaram veneno num bueiro, os bichos foram para outro.

E o mais triste: muita gente acha que está tudo bem. Que é só questão de reprimir mais para resolver, que o que falta é mais porrada. Quando você está num caminho que não parece estar dando resultado e sua única ideia é insistir nele, você está com um problema sério. A guerra contra as drogas não falhou por falta de poder de fogo, se alguém tinha armas e poderio militar para jogar em cima do problema, eram os EUA; a guerra contra as drogas falhou porque as pessoas estão usando ainda mais drogas.

O ser humano até consegue perdoar alguns excessos de força se enxerga uma vantagem depois. Agora, quando alguém vê a quantidade de mortes e violência da guerra contra as drogas e descobre que as pessoas estão mais viciadas depois… fica mais difícil de compreender.

Eu mantenho minha opinião que liberação geral das drogas não é uma boa ideia no Brasil, porque temos uma desigualdade imensa que fatalmente vai terminar em crises de saúde pública e violência urbana de escalas nunca antes vistas, mas se tem algo que eu não discuto mais é a guerra às drogas: falhou. Falhou feio. Se o seu inimigo só fica mais forte depois de décadas de luta, você está claramente fazendo algo errado.

Existem várias ideias de como lidar com o tráfico e o usuário de drogas, algumas delas testadas com relativo sucesso, focando no viciado primeiro, ao invés de focar no traficante primeiro. Goste ou não de Petro e suas inclinações ideológicas, entenda que ele viu seu país ser virado de ponta cabeça pelas drogas, viu como os EUA tentaram resolver tudo na base da força e viu como nem por lá eles conseguiram um resultado válido.

Como as informações chegam ao Brasil muito influenciadas por ideologias locais, eu acho importante tentar tratar do problema de uma forma realista. Não fazer nada deu errado, atacar com violência deu errado. Posso discordar do presidente colombiano em tudo mais o que disser a partir de hoje, mas isso faz muito sentido. Combater as drogas do jeito como combatemos hoje deu errado e está na hora de procurar outra estratégia.

Para me chamar de Zé Droguinha, para me chamar de comunista, ou mesmo para dizer que a solução é pra tudo é bater mais forte na próxima vez: somir@desfavor.com


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