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Inveja pensante.

Inveja pensante.

| Somir | | 8 comentários em Inveja pensante.

É mais forte do que eu: quando eu quero dar uma opinião, tem uma voz que sempre acompanha o pensamento, dizendo que existem outras formas de ver o assunto. Isso não impede totalmente que eu me comunique ou faça escolhas, mas coloca alguns obstáculos no caminho. O processo de expressar uma ideia fica bem cansativo. Eu tenho inveja de quem simplesmente acredita em tudo o que diz… eu acho.

Vamos ver primeiro pelo lado positivo: se você não tem esse “advogado do diabo” invadindo seus pensamentos o tempo todo, eu imagino que a vida deva ser mais tranquila de levar. As coisas parecem ser mais claras para quem tem uma opinião e simplesmente segue com ela. Eu vivo reclamando aqui de quem trata qualquer discussão como uma briga, mas sabe que faz algum sentido?

Não para chegar mais longe na sua capacidade de entender a realidade, mas para diminuir esse barulho mental. Num exemplo bem simples: uma pessoa que acredita cegamente na marca X tem um processo de compra mais simples e mais agradável do que quem entende dos elementos técnicos do produto. A pessoa ama a Apple e acha o máximo ter um celular da marca, então ela vai lá, junta dinheiro e compra o iPhone. O objetivo era claro, a forma como chegar nele também.

Tinha muita coisa para pensar se fôssemos pensar em custo/benefício, compatibilidade, softwares úteis, etc. A pessoa que simplesmente acredita no que pensa vai lá e faz, e pra ser bem honesto, o mundo não precisa ser tão complicado assim. Na maioria dos casos nem muda tanto a vida da pessoa ter um celular perfeito para seu orçamento e necessidades. Quase todos fazem as mesmas coisas, em níveis de eficiência diferentes, é claro, mas provavelmente o ser humano médio nem percebe essa diferença no dia a dia.

O celular é só um exemplo. Comprar candidato à presidência é bem parecido: se você ama uma das marcas e quer ir com ela, votar é até divertido. Objetivo alcançado com três batidas no teclado da urna eletrônica. Como não tem nenhuma voz te dizendo que sua escolha pode não ser uma boa ideia, a satisfação é plena. A sensação de missão cumprida é ótima, eu adoraria poder sentir isso mais vezes na vida.

Esse tema nem precisava vir para política e eleições, mas como estamos na proximidade delas, vale a pena explorar um pouco mais. Essa inveja que eu acho que tenho de quem tem certeza do candidato ideal para governar o Brasil não acaba na hora do voto. Tem algo que essa gente tem nas suas certezas que vai além da segurança da decisão: as consequências também não são tão incômodas se você tem essa visão simplificada das coisas.

Para usar um exemplo recente: vazou uma conversa de vários empresários de sucesso brasileiros fazendo um brainstorm sobre como aplicar um golpe de Estado caso o Bolsonaro não ganhasse. Não vamos nem entrar no mérito de legalidade disso, eu estou interessado nas certezas deles, e como essas certezas devem ser muito agradáveis de se ter. Ao pensar em como tornar o Brasil numa ditadura, não passa pela cabeça deles em nenhum momento que isso possa ter consequências negativas para seus negócios.

Porque na mente de quem tem esse tipo de certeza, não existem consequências. Isso eu acho fascinante. Imagine só que esses empresários tenham o que estavam planejando: se a economia do país desmontar por causa das inúmeras sanções que viriam depois de um golpe militar, não é culpa deles, é culpa da elite esquerdista satanista! As suas ações só podem ter consequências positivas no mundo, porque se qualquer coisa der errado, você joga a culpa no colo de algum inimigo ideológico.

Eu tenho inveja disso: imagine só viver a vida sem culpa? Sem ficar pensando como suas ações influenciaram o estado atual das coisas? Se você acerta, é um gênio. Se erra, espera… você não erra! Você foi sabotado por alguém maligno. Não tem como você tomar uma decisão ruim se você tem certeza de que está sempre certo. A sua lógica é eternamente infalível, o problema está sempre lá fora, então não existe necessidade de lidar com as frustrações da sua incompetência. Aliás, não tem nem o sofrimento de achar que deu azar… porque também não existe azar de verdade na mente dessas pessoas, é sempre a oposição agindo para te atrapalhar.

A vida parece bem mais simples desse jeito. Antigamente eu fazia piada dizendo que o problema do povão era a “enveja”, atualmente o termo mais correto é “haters”. É o mesmo conceito de empurrar seus problemas para frente, com um termo mais moderno. Não estou dizendo que essas pessoas estão sempre erradas, vivemos numa sociedade, afinal; mas esse comportamento de fechar os olhos para sua responsabilidade sobre a sua vida parece estar se espalhando com a era das redes sociais.

Eu queria mesmo era estar certo sobre tudo. Não ter que ficar calculando o quanto ceder para pontos de vista diferentes e medindo quais alternativas são mais razoáveis para o mundo que eu percebo. Enche o saco às vezes. Tem gente nesse mundo que acha que sabe o jeito exato de tocar um país inteiro, que acha que sabe exatamente o que aconteceu na nossa história até hoje, que sabe como funciona o mundo nos seus mais minúsculos detalhes.

Tem gente que tem mais segurança sobre a Terra ser plana do que eu tenho sobre o que estou vendo na minha frente a cada momento. Imagina só saber como funciona um chip de controle mental aplicado por uma vacina falsa para uma doença criada em um laboratório chinês? Imagina o poder de saber tudo isso? Eu nem consigo entender qual é a fonte de energia desse chip. Deve ser uma sensação muito boa saber como as coisas são, sem dúvidas, sem contradições, sem abertura para visões diferentes.

Que nem a pessoa comprando o iPhone no começo do texto: ela só sabe que comprou a melhor coisa que poderia comprar, e se alguém falar mal, obviamente está com inveja dela por ter feito a escolha perfeita. Conhecimento pode ser uma coisa muito amaldiçoada: porque até onde eu entendo sobre a realidade, a complexidade não parece terminar, por mais que você tente explicar.

Outro dia desses eu fiquei sabendo sobre um estudo que sugere que os prótons são formados por cinco quarks e não três. Se é verdade eu não sei e não tenho mecanismos para saber enquanto gente especializada não se aprofundar nisso. Não muda a minha vida, é claro, a conta esperando para ser paga está pouco se lixando para a estrutura fundamental da matéria, mas é mais uma lembrança de que a certeza… a certeza é fisicamente impossível.

E eu realmente acho que essa ideia é um tipo de vírus ideológico. É isso que enlouquece filósofos e matemáticos. A complexidade caótica do sistema: quanto mais você olha para uma coisa, mais opções ela te dá. As dúvidas aumentam numa velocidade maior que as respostas. E o conceito de vírus não termina aqui, não só ele se espalha dentro de uma mente, como ele tem um impulso natural para contaminar outros organismos.

Eu sei que esse texto não é dos mais agradáveis de ler. Eu sei. Mas eu me sinto compelido a contaminar outras pessoas. Como dito no começo do texto, é claro que eu tenho noção de que tudo isso soa muito arrogante, “veja só como eu sou mentalmente complexo”, eu sei que é o tipo de papo que te deixa isolado em basicamente qualquer situação social…

Mas o vírus da complexidade precisa ser disseminado. Eu tenho inveja de quem não foi contaminado. De quem simplesmente dá uma opinião e não fica com trinta pontos de vista internos, todos conflitantes, brigando para saber quem está mais certo. Será que você considerou tudo o que tinha que considerar antes de falar alguma coisa? Será que tem variáveis escondidas? Claro que sim, claro que sim! A complexidade é infinita.

Você está contaminado? Por que não? Por que eu tenho que lidar com isso e você não?

Por quê?

“Ih, o Somir finalmente pirou…”

Que nada. Ontem eu vi o jogo do meu coringão torcendo que nem um tonto. A complexidade é infinita, mas a nossa mente não é. Foi só uma sequência de parágrafos de brincadeira. Queria demonstrar como você pode se afundar em qualquer linha de pensamento se tiver vontade. Todo pensamento pode enlouquecer, desde que você o deixe te enlouquecer.

Eu ainda acho que somos basicamente todos a mesma porcaria, a diferença está no que você coloca energia. Acredito que tenhamos muitos leitores que vivam com o mesmo tipo de dúvida existencial que eu brinquei de me perder aqui: o medo de não estar certo. O medo de não ter visto tudo o que deveria ter visto antes de falar ou agir.

De uma certa forma, eu invejo esse povo que toca a vida cheio de certezas, porque eles não gastam tempo e energia com bobagens que não acham importantes. Mas não tenho inveja nenhuma da limitação que isso gera: a pessoa só consegue trocar o seu exagero, nunca chegar num meio-termo. Ficar com dúvidas existenciais é meio chato, mas no final das contas é só o cérebro fazendo um pouco de musculação. Na hora que você precisar, provavelmente a força extra vai te ajudar.

Quem vive com certezas, políticas, religiosas ou comportamentais, pode até ter o conforto de não lidar com o sofrimento da dúvida, mas em troca vive com medo da própria sombra. Sem entender a complexidade da realidade, parece que tudo está lá para te pegar. Que o aleatório tem motivo, que o diferente é inimigo.

Quando na verdade não precisam ser nada disso. Eu posso até pecar por pensar demais, mas no final das contas o mundo não me parece tão assustador assim. Não tem ninguém tentando me derrubar, não tem conspiração para piorar minha vida… só tem complexidade natural, com a qual você lida da melhor forma que puder.

Eu tenho inveja pontual dessas certezas, mas no final das contas, eu acho que esse modelo mais moderado de pensamento gera menos sofrimento. A complexidade não tem uma resposta ideal, tem incontáveis respostas… uma delas vai acabar servindo.

Creio eu.

Para dizer que vai me internar, para dizer que o tema do texto foi “sim”, ou mesmo para dizer tem certeza que foi infectado também: somir@desfavor.com


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