Skip to main content
Fé na violência.

Fé na violência.

| Somir | | 14 comentários em Fé na violência.

Eu tenho uma teoria: pode ser que a ideia de que religião ajudou o ser humano antigo a se comportar não tenha tanta lógica assim. Entre crentes e ateus, esse argumento que a religião tinha uma função de manutenção da ordem no passado acaba sempre aparecendo nas discussões. Mas será que dá para falar sobre isso ignorando o fato de que as pessoas eram muito mais violentas antigamente?

Primeiro é bom estabelecer a ideia da última frase: se você olhar o número de mortes violentas de um país como o Brasil nas últimas décadas, fica difícil argumentar que a violência era maior no passado. Eu concordo que não parece muito razoável, mas só até você contabilizar quantas dessas mortes acontecem pelo uso de armas de fogo.

A tecnologia entra nessa conta. Nunca o ser humano teve tanta facilidade para ferir mortalmente o outro. Uma simples “três oitão” é leve, confiável, relativamente barato, funciona à distância e tem um altíssimo grau de letalidade. E essa é uma arma arcaica em comparação com as que estão na mão de criminosos e malucos em geral. Ficamos mais eficientes na violência, isso com certeza, mas o grau de aceitação de violência desabou dos últimos séculos pra cá.

Se você já conversou com pessoas mais velhas, provavelmente já ouviu histórias sobre surras pesadas sofridas na infância deles. Criança tomando cintada pra baixo. Preste atenção como o número de relatos de violência desse tipo diminuem drasticamente com o passar das gerações. Se você tem um avô ou avó vivos, eles provavelmente apanharam feio em algum ponto da vida. Seus pais devem ter menos histórias disso, e você tem uma boa chance de ter no máximo uns tapas na memória.

No começo do século passado era totalmente aceitável sentar a porrada nos filhos, e digo mais, até no filho dos outros, porque os pais tinham outra ideia sobre o custo/benefício da porrada no desenvolvimento do ser humano. Hoje em dia, se você der um tapinha na mão de uma criança para fazer ela não encostar no fogo, é capaz dos pais dela tentarem te processar.

Bater em mulher era muito tolerável no passado, claro, desde que fosse a sua. Eu argumento até que não era tão traumático pelo simples fato das pessoas acharem que era parte da vida. Em países minimamente civilizados, essa tolerância desapareceu. Com certeza não chegamos ainda numa sociedade que protege a maioria das pessoas da violência, mas a mentalidade de que violência contra pessoas mais fracas não é aceitável já faz parte sim das sociedades modernas.

Ainda há muita impunidade, mas a ideia de que não pode se espalhou. E virou a linha base de como enxergamos uma sociedade funcional. Não pode sair espancando as pessoas, não pode usar a força para resolver problemas, existem leis e existe um monopólio de uso da violência pelo Estado. Isso vale muito menos se você for pobre, mas o “espírito do tempo” mudou. Sim, as pessoas se matam com muita facilidade atualmente, mas a Lei da Selva não é mais a regra dominante em Estados democráticos de direito. É mais sobre a tecnologia incrível de matar pessoas que desenvolvemos do que propriamente uma permissividade maior de violência.

Agora, vamos voltar ao argumento comum de que no passado, na falta de leis e governos como conhecemos, eram as religiões que mantinham o ser humano “na linha”. Que o medo de punição divina de alguma forma nos fez passar de homens das cavernas para seres civilizados.

A primeira coisa a se considerar é o grau de abstração que uma mente de milênios atrás era capaz de manter. Com certeza muito maior que outros animais, mas muito se engana quem acha que somos homens das cavernas com celulares: muitos dos instintos são os mesmos, mas geração a geração, o grau de complexidade das coisas que o ser humano faz e pensa aumenta exponencialmente. Não é que o seu antepassado que começava a entender agricultura fosse burro, é que não tinha muito como treinar pensamento abstrato.

A vida realmente era mais simples. A exigência física era muito maior, a expectativa de vida muito menor, e quase todo mundo tinha que ser um generalista nas questões de sobrevivência. Não havia muita coisa empurrando o ser humano na direção da filosofia e da ciência. As pessoas faziam o melhor que podiam com os recursos limitados que tinham. Vou repetir: o ser humano antigo não era burro, ele só era muito mais utilitarista. O que funcionava na prática ele fazia, o resto era desperdício de tempo e energia.

E violência, gostemos nós ou não, funciona na prática. Funcionava no tempo das cavernas, funciona no tempo da internet. Todo ser humano entende a linguagem da dor. É evidente que quanto mais você volta no passado, mais gente vai ser fluente nessa linguagem… bater em alguém ou ameaçar bater em alguém funciona que é uma beleza. Se não temos muita gente capaz de articular o que pensa, e uma quantidade igual de gente que não entende ideias muito complexas, porrada é comunicação.

Funciona, mas não vai muito longe. Nossos antepassados viveram na base da violência, mas geração a geração sentiram que aquilo não estava indo muito longe. O problema da linguagem da violência é que ela só tem duas palavras: “não” e “agora”. São as versões mais poderosas das duas palavras, mas se você quer expressar alguma coisa além disso, a violência te deixa na mão.

Sim, nossos antepassados eram mais brutalizados e provavelmente não se traumatizavam tanto com surras e ameaças, mas mesmo assim eles começaram a se mexer para colocar mais palavras na nossa comunicação. Depois da carnificina das duas guerras mundiais do começo do século passado, até resolveram criar os direitos humanos universais. Uma boa parte da humanidade resolveu que não dava mais pra seguir daquele jeito.

Essa gente aprendeu na prática que violência como regra geral nos atrasava demais, o benefício de comunicação eficiente de “nãos” e “agoras” não compensava mais o custo de todas as outras palavras ficarem em segundo plano. Não foi um plano consciente das pessoas, foi uma percepção da realidade que atingiu muita gente ao mesmo tempo, e fez com que o século XX tivesse mais avanços sociais e científicos do que os milênios anteriores somados. O mundo não é perfeito, nem mesmo é minimamente justo para uma grande maioria de miseráveis, mas o mundo no qual nascemos é praticamente inexplicável de tão pacífico, abundante e livre para quem viveu em séculos anteriores.

Começam a ver como o argumento de que a religião controlava o ser humano no passado começa a ficar meio contaminado?

Como separar o mundo antigo da violência socialmente liberada? Sim, quase toda civilização tinha algum conjunto de regras ou leis, mas a violência era muito mais tolerada. Você podia até ter escravos! Você podia bater em qualquer pessoa dentro da sua casa (se fossem homem), você podia exterminar grupos rivais sem repercussões sérias. Se você fosse amigo do Rei então? Quase ninguém poderia ser protegido de você.

E aí? Dá pra dizer que a religião teve um papel importante em controlar o ser humano de seus instintos mais selvagens se ao mesmo tempo a pancadaria era liberada? Quem estava controlando o povão? O medo de Deus ou o medo de tomar pedrada ou espadada?

Eu costumava dar o benefício da dúvida para quem me dizia que religião teve seu papel na antiguidade para manter o ser humano mais ou menos civilizado, mas esse tempo se foi. Eu não consigo mais separar violência de religião nesse contexto histórico. Não é que a religião obrigava a violência, não é nem esse tipo de crítica, é que a violência foi a pedra fundamental do controle populacional por muitos e muitos séculos.

Se quem estava te batendo tinha uma cruz no peito ou não, tanto faz, doía do mesmo jeito e te desanimava de tentar de novo do mesmo jeito. Até porque se você for estudar a história da maioria das religiões, elas são inseparáveis do poder financeiro e militar. Nem todos os amigos do Rei cabiam dentro do exército… a religião permitia todo um novo conjunto de cargos de poder.

E não estou tirando da equação a fascinação do ser humano médio com religião: sim, as pessoas acreditavam em amigos imaginários assim como acreditam hoje em dia. Eu não duvido nem um pouco da fé de seres humanos antigos ou modernos, só estou dizendo que na vida real a ameaça de punição divina não é uma força tão grande assim. Desde os papas católicos que viviam em orgias até os evangélicos modernos que proíbem terreiros de Umbanda nas áreas onde vendem drogas… o ser humano não é conhecido pela consistência na obediência das regras sagradas.

Teríamos igrejas de qualquer jeito, boa parte das pessoas quer acreditar que faz parte de algo maior e religiões resolvem esse problema, mas daí a dizer que a ferramenta de controle social era algo abstrato como retribuição divina? Difícil de aceitar, não?

A Inquisição (que eu sei que foi muito menor do que se diz na cultura popular) partia para a violência e a tortura porque essas eram ferramentas testadas e aprovadas por milênios de brutalidade humana. O medo de apanhar, ser torturado ou assassinado sempre funcionou. E antes que a turma mais conservadora se anime: não estou advogando usar violência para resolver problemas sociais modernos. A humanidade mudou de rumo por um motivo, pela experiência de milhares de gerações que acharam tudo isso uma porcaria tão grande que conseguiram mudar a mentalidade de boa parte da humanidade.

Sério, imagina a dificuldade de controlar boa parte da Lei da Selva em animais como os humanos? Essa coisa de “ter dó de bandido” (que não é ter dó de bandido, é proteger inocentes e caso não forem ter uma boa noção de proporcionalidade da punição) vai contra muitos instintos, mas a alternativa era tão horrível que milhões e milhões morreram lutando pra gente não ficar travado naquele ponto. A Era da Violência era uma merda: as pessoas viviam pouco e não tinham sequer esperança de justiça durante esse pouco tempo. Saímos disso por um motivo. Quem acha que está ruim agora é gente que não duraria uma semana sem traumas psicológicos severos se vivesse meros 100 anos atrás.

A humanidade se desenvolveu numa brutalidade utilitarista que não precisava de nenhum componente religioso para funcionar. Religião era algo pra fazer, algo pra acreditar… as regras vinham de quem tinha mais poder de bater nos outros. Eu argumento inclusive que as pessoas do passado gostavam de Jesus do mesmo jeito que as pessoas de hoje gostam do Harry Potter (a imagem atual de Jesus é fanart, literalmente, ele era uma espécie de anjinho andrógino antes da Idade Média).

Se você quer argumentar sobre o valor da religião na nossa história, eu aceito muito mais a ideia de um hobby do que propriamente uma ferramenta de controle para nos proteger de nossos instintos selvagens. Se tivessem inventado o futebol mais cedo, talvez nem tivéssemos religião… no final das contas, não dá pra fazer a nossa história sem violência, mas trocar o passatempo preferido? Dá sim.

Para me chamar de herege, para dizer que religião é ganância com mais etapas, ou mesmo para dizer que ainda acha que só a violência resolve: somir@desfavor.com


Comments (14)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: