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Precisamos conversar sobre isso…

Precisamos conversar sobre isso…

| Sally | | 10 comentários em Precisamos conversar sobre isso…

O que é normal, no sentido de aceitável, quando falamos em sexo?

Não é uma questão tão fácil de responder. O senso comum nos diz que se não causar mal a ninguém e se for consensual, está tudo certo. Mas será que dá para simplificar tanto a questão?

Não espere respostas deste texto, apenas material para refletir e chegar à sua própria conclusão, afinal, o que é considerado normal/aceitável sempre vai variar conforme a época, a cultura e a lei – e sempre vamos ter zonas cinzentas. A proposta é repensar como tratamos todas as pessoas que caem no nosso conceito de “anormais” em matéria sexual.

O que é “normal” é um conceito muito variável. Até 1987, homossexualidade era tratada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma doença, mais especificamente, um transtorno mental. Era, inclusive, chamada de “homossexualismo” (ismo = doença). Hoje é impensável defender que sentir atração por pessoas do mesmo sexo seja algum tipo de distúrbio ou transtorno mental. Em 35 anos, que, em matéria de história e construção cultural, é muito pouco, as coisas mudaram completamente.

Hoje, tudo aquilo que se considera “anormal”, no sentido de ser classificado como um transtorno, está previsto no DSM-4, o guia mundial do diagnóstico psiquiátrico. Ele tem uma seção inteiramente dedicada aos “transtornos sexuais e de gênero”. Se você tiver curiosidade de conhecer em detalhes, é só procurar no Google.

Isso quer dizer que se você gosta de fazer algo do que está ali você é doente, você tem um transtorno e você precisa de tratamento? Para alguns sim, mas será mesmo? Mas será que é tão preto no branco? Ali existe um guia geral de condutas que, se comprometerem sua saúde, segurança ou rotina funcional, demandam cuidados.

E cuidados não significa uma camisa de força e hospital psiquiátrico, nem medicação, nem qualquer estereotipo que você possa imaginar para uma pessoa com “transtornos mentais”. Os cuidados dependerão de cada caso e nem sempre são com objetivos “curativos”, ou seja, para que a pessoa tente modificar suas preferências. Podem ser apenas ferramentas para que a pessoa viva melhor, sem mudar o que ela é.

É possível que a pessoa precise fazer terapia apenas para se aceitar e não viver em conflito como o que ela é. É possível que a pessoa precise fazer terapia para aprender a lidar de uma forma diferente com o que ela é. É possível um milhão de opções, dependendo do caso e do quanto aquilo afeta a vida, o bem-estar e a felicidade da pessoa.

E muitas vezes nem mesmo se trata do que a pessoa sente ou faz, e sim da gradação que isso toma na sua vida. Um exemplo: fantasias sexuais são comuns, é perfeitamente normal. Mas, quando a pessoa apenas consegue se satisfazer dessa forma, isso pode se tornar um problema. São as chamadas “parafilias”, a sensação de prazer sexual em situações, digamos, inusitadas.

Aí entramos na área cinzenta. Parafilia é anormal? Depende da época, do contexto social e da lei. Podolatria (atração sexual por pés) é uma parafilia relativamente bem aceita, vários famosos já assumiram que a possuem. Se os parceiros estão de acordo, se a pessoa não tem qualquer complexo, culpa ou não-aceitação sobre ela mesma e se é possível levar uma vida satisfatória para todos focando nos pés, talvez não tenha nada para se mexer ali.

Quando falamos de parafilia que envolvem objetos inanimados, entramos em uma área mais cinzenta. Pessoas que só conseguem prazer sexual com árvores, estátuas, balões e coisas do tipo podem ter uma vida completa, funcional e sem sofrimento? Talvez algumas consigam, talvez outras não.

Não estou dizendo que, para ser feliz, é essencial ter um relacionamento amoroso ou afetivo com outro ser humano. Talvez não seja. Talvez para alguns não seja. Não me atrevo a fazer nenhuma afirmação. A questão é: a pessoa que possuí a parafilia consegue, em seu contexto social, encontrar satisfação sexual sem comprometer sua saúde, sua segurança e sua liberdade?

Desculpa a simplificação, mas, apenas para fins didáticos, uma pessoa que tem fetiche em látex, por exemplo, e que só consegue fazer sexo se parceiros estiverem usando algo de látex, pode conseguir um acordo ou um combinado que lhe sirva muito bem e se realizar. Mas o quanto isso restringe a vida da pessoa? É um preço que dá para pagar de boa?

Se essa redução no campo de pessoas com as quais pode se relacionar causar algum tipo de transtorno ou dificuldade na vida da pessoa, uma terapia pode cair muito bem, mesmo que não seja para “curar” o fetiche em látex (eu sinceramente nem sei se é algo a ser curado), mas para comunicar isso de uma forma melhor aos parceiros, para compreender melhor e criar mecanismos para lidar com isso.

Pegando um pouco mais pesado, certas parafilias fatalmente são algo complicado de se lidar. Por exemplo, a Emetofilia, a excitação por vomitar ou ver o outro vomitando. Você pode estar se perguntando “Mas Sally, alguém no mundo faz isso?”. Olha, deve ter gente fazendo, já que tem até apelido carinhoso para a prática: “banho romano”. Eu imagino que não seja algo praticado em larga escala, por isso, deve dificultar bastante a vida de quem depende disso para sentir prazer.

Aí entra a questão física também. Vomitar regularmente gera uma série de problemas ao organismo, nosso sistema digestivo não está pensado para vomitar. A acidez do suco gástrico é muito bem tolerada do estômago para baixo, para cima pode causar inúmeros transtornos de saúde, desde azia até câncer de garganta e perda dos dentes. Então, é possível que a pessoa cause um dano físico a seu corpo.

Até que ponto é uma “liberdade de escolha” quando o que a pessoa pratica lhe causa danos físicos? Quero dizer, até que ponto há discernimento e sanidade mental para que isso seja tratado como uma escolha? Talvez estas pessoas não estejam fazendo uma escolha, talvez seja uma compulsão ou algo equivalente.

Existem casos em que a pessoa certamente causará um dano físico a seu corpo. Dependendo da parafilia e da forma como ela é praticada, podem ser inclusive danos irreversíveis. Conversando com amigos plantonistas, as histórias de machucados e até mutilações perpetradas por casais sadomasoquistas assustam. “Mas Sally, se eles gostam, se eles estão de acordo, se eles querem, qual é o problema?”. O problema é querer e gostar de fazer mal a você mesmo. Sim, isso é um problema.

Então, existe outra camada a ser observada, que vai muito além do consentimento e do gostar. Se, para ter prazer sexual a pessoa precisa de uma mutilação, precisa causar um dano que compromete sua integridade física, mesmo com consentimento, tem algo para ser olhado aí. Sempre que o instinto de autopreservação falha e pessoa sente prazer em sistematicamente fazer mal ao seu corpo, da forma que for (sexo, comida, cigarro etc.) tem algo que deve ser olhado. O quanto antes, melhor.

Esse papo de “respeitar” a escolha dos outros é bem relativo. Eu respeito uma escolha consciente, com discernimento, feita por pessoas capazes. Se a escolha é se destruir, no mínimo, falta discernimento. Gostar de se destruir é um dos principais sintomas de que uma pessoa não está bem, não importa a ferramenta que ela tenha usado para se destruir. Permitir que ela o faça não é respeitar a escolha, é abandonar uma pessoa que precisa de ajuda.

“Mas eu quero, a escolha de vida é minha, eu posso continuar fazendo”. Sim, você pode. Não é esse o meu argumento. O argumento é: se você gosta ou não consegue parar de praticar algo que ataca seu corpo, esse justamente é o problema: você gostar ou não conseguir deixar de fazer algo que ataca o seu corpo.

Goste a pessoa ou não, isso é um sintoma, que precisa ser olhado, compreendido e adaptado para que a pessoa não se destrua e não destrua a vida dos que estão à sua volta. “Mas eu quero” só é um argumento válido até os 5 anos de idade. O fato em ter prazer ao fazê-lo não torna a conduta válida. Vamos prosseguir, para provar meu ponto.

Saindo completamente da zona cinzenta para um campo onde não há muito questionamento: quando causa algum tipo de sofrimento, dano ou sequela a terceiros ninguém discute que é errado. Pedofilia é o exemplo mais conhecido, mas existem outros casos que são considerados “menos reprováveis” socialmente. Por exemplo o Frotismo, prazer sexual que se tem ao esfregar-se em outra pessoa sem o seu consentimento, também conhecido como “transporte público carioca”.

Não é socialmente viável se esfregar em pessoas sem o seu consentimento. Pode ser feito? Sim, repetidas vezes. Mas, além do dano que você causa aos outros, em algum momento isso vai ter um custo. É crime e é algo que enfurece as pessoas. Portanto, não parece um bom projeto de vida: causar desgosto, danos emocionais e raiva a terceiros como caminho para se satisfazer sexualmente. A pessoa vai acabar presa, vai acabar apanhando ou até coisa pior. “Mas eu quero”. Ter esse querer é justamente o problema.

Aí entramos por uma bifurcação: tem o caminho de dizer que são pessoas “doentes”, vítimas de seus impulsos que não controlam, com problemas mentais e tem o caminho de dizer que são pessoas que sim tem controle de seus atos, apenas escolhem passar por cima do resto para se satisfazer. Ambos os lados apresentam argumentos válidos.

Por tudo que eu já vi trabalhando com direito criminal, posso afirmar que existem pedófilos que não gostam de ser pedófilos, que gostariam muito de ser diferentes e que inclusive pedem para continuarem presos depois que cumpriram sua pena pois tem medo de não se controlar e voltar a fazer o mesmo novamente. Pessoas que genuinamente parecem ter consciência do dano que causam e tentam lutar contra isso, geralmente perdendo a batalha.

O que nos leva à pergunta principal deste texto: mais do que se perguntar se a prática X ou Y é normal, a pergunta de um milhão de dólares é: É normal um ser humano não conseguir controlar seus impulsos sexuais?

Como eu havia avisado no começo, não tenho qualquer capacidade, conhecimento ou pretensão de responder a essa pergunta. Em tese, penso que não somos bicho, somos racionais e sim podemos controlar os mais diferentes impulsos. Na prática, quando vejo uma lagartixa saio correndo e não há qualquer condição de controlar essa fobia. Esse descontrole pode acontecer também no campo sexual?

É socialmente aceito que uma pessoa não consiga controlar um medo de barata, por exemplo. É socialmente aceito que se uma barata aparecer na sala as pessoas gritem e fujam. Existem uma série de outros comportamentos que são socialmente aceitos e envolvem descontrole. O que eu pergunto é: será que existe alguma anomalia (pela falta de palavra melhor), psíquica ou neurológica que faz com que algumas pessoas não consigam controlar seus impulsos sexuais?

Até que ponto a capacidade de refrear seus impulsos sexuais tem componentes biológicos inatos ou é socialmente construída? Será mesmo que todo estuprador, pedófilo e demais pessoas que causam danos a terceiros com seus impulsos nocivos tem condições de freá-los? E será que existe um tratamento que forneça a estas pessoas as ferramentas que precisam para refrear esses impulsos? Não tenho resposta para nada. Pensa aí e me fala.

Vamos deixar uma coisa clara: em momento algum ouso sequer pensar em autorizar esse tipo de conduta. Ainda que seja uma doença, ainda que a pessoa não possa se controlar, ela tem que ser afastada do convívio social, pelo dano que causa a outras pessoas. Isso eu não negocio. O que eu pergunto é: a pessoa faz por não conseguir se controlar ou a pessoa faz por ser egoísta e passar por cima dos males que vai causar a terceiros?

E se a pessoa faz por não conseguir se controlar, existe alguma forma viável de ajudá-la a desenvolver esse freio, caso ela queira? Não estou falando de castração química, isso é suprimir o desejo sexual, não demanda nenhum controle da pessoa. Estou falando da possibilidade desse descontrole ser causado por um trauma que pode ser trabalhado e atenuado, cessando o comportamento ou de ser qualquer espécie de desequilíbrio bioquímico que possa ser medicado. E não estou afirmando, estou perguntando.

A única coisa que eu tenho condições de afirmar a vocês é: a punição, como a conhecemos hoje, não resolve o problema. Como não existe prisão perpétua no Brasil, cedo ou tarde essas pessoas voltam para as ruas, e fazem novas vítimas. E se você ousa levantar a questão de buscar novas soluções você “está passando pano para estuprador”. Assim fica difícil. Como está, não dá certo. Quem ousa tentar repensar o que é feito, é atacado.

Eu me recuso a acreditar que ser um pedófilo ou estuprador seja a condição “normal” de uma pessoa. Socialmente, sabemos que não é normal, mas muita gente acredita que, para a pessoa que o pratica, é perfeitamente normal. No mínimo, falha algo na percepção do outro, algum tipo de psicopatia que o faz não ver ou não se importar com o estrago que causa na vida alheia. E isso que falha, pode ser devolvido? Ou é irreparável?

Se não é normal agir assim, como fazer para restaurar o estado normal dessas pessoas? É possível? E se não for possível, não seria o caso de buscar outra solução em vez de deixar 5 anos na cadeia e soltar de volta? (essa é a média de pena que cumpre um estuprador).

“Ain, quer deixar estuprador solto?”. Não. Quero ENTENDER, para poder pensar em uma solução melhor. Nada impede de pensar em opções ainda piores, como pena de morte, prisão perpétua ou deportar todo mundo para uma ilha isolada. A questão é: precisamos conversar sobre isso, como está, não dá certo.

Precisamos parar de reagir com ira, com fúria, com raiva, pois não se tomam boas decisões quando somos guiados por estes sentimentos. Precisamos compreender o que é e de onde vem para determinar o mais saudável a se fazer em prol da sociedade. Se é algo imutável, que não pode ser tratado, melhorado ou curado, precisamos de uma nova solução para esses casos, que não devolva a pessoa à sociedade.

Então, antes de reagir com o padrão “estuprador tem tudo que morrer”, lembre-se que no Brasil não há pena de morte (apenas em casos de crimes de guerra), então, não adianta ficar repetindo isso. Não é uma opção. Quais são as opções? O que a ciência diz? O que a psicologia diz? Quando é tratável? Como? Quem avalia isso? Desculpa tomar seu tempo com esse tema desagradável, mas essas pessoas com condutas sexuais “anormais” são problema de todos nós e sim, temos que pensar melhor em como lidar com eles.

Em 2021, anos de pandemia, em que bem ou mal as pessoas saíram menos de casa, o Brasil teve um estupro a cada dez minutos. Então, não, eu não aceito o “tem que prender mesmo”. O “tem que prender mesmo” não está funcionando. O “tem que matar mesmo” não é executável, pois a Constituição proíbe. Bora debater e tentar chegar a uma solução melhor e possível?

Acredito que é hora da sociedade revisitar o tratamento que dá às pessoas que não considera sexualmente “normais”. Não apenas em casos extremos, como estupro e pedofilia, mas em todos os casos. Em alguns estamos sendo injustos e opressores e em outro excessivamente tolerantes. Gaste qualquer dez minutos para pensar a respeito e, se quiser, deixa um comentário.

Para dizer que qualquer parafilia é doença, prejudica a vida da pessoa e precisa de tratamento, para dizer que em breve vamos ter que conversar sobre isso por causa da mecanofilia (atração sexual por máquinas e robôs) ou ainda para dize que a sociedade ainda não está pronta para ter essa conversa:sally@desfavor.com


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