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Pra russo ver.

Pra russo ver.

| Desfavor | | 12 comentários em Pra russo ver.

O conflito na Ucrânia permite revelar quem são os “traidores” na Rússia e “purificar” o país – afirmou a Presidência russa nesta quinta-feira, 17. (…) De acordo com Putin, “o império da mentira”, que inclui países, veículos de comunicação e redes sociais ocidentais, vai querer se apoiar em “uma quinta coluna de nacional-traidores” para alcançar seus objetivos antirrussos. LINK


Putin vai subindo o tom, a guerra continua… não deveria ter alguma forma de impedir isso? Deveria, mas na prática não tem. Desfavor da Semana.

SALLY

Putin declarou publicamente que esta guerra vai servir para “purificar” a sociedade russa, separando o cidadão de bem dos “traidores”, que seriam aqueles que questionam de alguma forma a invasão à Ucrânia ou as mentiras fantasiosas que ele inventou para justificá-las. A essas pessoas, os traidores, ele prometeu duras punições para gerar um “expurgo social”.

Olha, se na semana passada eu estava preocupada com o povo ucraniano, esta semana eu também estou preocupada com o povo russo. O povo russo não se confunde com seu presidente, o povo russo, ao que tudo indica, também é vítima dele.

Por qual motivo o resto do mundo não pulou quando ouvir essa declaração pública do Putin? O último que falou em purificação e em expurgar pessoas da sociedade criou o Holocausto. Ninguém está se incomodando não? Vão pagar para ver?

Talvez o povo russo precise de tanto socorro quanto os ucranianos, com a diferença de que o mundo todo sabe e entende o que está acontecendo com os ucranianos, mas, boa parte do mundo não tem a menor ideia do que está acontecendo com o povo russo.

2022 e tem Chefe de Estado falando publicamente em “purificar a sociedade” e em “expurgo social”. E ninguém está fazendo nada a respeito. Alguns tem a arrombância (qualidade do arrombado) de falar que o povo russo deveria fazer algo e derrubar o Putin. Como assim o povo tem que resolver? O povo russo não vive em uma democracia, ele não tem condições de resolver nada. Se você pronunciar a palavra “guerra” pode ser preso, enviado para campos de trabalho forçado ou até morto.

Na faculdade de direito eu cursei, como matérias obrigatórias, Direito Internacional I, II e III. Tive que ler todas as resoluções, tratados internacionais, estatutos e todos os mecanismos que já foram criados pela ONU e pelas cortes e organismos internacionais para coibir… justamente isso que está acontecendo agora.

Depois dos horrores da última guerra, a humanidade se reuniu e disse: ok, passou dos limites, isso nunca mais pode acontecer e fundou a ONU, para assegurar que atrocidades nunca mais aconteçam. Desde então, não apenas a ONU como vários organismos internacionais editaram mil normas, convenções, tratados, estatutos e o diabo para impedir que as atrocidades se repitam. E… estão se repetindo. E… ninguém está fazendo nada.

Isso quer dizer que os mecanismos de contenção que a sociedade humana criou para que todas as barbaridades cometidas em outras guerras e conflitos não se repitam forma inúteis. Quase cem anos criando infinitas regras que, na prática, não estão fazendo absolutamente nada para ajudar quem precisa. Um século de intermináveis reuniões, incontáveis documentos, resoluções e todo tipo de norma assinada por dezenas de países, para nada. E pior: gastando bilhões, trilhões de dólares para isso e no final, tudo está se mostrando inútil.

Uma nação invade o território de outra nação democrática, independente e soberana, com agressões bélicas, matando civis e cometendo crimes de guerra diariamente enquanto as pessoas desse país agressor que se posicionam de forma contrária a esse ataque são mortas a mando do Presidente, que admite isso em público chamando seu autoritarismo de “expurgo social necessário”. Parabéns, ONU, desde 1945 vocês queimam verdadeiras fortunas para coibir atrocidades e não adiantou nada.

Quando Arnold Schwarzenegger faz mais pela população da Ucrânia e da Rússia em nove minutos do que a ONU em 80 anos, é hora de se perguntar por qual motivo se investe tanto tempo e dinheiro em organismos internacionais incapazes de proteger as pessoas de atrocidades.

Além do desperdício de tempo e recursos, o recado que se manda para o mundo é péssimo: melhor o seu país se armar, ter armas de destruição em massa, pois se outro país resolver te invadir e acabar com você, ninguém vai te ajudar.

Eu sei que essa não é a resposta, nem o caminho. Mas não estou certa de que todos os Chefes de Estado saibam. Tem muita gente falando “tá vendo? O Kim Jong-Um estava certo”. Um mundo que prova o ponto do gordinho maluco da Coreia do Norte é um mundo abominável.

Ou cria a porra da norma e impõe seu cumprimento, ou pega esses trilhões de dólares gastos desde 1945 com a ONU e faz coisa mais útil, como dar comida, rede de esgoto e vacina para o mundo todo. Gastar fortunas e tempo para criar letra morta que não impede as piores atrocidades no que diz respeito às violações de direitos humanos não pode ser uma opção.

O lado bom é ver como pessoas estão conseguindo mudar a história. A internet está permitindo que algumas pessoas façam a diferença, como Arnold Schwarzenegger. Ainda bem que o mundo tem essas pessoas, que não esperam por instituições, por Chefes de Estado ou por “alguém que faça alguma coisa”. O que só reforça meu ponto: uma pessoa pode sim fazer a diferença, em um mundo conectado. Só que a maioria parece não ter percebido isso e estar imersa na crença de “eu não posso fazer nada”.

Se antes havia dúvida, agora não há mais: as travas que criamos, como sociedade, para coibir abusos, retrocessos e violações a direitos humanos NÃO FUNCIONAM. Quem não é atacado ou escrotizado não o é por ter armas, dinheiro ou poder, não por resolução internacional.

Hoje é com a Ucrânia (e com o povo russo), amanhã pode ser com seu país ou com o meu. Levantem a bunda do sofá e aprendam a mobilizar pessoas sozinhos, se depender de Chefe de Estado, de diplomata, de organismo internacional, estamos todos fodidos.

“Ain, mas Sally, o que eu posso fazer a respeito?”. Muita coisa. Para começo de conversa, ter vergonha na cara e não votar nem em Lula, nem em Bolsonaro, que estão passando pano para Putin. Não apoiar quem tolera ou não repudia o que está acontecendo é um ótimo começo.

Comecem a se conscientizar de que uma pessoa pode mudar o mundo. Todo mundo tem poder de mudar o mundo se souber o que fazer e como fazer. Comecem a abandonar essa autoestima vira-lata de achar que não vai adiantar fazer nada. As instituições estão falhando, ou contamos com as poucas pessoas capazes que têm no mundo, ou estamos ferrados.

Para dizer que estamos ferrados, para dizer que eu deveria estar falando sobre os riscos de abolir o uso de máscaras (próximo FAQ) ou ainda para dizer que Putin não está de todo errado: sally@desfavor.com

SOMIR

A hegemonia americana desde que a Guerra Fria se viu decidida (e isso aconteceu bem antes da queda do Muro de Berlim, a União Soviética vinha em queda há décadas) acabou moldando a forma como a maioria de nós com menos de meio século de vida vemos o mundo.

O “bicho-papão” comunista já assustava muito menos quem veio para o mundo dos anos 70 do século passado pra frente. Pessoas que na segunda década do século XXI já estão chegando nos topos de suas carreiras e poder de influência. O mundo ainda tem vários líderes que viram na prática um mundo com mais de uma potência, mas eles vão continuar dando espaço para essas novas gerações criadas durante a chamada “Pax Americana”.

Pax Americana é um termo revitalizado do tempo dos romanos, quando o império baseado no Mediterrâneo tinha tanto poder ao ponto de estabilizar as relações entre povos e nações da antiguidade. A Pax Romana (Paz Romana) significava que diante de uma força tão grande quanto a dos romanos, todas as disputas se resolviam rapidamente: ninguém tinha poder para desafiá-los, e ninguém discutia as decisões que tomavam.

Por mais que isso arrepie os cabelos de pessoas com viés mais libertário como eu, existe estabilidade diante de um poder hegemônico. Depois de mais de meio século de Pax Americana, a minha impressão é que a maioria de nós que não viu o mundo dividido ou tem memórias de grandes guerras acabou enganado: achamos que alguma coisa tinha realmente acontecido com a criação da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Não era uma nova fase da humanidade, eram os americanos com armas e dinheiro suficientes para desencorajar qualquer tipo de desafio. Isso se parece muito com um período de paz conquistado por evolução da espécie, tanto que mesmo gente que vive num país brutalizado como o Brasil acabou caindo no conto.

“Mas os russos não podem simplesmente invadir um país e começar a matar gente, né?”

Não só podem como estão fazendo. Ou Putin sabia disso faz tempo, ou está finalmente percebendo: não tem realmente muita coisa impedindo de voltarmos com os hábitos expansionistas violentos do passado. Desde, é claro, que você saiba reconhecer onde pode ou não pode mexer. Há décadas já se sabe que Oriente Médio e África são liberados, a ONU faz biquinho e diz que é feio, mas não tem problema de verdade.

O que Putin testou, com relativo sucesso, é o custo de tentar a mesma coisa pra cima de um país “europeu de segunda-linha”. A Ucrânia é branquinha o suficiente para muita gente se comover, mas não faz parte do verdadeiro clubinho da humanidade moderna. Não está sendo a festa que seria uma invasão a um país miserável de gente escura, mas pelo visto está bem tolerável. Putin foi para um estádio lotado e discursou para uma plateia empolgada depois de vinte dias de guerra.

Ainda tem muito mais o que pagar por essa invasão, mas não é que os russos estão achando que cabe no orçamento? Aperta o cinto aqui, tira uns supérfluos ali… e pode continuar bombardeando maternidade e escola! A sensação é de que os interesses escusos dos russos acabaram revelando o verdadeiro status dos Direitos Humanos modernos: só existem para quem pode pagar por eles.

Os ucranianos não puderam. Seu presidente apela para todas as nações mais ricas do mundo, que o aplaudem de pé pela bravura, mas dizem que ajuda militar fica para a próxima. Existe o mundo com lei e existe o mundo ao redor dele. A ONU deveria ser o local onde os líderes mundiais juntam seu poder e influência para gerar consequências sérias para quem quebrar as regras do jogo. Na prática, a ONU está engessada pelo poder de veto dado às nações mais poderosas do mundo na época da sua criação.

Todos temos direitos, a não ser que um dos maiores exércitos do mundo diga que não. Aí fica complicado, sabe? Guerra custa muito caro, e se não tiver algo para pagar por ela depois, não vai acontecer. Depois da Segunda Guerra Mundial, em tese dissemos que nunca mais. Na prática, dissemos que nunca mais para os países muito ricos e poderosos.

O cidadão americano, o inglês, o francês… esses têm acesso aos direitos criados pela ONU. Afinal, atrás deles está o exército mais poderoso da história. A OTAN garante a estabilidade das coisas, mas só para quem faz parte do clubinho ou está num território de grande utilidade para a aliança. Se você estiver fora desse grupo, as leis são mais… negociáveis. É curioso como a humanidade fez todo esse carnaval em cima da ONU para no final das contas continuar valendo a Lei da Selva.

Voltando ao começo do texto: muitos de nós fomos criados sob a ilusão que havia um acordo em vigência sobre direitos e regras básicas de convivência entre as nações. Não era valorização da vida humana, era uma potência tão absurdamente acima das outras que praticamente ninguém se importava em desafiar. O crescimento da China começou a mudar essa lógica. A Rússia acha que tem suporte suficiente dos chineses para começar a importunar a Pax Americana. É mais do que uma invasão: é um teste.

Não só para os exércitos envolvidos, mas para algumas gerações que estão começando a herdar os postos mais altos de poder do mundo. O mundo a partir daqui vai continuar acreditando que a paz e a estabilidade são desejos universais? Ou será que o pragmatismo vai tomar conta e todo mundo vai ter que correr para se armar o máximo possível para lidar com o fim de uma era de estabilidade forçada pelos americanos?

O idealismo sofre nessas horas. A Rússia está dizendo para o mundo que é melhor comprar um revólver, porque o xerife com o qual nos acostumamos a contar só vai proteger ele e seus amigos. E se você acha que eu estou defendendo a Rússia nessa invasão, você não entendeu nada sobre a lógica expressada aqui: Putin está dando sinais claros de líder maluco que começou a acreditar nas próprias mentiras. Se serve para nos abrir os olhos sobre quão precária era a paz que vivíamos, é apenas uma consequência.

Se a Rússia não for parada, podemos realmente estar vendo o fim de uma das mais longas era de paz continuada da nossa história. Uma que nos fez subir vários degraus da escala evolutiva social e que vai deixar saudades, não por sentir falta do domínio absoluto americano, mas porque por um tempo, eles nos obrigaram a olhar em outras direções.

E até mesmo acreditar que tínhamos direitos. Bons tempos…

Para dizer que hoje o negócio está muito depressivo, para me chamar de defensor de ianque ou para me chamar de defensor de russo: somir@desfavor.com


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