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Porrada no Oscar.

Porrada no Oscar.

| Sally | | 40 comentários em Porrada no Oscar.

Will Smith subiu ao palco do Oscar e deu uma porrada na cara do apresentador Chris Rock, por ele ter feito uma piada com a sua esposa. Eu adoraria passar quatro páginas escrevendo sobre isso, mas o Brasil permite? Não, não permite. Quando acontece esse tipo de desfavor, o brasileiro vai e empilha ainda mais desfavores por cima, nos obrigando a falar sobre eles.

Para quem não sabe o que aconteceu: o comediante Chris Rock estava apresentando o Oscar e fez uma piada com a esposa de Will Smith, qual eu não vou escrever o nome aqui, pois é isso que ela é: esposa de Will Smith. Nos frames do evento é possível ver claramente que Will Smith achou graça na piada, mas, quando olhou para a cara de cu da sua esposa, praticamente uma cara de cobrança, ficou sem graça.

Poucos segundos depois, levantou, subiu até o palco e deu uma porrada na cara do Chris Rock. Voltou para o seu lugar esbravejando para que ele pare de falar da sua mulher. Não é de hoje que a esposa dele se incomoda com as piadas. Em outro Oscar, onde ela fez um draminha boicotando a cerimônia, Chris Rock disse que ela boicotar a cerimônia seria como ele boicotar a calcinha da Rihanna: ele simplesmente não foi convidado, portanto, não há boicote.

Desta vez a piada foi um pouco mais pesada. Ele comparou o visual da esposa de Will Smith a G.I. Jane, um filme em que a atriz Demi Moore aparece com a cabeça raspada. A esposa de Will Smith tem uma doença de fundo emocional/nervoso (alopecia) que faz com que seu cabelo caia e, por causa das falhas, decidiu raspar a cabeça.

Muitos juram que foi apenas encenação, mas a verdade é que já não importa mais se a porrada foi real ou foi simulada, o grande desfavor se tornou a reação que ela gerou. A burrice, a precariedade e o complexo de vira-lata do brasileiro afloraram com tudo. Um único evento conseguiu resumir o que há de mais vitimista e deprimente no país. Percebam que não são críticas ao posicionamento das pessoas, cada um se posiciona como quer, mas sim à incoerência: quem levanta certas bandeiras não pode ir contra elas.

Para começo de conversa, esse papo de congratular o cara por estar “defendendo a mulher” é deprimente. Sério mesmo, me entristece de verdade ver mulheres dizendo isso. Eu me sentiria tão infantilizada, tão humilhada, tão incapaz se meu marido tivesse que intervir para me defender de algo que estão falando sobre mim e que eu não goste.

Somir pode confirmar: se fosse comigo, eu subia ao palco e data um tabefe na cara do meu marido em sequência, pela vergonha que ele teria me causado. Queridão, eu compro as minhas batalhas, eu luto as minhas batalhas e cada vez mais eu acho que batalhas não são o caminho. O que Will Smith fez não depõe apenas contra ele, depõe contra sua esposa e contra toda essa “luta feminista” desse povo. Ele agiu como se a esposa precisasse ter quem o defenda.

No entanto, vi várias militantes feministas congratulando o que ele fez. Curioso esse feminismo seletivo, onde, dependendo do ângulo, a mulher é uma pessoa forte com as mesmas capacidades de um homem, capaz de resolver sua vida sem precisar de ninguém, mas, por outro, é uma vítima que precisa da proteção masculina. Interessante essa mulher, prega modernidade batendo no peito com orgulho dizendo que tem um relacionamento aberto, mas o marido tem que defender sua honra.

Essa postura de feminista aplaudindo homem defendendo a esposa escancara a ideia que esse tipo de feminista tem da mulher: um ser frágil, que precisa da proteção masculina, mas que quer disfarçar isso. É o que a gente sempre diz: quem é forte não precisa ficar bradando aos quatro cantos que é forte. Se alguém insiste em repetir algo sobre si mesmo, é por aquilo estra mal resolvido na cabeça da pessoa.

Querem direitos iguais, mas querem que mulher não possa ser objeto de piada? Fracamente, pessoas que até poucos dias atrás estavam rindo e fazendo piada sobre mulher que deu para mendigo em meio a um surto psicótico (que é uma doença!), ouvindo os detalhes que o mendigo tinha a contar sobre o que aconteceu, agora viraram defensores da mulher? Mendigo contando intimidade sexual de uma mãe de família que teve um surto e não sabia o que fazia tudo bem, fazer piada e Meme com isso tudo bem, mas piada com mulher plenamente capaz tem que dar porrada!

Depois temos o pessoal da “doença”. “Ain, mas fez piada com a doença dela”. Bem, se você é leitor do Desfavor e gosta do que a gente escreve, você automaticamente perde o direito de usar esse argumento, pois dia sim, dia também, de uma forma ou de outra, a gente faz piada, sacaneia ou ri de pessoas que tem doenças. Se você volta aqui e continua prestigiando, me parece bastante hipócrita levantar a bandeira de “com doença não se faz piada”.

“Quer dizer que você acha que pode fazer piada com doença?”. SIM, eu acho. Eu acho que pode fazer piada com tudo. Eventualmente, a piada pode acabar se tornando de péssimo gosto e não tendo graça para muitos, mas o direito de fazê-la, todo mundo tem. Pode ser que tenha que indenizar alguém depois? Sim. Mas, repito: o direito de fazê-la todo mundo tem. Existem consequências legais, se for o caso, e porrada na cara não é uma delas.

E, onde está esse papo de “com doença não se faz piada” quando o político que a pessoa não gosta adoece? “Ain, mas é uma modificação no seu corpo que você não escolhe”. Ok, onde está o mesmo argumento quando fazem piada com homem careca? Todo mundo já riu de piada do Lula perdendo o dedo ou de facada do Bolsonaro. Todo mundo já riu de piada envolvendo doença alguma vez na vida: disfunção erétil, obesidade, calvície, diarreia, a lista é extensa, podem refletir e vocês encontrarão alguma da qual riram.

E nem precisa ir tão longe. É socialmente aceito fazer piada com homem careca, inclusive quando a calvície é fruto de alopecia. Vários atores famosos já passaram por isso e nunca nenhum deles se vitimizou quando fizeram piada com sua careca. Na real, ninguém nem sabe que esses famosos têm alopecia, pois eles não levantam a bandeira de “doentes” com uma doença. Dá um google e você vai ver que muitos carecas famosos, com os quais se faz piada, tem a exata mesma doença e não a usam para não ser alvo de humorista.

Outra dúvida: se é tão grave o que foi feito, seria válido o mesmo tapão se fosse uma apresentadora mulher a fazer a piada? Ou um assunto é menos sério por sair da boca de uma mulher? Quem se enfiou nessa furada argumentativa que se vire para defender que uma mulher merece apanhar ou que o que uma mulher fala não tem o mesmo peso/valor do que aquilo que um homem fala. Boa sorte aí.

Tem também o mais brasileiro dos argumentos: “isso não é humor”. Sim, o brasileiro se sente no direito de decretar o que é e o que não é humor com base no seu gosto pessoal! Se ELE não acha engraçado, então não É engraçado e mais ninguém no mundo vai achar engraçado – e se achar, esta engando, pois não é engraçado. Que vergonha extrema, meu pai.

O que faz de algo humor ou não, é a intenção de quem conta. Se você não acha engraçado, isso não quer dizer que não seja humor. Isso quer dizer que você não gostou, que você não achou graça, que você não riu. Mas, de forma alguma a sua percepção da piada faz com que ela deixe de ser uma piada. Você não é tão importante, e, pasme, provavelmente tem muita gente rindo do que você decretou que “não é humor”.

Outro argumento, e talvez o argumento mais importante de todos, e, curiosamente, o mais básico: é contraproducente fazer o que Will Smith fez. Ele desgraçou a vida da esposa e da família com isso. Não pela agressão, pois ele é negro (se fosse branco já estava preso), nada vai acontecer com ele, mas por dar importância a uma piada. Desde os tempos de colégio uma criança esperta sabe que se importar é jogar gasolina no fogo. Quanto mais você se importa, mais piada todos vão fazer.

Will Smith acaba de assinar um contrato eterno colocando sua família na boca de comediantes do mundo todo, pois agora, com esse atestado de “doeu, eu dou importância ao que você fala”, todo mundo vai fazer piada com eles, durante muito, mas muito tempo. Proteger a mulher é o caralho, ele pintou um enorme alvo na testa dela. Amor é o caralho, foi descontrole, muito do feio por sinal. Se fizer um toxicológico aposto dinheiro que ele não está puro.

Mas o símio brasileiro pensa da seguinte forma “agora vão pensar duas vezes antes de falar dela”. Meu anjo… nem sei por onde começar. Apesar de não ser agradável levar uma porrada na cara, esse evento foi a melhor coisa que alguém já fez pela carreira do Chris Rock. A fama dele vai aumentar, o cachê dele vai aumentar, a audiência dele vai aumentar. E não, ninguém vai pensar duas vezes antes de fazer nada, o sonho dourado de todo comediante é conseguir esse grau de fama, projeção e poder: a piada dele, apesar de horrível, ficou conhecida no mundo todo.

Quem tem esse ponto de vista de “Ensinou uma lição ao comediante” ou “Agora vai pensar duas vezes” não tem a menor ideia de como o humor funciona ou de como o mundo funciona. A vida de Will Smith e sua esposa vai ficar um pouco mais insuportável daqui para frente. O que ele fez gerou um pequeno benefício imediato (o prazer de descontar sua raiva) e é só isso que o brasileiro consegue ver, pois, símio que é, é incapaz de pensar a longo prazo. A longo prazo, o que Will Smith fez foi uma baita burrice e o beneficiado será Chris Rock.

E nem me refiro a perder contratos, perder papéis ou coisa do tipo. Ele é negro, ele pode ter o dobro do tamanho, o dobro do peso e dar uma porrada no apresentador do evento no qual está e, ainda assim, sair premiado. Me refiro a ver aumentar em sua vida aquilo que ele procurava “combater”: humor invasivo de péssimo gosto com sua família. A alopecia de sua esposa vai virar tema central de piada por muito tempo., pois ele fez o assunto repercutir.

E, independente de todos estes argumentos sobre o mérito do caso, acho que temos que dar um passo atras e pensar na questão da agressão. Há regras, vivemos em sociedade, existe lei. Se você não gosta de uma piada, a agressão física não é o meio para resolver isso. Acredite, se bater em quem falou uma coisa que você não gostou fosse permitido, você já tinha levado um monte de porrada na vida.

Relativizar isso quando quem apanha é alguém que falou algo que você não gostou é perigoso, burro e hipócrita. Se, dependendo do caso, a gente começar a aceitar responder a uma fala de péssimo gosto com violência física, eventualmente todos nós vamos apanhar. Não é assim que se resolve. Não gostou? Tem vários caminhos a seguir: boicota, se retira, processa, faz qualquer coisa dentro da lei.

Vi pessoas defendendo, falando “tá certo ele” e vi pessoas relativizando (defendendo sem culhões de defender abertamente): “o que Will Smith fez tá errado, MAS…”. Não tem “mas”. Tá errado e ponto final. Tá errado do ponto de vista social (não se resolve batendo) e tá errado do ponto de vista estratégico (o que ele fez garantiu que a mulher dele seja alvo de piada pelas próximas décadas).

Os mesmos que dão um faniquito quando agressões fora da lei são cometidas (policial batendo em negro, homem batendo em mulher por ela ter traído, etc.) parecem esquecer este discurso tão inflamado quando quem apanha é um desafeto ou uma pessoa pela qual nutrem antipatia. E são burros o suficiente para não perceber a própria incoerência. Quando você legitima agredir outra pessoa por não gostar do que ela fez, abre um precedente que certamente vai se voltar contra você um dia.

O que nos leva a outra pergunta: quem acha que tá ok agredir um humorista quando ele falar algo que ofende, também acha quem um humorista pode agredir outra pessoa se ela falar algo que o ofende? É uma via de mão dupla? Se for, vai ter muito humorista cacetando gostoso pessoas que insistem em criticá-los de forma nada educada, passando bastante dos limites. Tá liberado então?

O mais curioso foi a explicação, fornecida pelo próprio Will Smith, no discurso de agradecimento do Oscar que recebeu: “o amor me força a fazer coisas doidas”. Não são coisas doidas, são coisas contra a lei. E não é “o amor” que te “força” a nada, é sua saúde mental que está um lixo. Seria bacana se ele percebesse isso, admitisse e se tratasse.

Para quem tem certeza de que é uma armação, pode até ser, mas seria perfeitamente compatível com a realidade. Will Smith está fora do normal já faz um tempo. É uma família disfuncional faz tempo. E não me refiro a ter problemas, problemas todos nós temos. Me refiro a coisa graves, coisas como marido e mulher discutindo uma traição em live no Facebook, coisa como filhos medicados com tarja preta por distúrbios emocionais, coisas como o sujeito ir a público dizer que pensou em se suicidar. Acreditem, o problema ali é tudo, menos a piada.

Colocar um ato de descontrole conta do “amor” é canalha. É querer revestir com um manto nobre uma atitude imbecil de descontrole, um sintoma de que a saúde mental dessa família é precária. Ou por acaso pessoas felizes e emocionalmente equilibradas tem alopecia nervosa? Acho que não. Melhor focar em melhorar essa saúde mental em vez de botar o foco em um humorista.

Quem de nós poderia, em um evento profissional, dar na cara de um colega de trabalho com todo o resto assistindo e sair impune? Se tudo isso for verdade mesmo, o que Will Smith fez não é só contra a lei, é um delírio egóico que mostra o quanto ele está mal da cabeça. Tem algo muito ruim acontecendo ali, as pessoas deveriam incentivar que ele se trate em vez de aplaudir que uma porrada. O problema é que não é sobre a porrada, é sobre quem apanha: se apanha alguém que a pessoa odeia, pode bater (ou até dar facada), se apanha alguém que a pessoa gosta, é uma barbárie e tem que ser punido.

E, para terminar, gostaria de dizer que é perfeitamente possível condenar a agressão e fazer piada com ela. Fazer piada não é concordar, não é endossar e muito menos estimular. Fazer piada é encontrar um ângulo engraçado de algo – e tudo pode ter um ângulo engraçado. Permitam-se fazer piada com tudo. Peguem a foto do tapa, escrevam “meu salário” no Chris Rock e “Fatura do Cartão” no Will Smith. A vida fica mais leve quando fazemos piadas.

De resto, só posso dizer que tivemos sorte: se fosse o Ricky Gervais apresentando o Oscar novamente, a coisa teria sido tão mais pesada que teria se resolvida no tiro e Will Smith e a esposa sairiam como vítimas de racismo. Ainda bem que Ricky Gervais continua vivo, entre nós.

Para dizer que o que isso foi de arrepiar os cabelos, para dizer que ela está careca de saber que o marido errou ou ainda para dizer que todo mundo odeia o Chris: sally@desfavor.com


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