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Sem graça.

Sem graça.

| Somir | | 14 comentários em Sem graça.

Quem fala demais dá bom dia a cavalo, já diz o ditado popular. Ontem eu vi uma parte da imprensa e os antibolsonaristas criticando a história que surgiu sobre a redução das tensões entre Rússia e Ucrânia ser resultado da visita do presidente brasileiro. Infelizmente, eu não duvido que algumas pessoas realmente acreditaram nisso, mas basta conhecer um pouco de Brasil para entender que o senso de humor do povo passa exatamente por esse tipo de afirmação.

Eu bato bastante no brasileiro médio, mas não é raiva irracional: são críticas baseadas em comportamentos percebidos. O povo brasileiro é só mais um povo, com seus defeitos e qualidades. Escolho ele porque é o problema conhecido, próximo. O que não quer dizer que não tenha nada que eu não goste por aqui: o senso de humor esculhambado desse povo vive me divertindo.

É natural que alguns tipos de senso de humor sejam mais prevalentes em alguns lugares do mundo. E pelo o que eu já percebi, tem muito a ver com as condições médias do lugar: dependendo do grau de organização de uma sociedade e a qualidade de vida das pessoas, ele vai variando. Num mesmo país, costumam conviver sensos de humor sutis e escrachados, inocentes e ofensivos, complexos e simplistas… quando eu falo de tipos mais comuns, não estou dizendo que todo mundo é assim num lugar, e sim que o tipo médio de pessoa reage melhor a um deles.

Humor é uma ferramenta para lidar com o mundo. Quem vive numa sociedade muito organizada tende a rir de quebras de padrões. O humor japonês parece extremamente infantil, mas se você entender o contexto deles de pressão por conformidade, vai perceber que qualquer desvio do comportamento padrão já é muito engraçado para aquele povo. O humor inglês se desenvolveu com sarcasmo e nonsense, resposta ao tipo de comportamento formal e diplomático que sua sociedade desenvolveu com o passar dos séculos de imperialismo e expectativa autoimposta de bastião da normalidade no mundo. O americano adora stand-up porque tem uma sociedade individualista e o contexto de provocação e testar limites é integral à cultura de liberdades pessoais formada por lá.

Agora, quando vamos para países menos desenvolvidos, a esculhambação começa a fazer mais sentido. O brasileiro é prova disso: nosso humor costuma passar por situações ridículas, gente sem noção e autodepreciação coletiva. Quem vive num país que não leva nem as coisas sérias a sério lida com isso rindo das próprias desgraças, reconhecendo que está tudo errado e que isso é parte da vida. Como eu já disse antes, não quer dizer que todo mundo de um país/cultura tenha o mesmo senso de humor, só quer dizer que alguns são mais comuns em alguns lugares.

O que me traz de volta à história do Bolsonaro evitando a Terceira Guerra Mundial. É hilário, é esculhambação pura de brasileiro. Não é uma posição política, é esse povo rindo da própria insignificância. A gente riu muito quando o Bolsonaro “ameaçou” os americanos com nosso poderoso exército, até hoje eu rio da foto do soldado brasileiro com um canhão feito de bambu dizendo “vem, Biden!”.

Num mundo menos polarizado, a piada da coincidência da ida de Bolsonaro para a Rússia ao mesmo tempo que o exército russo começa a se desmobilizar da fronteira da Ucrânia seria óbvia para todo mundo. É justamente a piada que o brasileiro faria: aumentando a importância de sua participação numa crise internacional porque é hilário imaginar que o Brasil faria alguma diferença.

Quando o brasileiro começa com essas ideias, eu juro que não tenho vergonha alheia: é engraçado, autodepreciação é um tipo de humor mais inteligente do que gritaria aleatória e bordão. O brasileiro pode e deve se esbaldar nesse tipo de piada, ajuda a manter os problemas à vista. Eu queria que o povo estivesse unido na esculhambação para ir dizer “de nada” em perfis ucranianos, mandar mensagem para a Casa Branca dizendo que “se precisar de novo, só chamar”, e coisas do tipo. Talvez outros povos não entendam exatamente o que achamos tão engraçado nisso, mas tudo bem, humor varia de país pra país. Aqui a esculhambação faz sucesso.

Mas como sempre, piada estraga quando tentam explicar. A torcida de um lado começa a criticar a piada como se fosse séria, a torcida do outro diz que só um imbecil não entenderia a piada, a torcida oposta rebate dizendo que estão fingindo que era piada agora que riram deles… e o que era só mais uma meme divertida começa a politizar. O que deveria nos unir é usado para separar.

O modus operandi do humor brasileiro, especialmente o de internet, é exatamente a meme do Bolsonaro evitando a guerra. Sempre tem gente sem cérebro que leva a sério, mas se eles fossem a maioria, o país estaria na idade da pedra. Tem que ser muito insano ou ignorante para achar que isso é verdade, seja a noção de que foi mesmo o presidente brasileiro que mudou os rumos de um conflito internacional, ou mesmo para achar que o pessoal do “outro lado” estava achando que era verdade. Nossas piadas são assim no século XXI.

E nada mais triste do que perder a capacidade de fazer uma piada. Medo de ser incompreendido começa a contaminar ambos os lados da polarização, e o discurso começa a ficar cauteloso demais. Fica difícil fazer uma piada se o outro lado vai levar a sério. Ninguém quer passar vergonha e ser tratado como pária pelo seu lado. E é assim que vamos nos separando mais e mais.

Humor conecta pessoas de uma forma que nenhuma outra forma de comunicação consegue: é quase que uma forma de telepatia. Você estabelece uma situação e mexe com a percepção do outro sobre ela sem “explicar”. Piadas normalmente subvertem a conclusão de um pensamento, e quem entende consegue depreender um monte de coisas sem nenhuma palavra explícita para acompanhar. Humor nos lembra que temos coisas muito parecidas dentro das nossas cabeças. Rir da mesma piada é uma forma de se unir que não tem quase nenhuma complicação.

Eu corri o risco de ser muito chato falando tanto sobre uma piada, mas eu o faço porque há uma sutileza na situação: existem outras formas de limitar o humor além da censura. É terrível fazer uma piada para uma plateia que não acha graça dela. É frustrante, especialmente se você sabe que sua plateia está fazendo força para reagir negativamente. Não pode rir de piada de “direitista” porque isso quer dizer que você está traindo a esquerda, não pode rir de piada de “esquerdista” porque isso quer dizer que você está traindo a direita… é tão cansativo.

Era pra ser só mais uma daquelas macaquices hilárias do brasileiro médio na internet, mas foi pegando mais e mais lama durante o caminho, até atolar num papo chatíssimo sobre se era piada ou não, ou o que rir dela significava sobre sua visão políticas das coisas. Parece que todo mundo ficou com medo: ou de ser taxado como imbecil que achou que era verdade, ou de ser taxado de imbecil por achar que outras pessoas achavam que era verdade. Aí, várias ginásticas argumentativas para se livrar desse mal.

O humor não morre só quando as pessoas resolvem se ofender por tudo, morre também quando o clima fica chato assim. O quanto perdemos de esculhambação divertida por causa dessa “guerra fria” entre torcidas organizadas de políticos corruptos? A gente já aguenta inflação e crise por causa deles, ainda vai ter que ficar preocupado com o bom e velho humor esculachado do nosso povo?

Tudo o que o brasileiro não precisa agora é ter menos válvulas de escape para suas frustrações diárias. Isso começa nos extremos políticos, mas logo logo vai chegando no cidadão médio. Ele pode até não ter a visão clara da situação como estou descrevendo aqui, mas ele sente o clima. Sente que uma piadinha pode ser usada contra ele, sente que tem uma barreira de comunicação. E francamente, uma população com nível tão baixo de escolaridade e cultura não pode se dar ao luxo de ter que ser muito articulada em cada opinião.

Humor também é atalho: uma piada mostra muito sobre o que a pessoa pensa, o que ela acha engraçado conta uma história sobre ela. Eu analiso todo mundo ao meu redor pelo humor, não à toa que só as pessoas mais sem limites acabam ficando por perto: eu entendo quem ri de piada de péssimo gosto, eu entendo quem ri de piada ruim, mas não entendo quem escuta uma piada óbvia e se ofende. Porque humor quase sempre subverte uma visão da pessoa sobre o mundo. Por tabela, eu sei que a pessoa rindo de uma piada de mau gosto entende que aquela coisa é ruim na vida real.

Mas quem não ri me deixa confuso: por que a pessoa não riu? Por que ela acha que aquilo foi sério? Ela não acha a coisa horrível que eu disse horrível? Não sei. Gente assim me incomoda, porque não dá para entender o que se passa na cabeça. É difícil gerar uma conexão. Isso já era um problema antes, mas pode ficar pior agora, porque se mais e mais pessoas começarem a ficar com medo de simplesmente lidar com uma piada como se fosse uma piada, se começarem a se forçar a não rir por medo de passaram “a imagem errada”, mais e mais pessoas vão se tornar opacas.

Não acha graça porque a piada não funcionou, ou não acha graça porque está com medo de achar graça? Limitar humor limita oportunidades de conexão entre pessoas. E vai deixando a vida em sociedade cada vez mais… sem graça. Não é à toa que se vende tanto remédio para ansiedade e depressão… a gente não pode nem dizer que o Bolsonaro evitou a Terceira Guerra Mundial em paz.

Para dizer que não achou graça nenhuma (eu te perdoo), para dizer que todo mundo entendeu e fingiu que não, ou para dizer que todo mundo não entendeu e fingiu que sim: somir@desfavor.com


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