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Guerra na Ucrânia.

Guerra na Ucrânia.

| Desfavor | | 34 comentários em Guerra na Ucrânia.

Forças russas invadiram a Ucrânia por terra, mar e ar nesta quinta-feira, 24, concretizando os temores do Ocidente com o maior ataque de um Estado contra outro na Europa desde a II Guerra Mundial. O ataque aconteceu por três lados e explosões foram ouvidas em diversas cidades, incluindo na capital, Kiev, pouco antes do amanhecer. LINK


Pois é… para destronar a pandemia nesta semana… temos uma guerra. Desfavor da Semana.

SALLY

A boa notícia é que, depois de muito tempo, o Desfavor da Semana não é sobre covid. A má notícia é que é sobre uma guerra. Estamos no segundo mês do ano e eu já sinto saudade de 2021.

Vou ser bem sincera e provavelmente vou decepcionar pessoas: eu não tenho condições, em duas páginas, de te explicar esta guerra. Então, eu decidi contribuir de outra forma: em duas páginas, o que eu tenho condições de fazer é sugerir premissas gerais para que você possa se informar, formar uma opinião e sair da postura padrão de redes sociais, esse mix de “lado certo x lado errado”, julgamento sem contexto ou histeria.

Como não dá para simplificar ou resumir algo tão complexo e com uma longa história como este conflito entre a Rússia e a Ucrânia, o melhor que faço por vocês hoje é compartilhar meus curadores de conteúdo para que quem quer buscar aprofundamento encontre uma fonte segura e confiável: Xadrez Verbal (https://xadrezverbal.com/) ou qualquer texto do Filipe Nobre Figueiredo (https://pt.wikipedia.org/wiki/Filipe_Figueiredo). Quer saber mais? Vem textos nossos com tudo mastigado. Quer saber mais hoje? Vai neles que não tem erro.

Dito isso, tenha em mente que o assunto requer a compreensão de um contexto do que vem acontecendo há décadas. Econômico, político, social e cultural. Portanto, qualquer pessoa que te apresente um resuminho rápido sobre o que está acontecendo está te apresentando uma versão incompleta e provavelmente incorreta. A realidade é complexa e cheia de nuances, e pretendemos falar com calma sobre ela em outros textos.

Também é válido ter em mente que nós, reles mortais, sabemos de partes da história. O que chega e como chega é insuficiente. Então, sempre que pensarem no assunto ou opinarem sobre o assunto, tenham em mente que não sabem tudo a respeito dele. Muita coisa não sabemos e muita coisa sabemos errado, pois chegou distorcida. Um bom exercício é tentar ouvir as pessoas que estão nos locais que protagonizam o conflito – e redes sociais permitem isso.

O terceiro aviso, e o mais importante, que eu considero o grande Desfavor da Semana: guerra é um jeito bosta de resolver as coisas e todos nós falhamos como sociedade e coletividade ao não criar mecanismos para que isso não se repita mais uma vez.

Não é sobre país X, Presidente Y, como a maioria está abordando. Meu foco hoje é a visão é geral: se ainda há espaço no mundo para guerra, o mundo está uma bela bosta e, independente do posicionamento político, todo mundo deveria repudiar uma guerra. Não importa quem “tem razão”, não importa quem fez o quê, guerra não é aceitável a esta altura e ponto final. E muito cuidado com quem relativizar isso.

Guerra só difere de terrorismo por uma construção social, pois a premissa é a mesma: inocentes morrendo para forçar alguém a fazer ou não fazer algo. Guerra não é aceitável. Em hipótese alguma. Eu sei que nem você nem eu podemos impedir uma guerra, mas é importante e faz diferença que cada um de nós tenha muito claro internamente que guerra não é aceitável, não é relativizável, não é negociável.

Quando a gente usa qualquer argumento a favor da Ucrânia (pelos motivos X,Y e Z essa guerra é injusta) passa a impressão de que, nesse caso, é injusto ter uma guerra, mas que em outros, pode não ser. Então o ponto hoje não é apontar a grande sacaneada que a Ucrânia tomou, como foi deixada na mão, como o mundo todo foi covarde com ela. O ponto é: guerra não deve ser justificada em hipótese alguma.

Dito isto, quero tranquilizar os emocionados que estão se despedindo de familiares e amigos em redes sociais com a certeza de que vamos todos morrer. As chances disso escalar para uma guerra de abrangência mundial são muito, mas muito pequenas e as chances de uma guerra mundial chegar no Brasil são bem próximas a zero. Certeza absoluta ninguém pode ter de nada, mas até aqui, nada indica que isso vai sair daquela região.

Armas de destruição em massa não foram criadas para serem usadas, foram criadas para que ninguém as use contra você, por medo da resposta. O que quero dizer é que a Rússia sabe que se isso virar uma guerra mundial e começarem a usar armas de destruição em massa, é uma situação em que todos perdem, pois os danos não são controláveis e vão afetar a todas as pessoas do planeta.

“Mas Sally, se armas de destruição em massa são para essa finalidade, como você explica terem jogado bomba atômica em Hiroshima?”. Simples: na época só os EUA tinham bomba atômica, então, eles não tinham medo de uma resposta. Desde que outras nações desenvolveram armas de destruição em massa, nunca mais ninguém usou nenhuma. A ponderação antes de usar é muito maior se você sabe que pode tomar de volta na mesma moeda. Então, as chances de vermos algo assim acontecendo são pequenas. Não fiquem nervosos.

Mais um ponto importante: vejo opiniões extremistas sobre a Rússia, ou ela é uma fodida ou ela é um franco-atirador descontrolado. A Rússia não é esse gigante falido do qual não se pode esperar nada, nem Putin esse maluco descontrolado que pode acabar com o mundo. Nem 8, nem 80.

A Rússia continua sendo uma potência, quem pensa que tem zero perigo aí se engana. Quem pensa que a guerra fria ficou para trás também se engana. Para o Ocidente, a Guerra Fria acabou e teve um vencedor, os EUA. Para os russos, a Guerra Fria foi um round de uma luta muito maior que eles ainda estão travando – e vem se preparando para isso faz tempo.

A Rússia melhorou sua economia, aprimorou sua ciência e fez amigos importantes, como a China. Hoje, ela tem pé de meia para segurar de boa embargos comerciais e um aparato bélico de respeito. O país está longe das condições ideais, mas, em muitos aspectos, se reergueu, graças a Putin.

Esse papo de que só tem metralhadora velha na Rússia é desinformação. O país tem armas de destruição de massa tão poderosas que seus cientistas desaconselharam que sejam realizados testes, pois, mesmo que jogassem em lugares desertos e não habitados, poderiam alterar o eixo do planeta. Então, o potencial de destruição existe, o que freia algo pior é a certeza de que este tem que ser um último recurso, pois vão tomar uma resposta igual, destruindo o país e quem sabe o planeta.

Por outro lado, Putin é um maluco sim, mas no sentido de ousadia, não de descontrole, de sair apertando botão de bomba cada vez que fica puto. Ele é extremamente inteligente e estrategista. Ele se preparou por quase duas décadas para este momento e sim, ele melhorou em muito o país, por mais que esteja longe do ideal. Ele assumiu com a proposta no estilo “Make Russia great again” e é isso que ele vai tentar executar. A Ucrânia é dano colateral. A marca registrada dele é sua imprevisibilidade, não sua inconsequência.

Outro ponto que vem gerando reações desmedidas: como isso afeta o Brasil. Nas pesquisas da coluna “Ei, Você” tá cheio de reservista buscando informações sobre automutilação, do com medo de ser convocado para uma guerra. Menos, gente, bem menos. O Brasil não vai entrar nessa guerra, muito menos enviar tropas. Isso pode afetar o Brasil de outras formas, como por exemplo no seu bolso, mas não enviando gente para o combate. É provável que o combustível suba de preço (o que nem é uma novidade) e que outras coisas fiquem um pouco mais caras. Só.

Também quero relembrar que é muito tentador cair no maniqueísmo do bonzinho e malvado. Sim, estamos vendo umas covardias bem escrotas e revoltantes, mas não tem inocente em política internacional. Ninguém é bonzinho. Pode até ter um injustiçado da vez, mas é circunstancial. Todo mundo ali já sacaneou e foi sacaneado. Então, calma lá, que o buraco é muito mais embaixo.

Para fechar, friso que nem Somir nem eu somos especialistas em política internacional, portanto, de hoje em diante, se vocês lerem algo no Desfavor que conflite com o que uma fonte confiável diga, fiquem com a fonte confiável.

Eu sei que todo mundo queria mais informação do que isso, e vocês terão. Só não tem como fazer tudo em um dia só. Reclamem com o Putin, que resolver começar essa “ação militar” no final da semana. Parece pouco, mas se você mantiver vivo na sua memória este texto de diretrizes gerais, vai conseguir interpretar melhor o que está acontecendo.

Para dizer que não está valendo a mensalidade e vai cancelar sua assinatura do Desfavor, para dizer que por não aderir a um “lado certo” estamos passando pano para o outro lado ou ainda para dizer que não tem rolê mais aleatório do que Desfavor com texto sobre guerra em pleno carnaval: sally@desfavor.com

SOMIR

Eu escrevi um texto pouco tempo atrás dizendo que a Rússia não ia invadir a Ucrânia. Não ia porque não fazia sentido do ponto de vista diplomático, militar ou até mesmo financeiro. Eu poderia passar um bom tempo argumentando sobre como não era uma boa ideia naqueles dias, mas esqueci de um ponto importante: as pessoas fazem algumas coisas mesmo quando não são parecem boas ideias para a gente.

Como eu acredito que todo erro é uma oportunidade de aprendizado, vamos tentar entender onde a previsão falhou. A ideia original era que a Rússia não tinha condições de tocar uma guerra contra a Ucrânia sem dispender muitos recursos e arriscar se tornar uma pária mundial. Aparentemente isso ainda está certo: apesar dos ucranianos não conseguirem montar uma resistência muito forte, está sendo o suficiente para causar baixas e perdas de equipamento para o exército russo.

E ao mesmo tempo, pesadas sanções estão sendo aplicadas sobre a Rússia por boa parte do mundo ocidental. Putin teve que juntar uma grande reserva financeira para queimar durante as repercussões de sua invasão. Não vai ser fácil manter a elite do seu país sob controle com tantas restrições financeiras. Então essa parte se mantém: não é algo fácil de encarar no campo militar e financeiro.

Mas mesmo assim, parece válido para Putin. Foi um risco calculado. Se o cálculo está correto ou não, vamos saber com o passar do tempo; mas fica claro que a ideia de recriar algo parecido com a “Cortina de Ferro” do tempo soviético é uma prioridade para sua Rússia. Ele quer países controlados por fantoches dele entre a zona de influência dos EUA e a sua. A Ucrânia estava perigosamente (pra ele) perto de se perder como zona de influência russa.

Some-se a isso a tendência imperialista do partido democrata americano, muito diferente da visão do antigo presidente Trump, realmente faz sentido que Putin estivesse se vendo numa encruzilhada: se não agisse de forma clara agora, talvez não conseguisse mais manter os americanos longe de suas fronteiras. E é claro, ter uma das potências mundiais como a China ainda simpática à sua causa tornou tudo muito mais aceitável.

O que eu deixei de enxergar era o grau de desconforto de Putin. Não o da Rússia, como previamente analisado, mas o de seu presidente/ditador. Para a Rússia não era grande vantagem trabalhar com a ideia de imperialismo, ainda mais no século XXI, onde existem formas muito mais fáceis de controlar outros territórios (a China que o diga, comprando boa parte da Ásia e da África na cara dura). Mas a economia russa não tem força para tentar essa estratégia.

Putin temia sangrar seu poder até ser derrubado em prol de uma nova democracia russa, por isso resolveu gastar tanto como gastou nessa guerra. Eu analisei o país, mas esqueci das pessoas que controlavam o país. Essas pessoas estão numa posição confortável, mas que começava a se corroer com décadas de fracassos no desenvolvimento econômico e social. A cleptocracia da antiga elite da União Soviética não era eternamente sustentável, especialmente em tempos de paz. Para quem tem o poder na Rússia, é mais eficiente arriscar o povo e a economia do que tentar se adaptar a uma nova realidade.

E vai que cola? São milhares de ogivas nucleares prontas para dissuadir quem quer que tente retirar o controle de Putin sobre o segundo maior exército do mundo. Não deixa de me lembrar das análises que fizemos sobre vacinação ao redor do mundo: não adianta proteger o seu povo e deixar a doença correndo solta em outros. Esqueceram a Rússia no século XX, ela está agindo como se estivesse no século XX.

Já vou por esse caminho porque a minha análise estava errada por mais motivos que não enxergar a ganância de poder de Putin e a elite que controla o exército russo: também temos muita influência de outras partes. Os americanos, que eu previ que não queriam essa guerra, na verdade fizeram um escândalo tão grande que impediram qualquer acordo por baixo dos panos. Eles provavelmente poderiam ter ido por vias menos oficiais dizer para o os russos que a Ucrânia nunca seria aceita na OTAN. Teriam que ceder mais, com certeza; mas se quisessem mesmo deixar a situação esfriar, teriam como. Biden estava pressionado pelo fracasso da saída do Afeganistão e não queria passar a imagem de fraco, de novo.

Não só fizeram escândalo o tempo todo, como ainda criaram a ilusão que dariam suporte à Ucrânia. Ucrânia que em 1994 trocou o terceiro maior arsenal nuclear do mundo pela promessa de proteção da Rússia, EUA e Reino Unido em caso de invasão. Se eles ainda tivessem os mísseis, a Rússia seria a melhor amiga da Ucrânia. O abandono dos ucranianos não só é uma sacanagem como também é uma mensagem para todo mundo sobre ter bombas nucleares: não confie em ninguém te prometendo proteção em troca delas. Quero só ver a Coreia do Norte abrindo mão das suas depois dessa…

E, como esses assuntos são bem complexos, eu sequer previ a possibilidade do presidente ucraniano ser um maluco de pedra! Ele está distribuindo rifles para civis defenderem a capital! Não se coloca rifles na mão de civis. Civis não sabem o que fazer com eles, mesmo que saibam atirar. E pior: quando um civil pega num rifle, ele deixa de ter todas as proteções dos acordos internacionais sobre guerras. Ele vira um combatente e pode ser morto a qualquer momento. O governo ucraniano soltou vídeo ensinando a fazer coquetel Molotov! Olha o grau de insanidade: vai colocar uma bomba dessas na mão de uma mulher ou um idoso diante de um exército profissional? Isso não é fortalecer o espírito de luta do seu povo, isso é condenar gente à morte. Ou seu exército dá conta, ou você começa a pensar em como salvar seu povo, não colocar armas na mão deles e dizer que é para peitar tanque e caça supersônico com uma garrafa de pinga com um pano!

São tantos ângulos bizarros nessa história que eu aceito humildemente meu erro, mas não me sinto tão cego assim: eu apostei em bom senso, e o bom senso resolveu não participar dessa história. Estão resolvendo problemas políticos com sangue do povo porque aparentemente só mudou o número no calendário, as pessoas continuam tão insanas como eram na última grande guerra.

Lição aprendida: vidas humanas ainda são um recurso que os líderes mundiais vão gastar sem dó em troca de dinheiro, poder… e ego. Eu achei que estávamos numa era um pouco mais evoluída do que realmente estamos.

Para dizer que eu vou morrer pelo meu otimismo, para dizer que só quer ver o circo pegar fogo, ou mesmo para dizer que guerra é ótima para a economia: somir@desfavor.com


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