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Crisegrande.

A Evergrande, gigante do mercado imobiliário chinês, está passando por sérios apertos. Acaba de fazer um acordo com credores locais para empurrar sua cada vez maior dívida para frente, o que as faz ganhar algum tempo, mas não tira do caminho o débito de mais de 300 bilhões de dólares que somou até aqui. Como uma empresa consegue dever tanto?

Se eu estivesse num bar conversando com amigos, responderia: “porque dinheiro é um treco inventado que só pobre se preocupa.” Mas como estou no Desfavor, eu posso me estender sobre essa mesma ideia por muito mais tempo antes de alguém fingir que teve uma emergência e sair. A dívida colossal da Evergrande é uma prova de como dinheiro é uma coisa relativa nos dias atuais. Isso é, se você tem dinheiro suficiente para tornar dinheiro numa coisa relativa.

A empresa cresceu para as proporções atuais no aparentemente infinito mercado imobiliário da China: um país que não parava de acumular dinheiro depois da reabertura do seu mercado e com uma população muito focada em imóveis como forma de investimento. Você já deve ter ouvido falar de verdadeiras cidades fantasmas no país asiático, construídas com imensa pressa para acabar não abrigando ninguém. Bom, foi assim que a Evergrande fez jus à segunda parte do nome.

O chinês médio acredita que ter diversos imóveis não só é uma forma de garantir seu futuro, como também enxerga como status. Assim que uma parcela da população começou a ganhar dinheiro, enlouqueceram comprando casas e especialmente apartamentos. Percebendo o mercado, várias empresas de construção (e por várias eu quero dizer as que tinham gente infiltrada no governo) começaram a produzir esses imóveis em escala industrial.

Todo mundo acreditando que logo logo ia ter gente para morar nesses imóveis. O problema é que assim como em diversos outros países do mundo, a maioria que nem finge que é comunista, não é muita gente que fica rica. Mesmo que no caso da China uma minoria ainda possa significar milhões, foi apenas uma minoria que conseguiu comprar esses imóveis para investir. Continuamos com a maioria, que no caso chinês é caso de mais de um bilhão, que não tem dinheiro ou mesmo capacidade de ir morar nessas cidades especulativas.

Faz tempo que falavam da bolha imobiliária chinesa, bom… estamos vendo acontecer. Como as coisas por lá são ainda menos transparentes do que por aqui, não se sabe como o governo vai intervir, ou mesmo se vai. O Partido Comunista pode até mesmo estar punindo a empresa e querendo que ela desabe mesmo. O que sabemos é que esse tipo de dívida da Evergrande não se faz da noite para o dia.

Não me impressiona que tenham começado a desconfiar da empresa quando ela apareceu devendo 300 bilhões de dólares, e sim quando estava devendo 200, 100… isso é dívida de país, e dos grandes. Esse tipo de problema é algo que se desenvolve no passar dos anos, décadas. Mas pelo visto, todo mundo estava confiando que um dia desses alguém ia pagar. O mercado do país não tinha como dar conta de especulação imobiliária infinita, chega uma hora que você tem que entregar alguma coisa real para o mercado consumidor. Depois do vigésimo apartamento vazio que vai permanecer vazio por falta de gente capaz de pagar aluguéis, pelo menos o investidor normal deveria ter percebido que o modelo era insustentável, não?

Não duvido que muita gente achou que ia dar tudo certo pra sempre, mas podemos confiar que o mercado não é feito só de ignorantes otimistas. Muito mais gente sabia que isso estava virando basicamente um esquema de pirâmide: investem mais e mais em imóveis na expectativa que outra pessoa venha e compre a mesma promessa que você comprou. Todo esquema de pirâmide é maravilhoso enquanto tem otário entrando. Mas, eventualmente, ou acaba o dinheiro… ou acabam os otários.

Uma crise mundial é o tipo da coisa que tira otário do mercado. Não porque ficam muito mais espertos, mas porque inibe o comportamento impulsivo deles. Querem fazer besteira, mas não podem. Não é à toa que existe a previsão de uma mega crise financeira no horizonte, não só por causa da Evergrande, mas por causa do modelo de negócios que a fez ficar do tamanho que ficou. Esse tipo de especulação não se cria em tempos de crise econômica mundial.

Porque é só pensar meio segundo: se sua empresa está devendo dezenas de bilhões de dólares, alguma coisa está fundamentalmente errada. Centenas, então? Quando chegamos nessas cifras, é quase como se fosse dinheiro imaginário: em tese existe, mas na prática não dá para movimentá-lo de verdade. E como já expliquei em outros textos, boa parte das fortunas dos grandes bilionários atuais é baseada em ativos altamente especulativos como ações. É dinheiro potencial. Pode sumir em poucas horas.

Uma forma de não deixar esse dinheiro sumir é continuar prometendo e prometendo, mantendo a ideia de que a empresa está crescendo e tem de onde tirar dinheiro, isso é… passar a impressão para o grande público (otários) que a empresa pode fazer isso. O investidor profissional pode até saber que a empresa é um desastre e vai falir a qualquer momento, mas desde que ele acredite que tem alguém para comprar as ações dele antes da empresa falir, está tudo bem.

O modelo de negócios de prometer que um dia vai dar lucro está extremamente consolidado nos dias atuais. As startups são basicamente isso, e mesmo as mais bem sucedidas normalmente não dão muito lucro, quando dão. Desde que dê para fazer o caminho entre ideia e colocação das ações na Bolsa, tirando o dinheiro antes disso, está bom demais para a maioria dos investidores. O investidor caseiro está lá para ficar com as ações desvalorizadas e o resto da população para pagar os impostos que vão ser despejados como ajuda caso a empresa receba a cobrança por suas promessas não cumpridas.

Eu realmente espero que a maturidade do capitalismo não seja um sistema infinito de pirâmides, mas às vezes dá para desconfiar que é justamente para esse caminho que estamos indo. Promessas pagando promessas. Nosso sistema monetário já é baseado em dívidas, não em ouro ou algo que (literalmente) o valha. “Piramidar” o mundo corporativo não parece um passo tão estranho assim.

O consumidor atual não consome apenas produtos e serviços, ele ajuda a transformar sistemas bizarros sem capacidade de sustentação em negócios lucrativos. O pior é que quando esses negócios fatalmente falham, as pessoas que sabem como navegar nesses mares especulativos já saíram faz tempo. Temo que com o passar do tempo, as pessoas comecem acreditar que investir é sinônimo de apostar, que se normalize a ideia de que expectativa de lucro pode ser criada do nada e trocada pelo seu dinheiro suado.

Senão, é capaz de você acabar com um apartamento feito nas coxas, esfarelando vazio por falta de inquilinos. Ou, com uma economia toda baseada neles. A China está jogando um jogo perigoso, construindo uma economia real por baixo de uma falsa. Atraem as pessoas com um esquema de pirâmide para ver se conseguem juntar dinheiro para a infraestrutura e a educação que precisam para ganhos reais nas próximas gerações. O mundo estava comprando até agora.

Estava… não vou ser alarmista à toa, mas acho bom avisar: quando o otário médio perceber que está com todo seu dinheiro em pirâmides, provavelmente já vai ser tarde demais. Dinheiro é uma coisa que colocam na sua cabeça.

Para dizer que comprou tudo em ouro, para dizer que investiu em papel higiênico, ou mesmo para dizer que precisa ganhar dinheiro para se preocupar com ele: somir@desfavor.com

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China, crise, economia

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