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Controle da vida.

Controle da vida.

| Somir | | 14 comentários em Controle da vida.

O Texas, estado dos EUA, passou uma lei restringindo o direito ao aborto. Embora a legislação nacional ainda preveja a possibilidade, os estados têm muita liberdade para criar dificuldades para quem quer (ou precisa) realizar o procedimento. A legislação texana não só cria um período muito reduzido para aceitar o aborto (6 semanas) como ainda permite que qualquer pessoa abra um processo contra a clínica de aborto, e se ganhar, um prêmio de 10 mil dólares. Será que adianta alguma coisa?

Vejam bem, onde tem dinheiro tem vontade. Da noite para o dia cria-se uma indústria de processos contra as clínicas de aborto: o reclamante não precisa ter nenhuma conexão com a pessoa que fez o aborto. Em tese os altos custos de entrar com uma ação nos EUA deveriam controlar a situação, mas quem quer reprimir o aborto em geral pode se organizar para pagar pelas custas, muitos advogados vão trabalhar de graça por questões religiosas, e considerando o prêmio, pode até se tornar algo lucrativo.

Já se tem notícias de clínicas de aborto interrompendo seus serviços prevendo que não vão ter como aguentar os custos dos processos que fatalmente irão levar a partir de agora. Sim, provavelmente advogados vão se juntar para defender essas clínicas e criar alguma forma de equilíbrio, mas convenhamos que quem era contra o aborto já estava muito mais organizado nos EUA, quem é a favor no Texas vai ter que começar a se organizar agora.

Trump criou uma Suprema Corte muito mais conservadora com suas indicações, o que coloca em xeque o prospecto de derrubar a lei texana. É provável que salvo uma troca de partido no poder do estado historicamente dominado pelos republicados, a lei continue em vigor por muito tempo. Para quem é contrário ao direito do aborto, é uma grande vitória. Vai criar complicações sérias num dos estados mais ricos e populosos do país.

Quem é contrário à prática acredita que um ser humano está sendo literalmente assassinado. Por mais que eu não concorde com essa conclusão, eu sou capaz de me colocar na pele de uma dessas pessoas e entender o grau de ofensa que o aborto pode gerar. Se você achasse que um grupo de pessoas está matando bebês, provavelmente também acharia que são pessoas muito ruins. Entendo essa parte, sou um misantropo casual, odeio pessoas quando elas fazem algo que considero ruim.

Há uma questão de difícil resolução aqui: o início da vida. Não que seja uma imensa complicação do ponto de vista científico, mas infelizmente a sociedade humana vai muito além dos fatos. Cientificamente, você pode definir vários parâmetros básicos para considerar um ser humano vivo e ir traçando as linhas de corte. Socialmente, o buraco é mais embaixo: a pessoa está viva a partir do momento em que alguém a considera viva. Em linhas gerais, um embrião pode não ser muito mais humano que as bactérias do seu estômago, mas para a pessoa que considera aquilo como uma vida humana, é uma vida humana.

Tem gente que acha que cachorro é filho, tem gente que casa com boneca de silicone… o ser humano tem esse poder e maldição ao mesmo tempo: consegue humanizar o que bem entender. Na verdade, podemos até ir mais longe: conseguimos humanizar até mesmo ideias. A ideia de que fomos criados com um propósito e não estamos sozinhos acaba virando uma entidade mágica humanizada. Religiões criam representações humanas de conceitos abstratos.

E considerando que boa parte da população mundial acredita em pelo menos uma dessas personificações de ideias, não é de se estranhar que muita gente atribua humanidade a um punhado de células estacionadas num útero. De uma certa forma, é vivo o que queremos que seja vivo. Então, é basicamente impossível usar argumentos científicos contra os detratores do aborto. Não é como se eles definissem suas crenças com essa base.

Na verdade, é até o pior caminho, porque tira da pessoa um poder imenso: o de atribuir humanidade ao que quiser. A pessoa antiaborto cria vidas com um mero pensamento. Isso não só é a base da sua ideia do que configura ser humano, como também é a raiz da sua crença em algo sobrenatural. Se ela não pode tornar vivo e humano aquele embrião, começa a ficar bem difícil de defender a transformação de uma ideia em uma divindade, não?

Deixar a “ciência ganhar” nesse caso pode ter consequências gravíssimas dentro da mente da pessoa. Algo que dificilmente sua mente consciente sabe, mas é provável que esteja ao alcance do subconsciente. A reação primal contra o suposto assassinato de bebês provavelmente tem raízes bem mais egoístas. O aborto joga luz sobre uma questão filosófica profunda, a qual boa parte das pessoas não parece capacitada para lidar.

E isso gera um ciclo vicioso: a pessoa tem medo de se aprofundar e descobrir algo desagradável, por isso fica mais e mais focada em elementos superficiais da história, o que vai gerando reações cada vez mais raivosas e difíceis de se defender intelectualmente com o passar do tempo. E é aqui que eu volto para a pergunta do parágrafo inicial: será que medidas desse tipo contra o aborto realmente mudam alguma coisa?

Sem querer generalizar, mas já generalizando, o público antiaborto normalmente não concorda com educação sexual e medidas contraceptivas amplamente disponíveis para jovens. São ideias que não batem com as crenças religiosas e o conceito de moral que julgam corretos para a sociedade. Você pode até achar que ser antiaborto é ser pró responsabilidade, mas é muito mais simples: é literalmente a ideia de que pessoas estão matando bebês. Não importa o que vem antes e não importa o que acontece com o bebê depois; é sobre aquele momento e só sobre ele.

Nos EUA, muitas entidades religiosas colocam ativistas nos arredores das clínicas de aborto, e até mesmo criam falsas clínicas para tentar pegar as mães antes delas fazerem o ato. Mas não estão distribuindo camisinhas ou oferecendo outras formas de contracepção para as mulheres, essa parte fica intocada, porque a doutrina oficial é não fazer sexo se não quiser ter filho. O foco é total na mulher que está grávida e na manutenção daquela gestação “em risco”.

Se a criança vai virar outra pessoa que vai procurar uma clínica de aborto quinze ou vinte anos depois, tanto faz. A missão era simples: evitar o aborto. Isso já parece marcar os “pontos com Deus” que tanto procuram. O resto é resto. Eu não estou dizendo que acho horríveis as pessoas que são contra o aborto, eu também gostaria que nunca acontecesse, parece uma experiência traumática para todos os envolvidos.

Mas, tem uma diferença absurda entre impedir um aborto e diminuir o número de abortos. A lei texana foi pensada por gente que quer a primeira coisa. Não importam as consequências, querem impedir qualquer aborto. Ignora que antes da mulher chegar na clínica, muita coisa aconteceu. Provavelmente muitos erros facilmente corrigíveis com um pouco mais de educação e estrutura. E, curiosamente, com menos mentalidade antiaborto: quando sexo se torna algo proibido e perigoso, a pessoa tende a baixar o grau de proteção. Já está muito pressionada por outros elementos sociais para pensar em coisas básicas como camisinha e outros anticoncepcionais.

E, se não consegue ou é demovida de fazer o aborto, a mulher corre um sério risco de passar essas escolhas ruins para frente. Proibição de aborto tende a manter ou elevar o número de pessoas querendo fazer aborto. Liberação tem a possibilidade (se unida com políticas decentes) de reduzir o número de pessoas que acabam naquelas clínicas. Ou se cuidaram melhor, ou tem muito menos pressão social e vergonha daquilo para poder tomar uma decisão mais serena. Muita mulher que abortou poderia ter sido convencida a manter a criança se soubesse que teria ajuda depois. Uma rede de proteção social decente pode reduzir bastante o número de abortos. Mas, é claro, o religioso moderno acha tudo isso coisa de comunista…

Porque não é e nem nunca foi sobre reduzir o número de pessoas que querem fazer abortos, é sobre impedir que as que querem consigam. E pode ser uma ou mil mulheres, desde que a prática seja proibida, para eles dá no mesmo. Ninguém pode desafiar sua criação de vida no útero alheio, e por tabela, ninguém pode tirar deles o poder de escolher quando o outro é humano ou não. O que, convenhamos, sempre foi algo muito útil para quem tem ou almeja o poder: deixar na mão da ciência a definição de quem é vivo e quem é humano é tirar muito poder das elites.

Talvez não precisem do poder de dizer quem merece viver ou morrer agora, mas se um dia precisarem, é bom que as pessoas continuem acreditando que são eles que podem tomar a decisão. O aborto tira da mão de figuras de autoridade políticas e especialmente religiosas a capacidade de nos dizer quem salvar e quem matar. Não é sobre crianças, não é sobre moral, é sobre poder.

Para dizer que é sempre sobre poder, para dizer que isso não chega no Brasil porque estamos atrasados demais, ou mesmo para dizer que a vida começa quando se paga impostos: somir@desfavor.com


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