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Culpa x Responsabilidade

Culpa x Responsabilidade

| Sally | | 34 comentários em Culpa x Responsabilidade

Eu já devo ter falado disso de forma fragmentada, ao longo de outros textos, mas uma notícia que saiu esta semana me fez ter vontade de dedicar um texto exclusivo ao assunto. Um vídeo publicado no TikTok pelo adolescente Lucas Santos gerou comentários ofensivos que, segundo sua mãe, Walkyria Santos, foi um gatilho para que o filho se suicide.

A partir daí, surgiu todo tipo de especulação sobre o assunto, com uma confusão terminológica sem precedentes. E, que fique claro, quem fez essa confusão foram os usuários de redes sociais, não a família do menino falecido. Está se consolidando uma política de censura, de proibir falar qualquer coisa que não seja positiva a vítimas de eventos trágicos. E isso é um desfavor.

Como este não é um blog que apenas replica notícias, somos opinativos, segue a minha opinião sobre essa grande confusão que criaram no Brasil ao entender que criticar ou responsabilizar alguém é culpar a vítima. Espero que algum dia esta forma mais clara de ver as coisas ajude alguém.

Antes de mais nada, vamos para a definição fria do que é cada um deles. Culpa é o sentimento acarretado por um ato que gerou consequências negativas. Por exemplo, eu deixo meu portão aberto, meu cachorro ataca e fere alguém. A culpa é minha, isto é, o sentimento negativo pelo dano que causei a alguém está diretamente relacionado a um ato ou uma escolha equivocada que eu fiz, no caso, esquecer o portão aberto quando deveria ter o cuidado de fechá-lo.

Responsabilidade é simplesmente conectar um ato a uma consequência, sem juízo de valor, sem julgar, sem qualquer caráter subjetivo. É se fazer cargo das próprias escolhas, assumir o que faz, o que diz, o que é. O próprio nome já diz: vem de “responder”. Eu respondo pelos meus atos. Se eu deixei o portão aberto, meu cachorro saiu e atacou alguém, eu tenho responsabilidade por isso, no sentido de que meu ato contribuiu para o resultado causado. Isso não faz de mim uma escrota, uma santa, uma idiota, isso apenas me faz responsável.

É possível ter culpa sem responsabilidade, como por exemplo, uma grávida que sofre um aborto espontâneo que acontece por uma má-formação do feto sem qualquer relação com seus atos. Frequentemente mulheres que passam por isso se sentem culpadas, mesmo sabendo racionalmente que não faria qualquer diferença agir de outra forma.

Também é possível ter responsabilidade sem culpa, como no caso de milhões de brasileiros que não respeitaram os protocolos de segurança da pandemia e não perderam uma única noite de sono por isso. Se uma pessoa ciente de que tem covid vai ao salão fazer as unhas (caso real, a notícia já foi postada em outra coluna) ela é responsável por todos os contágios que acontecerem nesse salão, mas não necessariamente se sente culpada por isso.

Eu atribuo essa confusão ao mau uso da palavra “culpa” no Brasil. Frequentemente culpa é usada como sinônimo de responsabilidade. Talvez a origem disso esteja no direito, onde culpa de fato é sinônimo de responsabilidade: quem deu causa tem culpa e tem o dever de indenizar ou quem tem culpa poderá ser punido criminalmente. Quando falamos que fulano “é culpado”, estamos usando vocabulário jurídico. Quando falamos que fulano “se sente culpado” estamos falando do significado original da palavra.

Fazer uma distinção clara entre culpa e responsabilidade evita muita dor de cabeça e muitos problemas de comunicação, até mesmo para quem está passando por isso como protagonista. Ao colocar culpa em uma pessoa você nunca ajuda (fazer ela se sentir mal sobre si mesma só piora as coisas), mas ao apontar a responsabilidade, você sempre ajuda (mostrar a relação causa e consequência evita futuros erros).

Vamos começar usando o exemplo clássico: vamos supor que eu fui a uma festa em um lugar meio duvidoso, saí de lá tarde, voltei sozinha e passei por um lugar deserto, onde fui abordada por um homem que me estuprou. Eu tenho culpa? Óbvio que não, naquele momento, dentro das minhas capacidades, no meu discernimento, eu fiz algo que julgava seguro (nenhuma mulher se coloca em risco voluntariamente). Eu tenho responsabilidade? Sim, pois foi meu ato que gerou essa consequência.

Isso quer dizer que eu não devo me sentir culpada pelo que aconteceu, ou seja, merecedora do que aconteceu, como uma retribuição a uma escolha errada. Em um mundo ideal, uma mulher deve ter o direito de errar o quanto quiser sem que disso decorra uma violência física. Porém, parar por aí e isentar a pessoa de qualquer vínculo com o ocorrido não é um ato de amor ou reconfortante, como a maioria pensa: é perigoso, é um desfavor e pode induzi-la a cometer esse ou outros erros no futuro, por acreditar que seus atos em nada tem a ver com o evento.

Mas, se a gente conseguir explicar de forma muito cuidadosa e didática que não há culpa (ela não deve se sentir merecedora disso) mas há responsabilidade (um vínculo direto entre suas escolhas e o ocorrido), pode haver algum aprendizado: vivemos em um país onde muitos homens se portam como animais e, infelizmente, por mais injusto que seja, uma mulher que não quer ser vítima de violência deve tomar alguns cuidados e se colocar algumas restrições, entre eles, não ficar sozinha em locais desertos.

“Ain mas você está dizendo que a culpa é da vítima?”. Não, muito pelo contrário, eu estou dizendo que a vítima não tem culpa, ou seja, ela não tem que se sentir mal consigo mesma, não tem que carregar o peso de ter causado o evento. Estupradores estupram, ela ou quem estiver em situação vulnerável. O que ela tem é uma parcela de responsabilidade, ou seja, suas escolhas contribuíram para que o resultado fosse esse. Isso não fala sobre seu caráter, sobre sua índole ou sobre sua vontade, é um mero vínculo entre um ato e uma consequência.

Não é ofensivo, degradante ou cruel responsabilizar alguém por seus atos ou suas escolhas. Até hoje não entendo o motivo pelo qual isso é considerado um ataque ou uma falta de consideração no Brasil. Talvez pelo fato do povo nunca querer ser responsabilizado por nada (a responsabilidade é do político, da inveja, da macumba, da vizinha ou do zodíaco). Mas, responsabilizar alguém (e eu sei que isso vai soar alienígena para muitos) é um ato de amor.

Responsabilizar alguém é mostrar à pessoa a conexão entre seus atos/escolhas e um resultado. Vamos para um exemplo menos pesado, para que quem lê não crie resistência ao que estou tentando passar: eu estou jantando com uma amiga, peço uma salada com maionese e minha amiga diz que ela está com aspecto estranho. Eu a provo. Eu sinto um gosto estranho, mas me convenço de que não é nada e a como mesmo assim. No fim do dia, tenho uma grande dor de barriga.

Seria tão desumano que minha amiga me diga “foi aquela salada, você não tem que comer nada quando estiver com o aspecto x”? Não me parece desumano, nem cruel, nem negativo. Me parece uma oportunidade de aprendizado (a real, não aquela usada por blogueiros quando fazem merda). Estão me mostrando que quando eu pratico um ato, vem uma consequência que não é boa para mim. É uma forma de cuidado: não faça mais isso, para que essa coisa ruim não se repita.

Apontar a responsabilidade não é colocar culpa na pessoa. Colocar culpa seria se minha amiga falasse “Tá vendo como você é burra? Eu avisei, mas você é teimosa, não escuta ninguém! Agora está aí se cagando toda, bem-feito para aprender”. Ninguém está te mandando para o cantinho da vergonha ao apontar responsabilidade. A culpa é subjetiva, a responsabilidade é objetiva, uma mera conexão entre uma coisa e outra, sem juízo de valor sobre sua pessoa. E se alguém te escrotizar a pretexto de apontar responsabilidade, saiba que a pessoa não está apontando responsabilidade e sim te colocando culpa.

Acredito que ninguém aqui daria um esporro culpando uma pessoa por algo que era totalmente imprevisível para ela. Culpa a gente tem/sente quando faz algo que sabe que pode gerar consequências negativas, como por exemplo, esquecer o portão aberto sabendo que tem um cão feroz em casa. A pessoa sabe que se o portão ficar aberto, o cão pode atacar alguém, então, ela tem que criar um sistema para se lembrar sempre de fechar o portão.

Mas se o cachorro arrebenta o portão, independente de todos os cuidados que o dono teve, não me parece existir motivos para sentir culpa. Dentro do que a pessoa sabia, ela fez o seu melhor, não tem culpa. Mas tem responsabilidade. A escolha de portão que ela fez gerou o resultado, que é uma ou mais pessoas feridas. E é bom que perceba que tem responsabilidade, assim, da próxima vez que for escolher um portão, saberá que ele precisa ser mais resistente.

Se, cada vez que sai algo errado e disso decorre uma consequência ruim, (como alguém se machucar ou morrer), não pudermos apontar a responsabilidade, a desgraça vira apenas algo horrível sem utilidade. Entretanto, se pudermos apontar a responsabilidade sem que os envolvidos se ofendam, se magoem ou se sintam atacados, a desgraça pode servir para evitar outras desgraças, pois vai conscientizar os envolvidos e toda a sociedade que participou ou tomou conhecimento do evento.

É como dizer: “Está tudo bem, na hora, você fez o melhor que você podia, com base no que acreditava estar acontecendo/vendo/sentindo, sabemos que você não queria esse resultado, sabemos que você não merece isso, sabemos que você está sentindo dor e somos solidários a essa dor, nós a validamos e a respeitamos. Mas queremos que você perceba que existe uma conexão entre seu ato e o resultado disso. Realizar tal ato pode gerar tal consequência, nesse contexto, então, é preciso trabalhar para que esse ato não se repita”

“Mas Sally, isso não é óbvio?”. Não, infelizmente não. Muita gente faz escolhas ruins, sofre consequências horríveis e vem um bando passar a mão na cabeça, dizer que aquilo é um erro apenas do outro e que a pessoa não tem qualquer participação nisso. A pessoa acredita e, tempos depois, faz a mesma escolha ruim, com as mesmas consequências. Não apontar responsabilidade pode manter a pessoa em erros cíclicos.

Sem querer mexer em um vespeiro, mas já mexendo, é muito comum em mulheres que estão em relações abusivas quando poderiam sair delas. Há mulheres com muito dinheiro, em cargos de prestígio, que se mantém nas mãos de abusadores ou trocam de um abusador para o outro. Essas mulheres frequentemente são amparadas por suas amigas que, acreditando ser um ato de amor, lhes dizem que não há qualquer parcela delas naquilo, que homens simplesmente não podem bater em mulher e ponto.

Sim, deveria ser assim. Mas não é. O Brasil é um dos países campeões em agressões a mulheres, então, as coisas são como elas são, não como a gente gostaria que elas fossem. A mulher precisa sim estar atenta a alguns sinais, traçar uma linha, colocar limites e pular fora quando essa linha for cruzada, não importa o quanto ela ache que ama o agressor. Amar a si mesma em primeiro lugar tem que ser prioridade, quem não ama a si mesma não ama a ninguém, tem apenas dependência emocional.

Apontar a uma mulher agredida os sinais que ela ignorou, as linhas que foram cruzadas sem que ela se retire da relação e outros atos que levaram a isso não é colocar culpa nela. A mulher agredida não tem culpa, pois nada justifica uma agressão (exceto legítima defesa). Ela não deve se sentir culpada. Ela não é merecedora daquilo por não ter pulado fora. O sujeito foi sim um escroto e cometeu atos repudiáveis e criminosos.

Mas, a mulher deve perceber que tem sim responsabilidade por ter deixado as coisas chegarem aonde chegaram, se tinha possibilidade de fazer diferente, pois, ao perceber essa responsabilidade, ela vai aprender o que não pode ser tolerado. É a mera conexão entre causa-efeito: se tolero isso, acontece aquilo. Zero julgamentos, zero subjetividade, zero culpa. É a compreensão do que aconteceu para que aquele desfecho seja aquele desfecho.

Quando você coloca uma situação como essa nas mãos da aleatoriedade (“fulana teve azar no casamento” ou “homem não presta”) a mulher pode seguir repetindo o mesmo padrão, o mesmo erro, o que por sinal, é bastante comum, justamente por acreditar não ter responsabilidade. Apontar responsabilidade não é um julgamento, não é um juízo de valor negativo sobre a pessoa, é apenas fazer uma conexão entre uma ação e uma consequência.

Hora de acabar com o “shaming” (fazer a pessoa se sentir envergonhada por algo) contra quem aponta responsabilidade. Apontar responsabilidade não é fazer o outro se sentir mal, é dar-lhe a chave que abrem as portas dessa prisão na qual ele vem se colocando. É quebrar um ciclo de comportamento autodestrutivo ou perigos. É, quem sabe, salvar a vida da pessoa. “Se você se expuser de tal forma, as pessoas vão te criticar muito, se não está pronto para isso, não se exponha”.

A família desse menino que se suicidou não tem que sentir culpa de absolutamente nada, afinal, dentro da possibilidade deles, fizeram o melhor. Mas há responsabilidade, que não só eles, mas qualquer um que cria uma criança tem: construir uma autoestima forte que não seja derrubada por crítica de internet, ensinar aos filhos que seu valor não depende da opinião de terceiros e, se perceber que não conseguiram isso, disponibilizar terapia. Mas, nem os adultos conseguem… como ensinar a uma criança algo que não se tem e não se sabe?

Ter filhos demanda não só muito tempo e dinheiro, mas também muita maturidade emocional e equilíbrio. Sinto muito se isso soa cruel para alguns, mas não é, o que é cruel e ter filhos sem estar preparado para isso. Se isso fosse dito mais frequentemente, mais claramente e se a conexão entre pais sem maturidade emocional/equilíbrio e filho com sérios problemas ficasse clara, talvez as pessoas procurassem se estabilizar emocionalmente fazendo uma terapia antes de colocar filho no mundo.

Ninguém muda “porque vai ser pai”, isso é um devaneio romântico: “ah, mas agora que teve um filho vai ter que ser diferente” – não vai. Reproduzir não muda pessoas. Pessoas mudam quando trabalham ativamente para essas mudanças.

E quem não tem equilíbrio emocional, maturidade ou estrutura corre o sério risco de ter um filho que também não tenha esses atributos – e a vida vai maltratar muito essa criança/adolescente. É como jogar no mar alguém que não sabe nadar. ISSO é cruel, não apontar responsabilidade. Milhões de crianças/adolescentes sofrem bullying e apenas algumas se matam. Por que motivo será? Karma? Destino? O signo? Não. É a estrutura emocional que foi construída em sua infância.

Isso faz de quem não consegue construir um emocional saudável para os filhos um fdp, um cretino, um criminoso? Não. Não estamos julgando nada pessoal, nada subjetivo. Mas sim, há uma relação direta entre a estrutura emocional de uma pessoa e seu suicídio por motivos de rejeição, isso é inegável. E quanto mais a gente falar sobre isso, melhor.

Para dizer que eu sou uma escrota, para dizer que esperava um DesContos ou ainda para não me xingar por medo de que eu volte a escrever sobre coronavírus: sally@desfavor.com


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