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Abandonados.

Abandonados.

| Desfavor | | 20 comentários em Abandonados.

O avanço do grupo extremista Talibã em Cabul, capital do Afeganistão, provocou cenas de desespero nesta segunda-feira (16) no aeroporto local. Alguns moradores locais se agarraram nos trens de pouso dos aviões militares norte-americanos para tentar fugir do país. LINK


Esse é só um exemplo do tamanho da crise vivida no Afeganistão, o que deveria colocar em perspectiva as militâncias pessoais de cada um, não? Não. Desfavor da Semana.

SALLY

Tem um conto que ilustra a mensagem que queremos passar hoje. Vou resumir bastante, pois muitos já devem conhecer. Um sábio pegou uns sujeitos que se achavam donos da verdade e vendou seus olhos, depois os colocou de frente para um elefante e disse que, já que eles eram tão espertos, teriam que identificar que animal era aquele.

A pessoa que segurou a tromba afirmou com toda a certeza que era uma cobra, a pessoa que pegou a orelha afirmou com toda certeza que era um morcego, e assim, eles foram errando, um a um. Ninguém acertou, óbvio, pois nenhum deles tinha acesso a todas as informações necessárias.

O elefante é o Afeganistão. Os sabichões com os olhos vendados são as pessoas que estão opinando sem entender as décadas de história, começando lá na guerra fria, que levaram as coisas até a atual situação. Meus queridos, opinião é como cu: se você sair dando a toda hora, cedo ou tarde vai sair merda.

Afeganistão pode parecer um assunto fácil, pois já foi muito falado, mas é muito complexo. Muito mesmo. Pessoas estão pegando fragmentos das informações que lhes convém e usando para militar em suas causas ou reforçar suas convicções. Quem não gosta dos EUA bota toda a culpa nos EUA, quem não gosta do Biden bota toda a culpa no Biden, quem gosta dos EUA bota a culpa no Afefanistão. Tá puxado.

É simplesmente vergonhosa a quantidade de atrocidades que lemos esta semana. A mais popular foi “os EUA libertaram o país, eles é que não aproveitaram a oportunidade”. Francamente, para falar uma coisa dessas, cala a boquinha. Libertaram porra nenhuma. Deixaram nas mãos de um governo corrupto e não fizeram o dever de casa que anunciaram que foram fazer.

Os EUA não invadiram o país e exterminaram o Taliban. Os EUA entraram nas principais cidades e montaram guarda lá, impedindo que os Talibans tomem o poder, mas eles continuaram crescendo e se multiplicando no interior livremente, portanto, não é nenhuma surpresa que, quando os EUA retirem seus guarda-costas, eles voltem rápido e em massa. É previso, é sabido, é pensado.

Se é para falar da missão oficial dos EUA no Afeganistão, podemos dizer que fizeram um trabalho bem bosta. Oficialmente eles tinham por objetivo 1) Matar Osama Bin Laden; 2) Destruir o Taliban e 3) Construir uma democracia. Bin Laden, se é que morreu, demoraram dez anos para matar e só foram matar no Paquistão. O Taliban não foi destruído, deixaram eles em paz, no cantinho deles, longe das capitais. Democracia não se constrói e se consolida em poucas décadas, seria insano exigir isso do país. E tudo isso custou para o contribuinte americano 7 trilhões de dólares. Belíssima bosta.

Aí teve o lado oposto. Quem diga que os EUA impuseram sua cultura, sobrepondo-a à local, considerando isso uma agressão ao Afeganistão. A CIA isso, os americanos aquilo… Os EUA não foram heróis salvando o Afeganistão e promovendo democracia, mas também não dá para dizer que conter o Taliban tenha sido ruim.

Irmão, se tem gente sendo morta, torturada, apedrejada por seu sexo, crença, orientação sexual ou denúncia do vizinho vai desculpar, mas o caralho que isso é cultura. É barbárie e tinha que acabar. Se você não gosta dos EUA, é sagrado direito seu. Mas, se para ostentar seu desgostar pelos EUA você fica do lado de Taliban, que mata, barbariza, tortura e promove o terror, você é um débil mental.

Dá para desgostar de ambos, sabia? Dá para desgostar dos EUA, entender o que eles fizeram e, ainda assim, ver que qualquer um que pare esses fanáticos, por menos nobres que sejam as motivações, está fazendo algo bom.

Não adianta ficar “Ain a culpa é do Biden”. A culpa é de todos os últimos presidentes dos EUA, inclusive do Trump, que foi quem formalizou a retirada dos soldados de lá. E não é sobre os soldados. Só tinha 2500 soldados americanos lá. Não eram 2500 pessoas que impediam o Taliban de entrar na capital e tomar o poder. Era saber que se tentassem alguma coisa, os EUA viriam com tudo para cima. O que os impedia de entrar era os EUA se declarar protetor do Afeganistão. E os EUA estão abandonado o Afeganistão pouco a pouco, desde Obama.

Não tem dessa de político X querer salvar o Afeganistão e político Y abandonar os pobres coitados. A ação dos EUA foi uniforme, por décadas, não importa quem estivesse no poder. Nunca foi sobre ideologia. Não é sobre Biden ou Trump. Não é sobre Democratas ou Republicanos. Não é sobre esquerda ou direita.

Todos os políticos americanos, quando tiverem interesse econômico e apoio popular vão invadir país e quando não tiverem mais, vão sair. Fato da vida. Não façam disso o foco. Sempre foi assim, fulano não e mais malvado que beltrano, ambos agem da mesma forma quando o assunto é segurança e política internacional é como as coisas funcionam. Parem de levantar bandeiras de diferentes lados, parem de polarizar, parem de fingir que a mesma merda é composta de santos e pecadores.

Não é nem mesmo sobre feminismo, apesar das feministas brasileiras estarem surpreendentemente caladas. É uma crise humanitária. Eu sei que o Taliban trata muito mal as mulheres, mas eles barbarizam todo mundo que consideram como inimigo ou traidor, inclusive outros grupos como gays, por exemplo.

Qualquer pessoa que seja denunciada como traidor vai ser torturado e morto de forma bárbara sem direito a resposta. Não tem julgamento, não tem direito de defesa, não tem nada. É crise HUMANITÁRIA. Todos os seres humanos que estão no Afeganistão estão em risco e, se não forem retirados de lá, vão sofrer barbáries. Homem, mulher, criança. Todos.

É uma realidade tão diferente de tudo que se conhece que as pessoas parecem estar com dificuldade em mensurar o que está acontecendo. Teve jornalista reclamando que as pessoas estavam sem máscara e se aglomerando. Sério mesmo, ninguém se preocupa com covid mais do que eu, mas pensar em uso de máscaras naquele lugar e naquele contexto mostra uma total desconexão da realidade.

Estamos diante de uma catástrofe humanitária gravíssima. Não tem bandeira política que se sobreponha a isso. Não tem militância, não tem nem sequer combate a uma pandemia que se sobreponha a isso. O que tem que ser visto, falado e combatido agora é a crise humanitária: salvar vidas, tentar assegurar a dignidade dessas pessoas, tentar resgatar o máximo de pessoas possíveis.

Não é hora de tomar lados: o partido tal, o presidente tal, ideologia tal. Parem com essa mania escrota de sempre tomar um lado. Não é hora de tomar lados, é hora de usar tudo que se tem para resgatar pessoas. É hora de tentar minimizar uma crise humanitária bizarra que está acontecendo. É hora de tomar consciência de que graças a um radicalismo religioso uma parcela dos seres humanos do mundo está sendo expostas a todo tipo de injustiça e atrocidade.

Falar sobre qualquer outra coisa, política, militância ou até covid, nesse cenário, é vergonhoso. O mundo deveria estar fazendo uma divisão racional da população do Afeganistão por países e cada um acolhendo uma quantidade de gente.

Para dizer que você tem que emitir uma opinião, mesmo sabendo pouco sobre o assunto, para dizer que você tem que tomar um lado, com base nas suas preferências pessoais ou ainda para militar sem nem saber apontar no mapa onde fica o Afeganistão: sally@desfavor.com

SOMIR

Eu brinco que a resposta mais bem informada para qualquer pergunta é “depende”. Mas é daquelas brincadeiras com um fundo de verdade. A verdade é que vivemos numa realidade extremamente complexa, e qualquer ilusão de simplicidade é mera adaptação da nossa mente a esse fato. É complicado formar uma opinião sobre um tema, ainda mais complicado ser coerente entre todas elas.

O que, é claro, não nos deve impedir de tentar entender as coisas e nos posicionar. De forma alguma estou pregando desistência, estou apenas dizendo que quanto mais informação você acumula sobre um tema, o grau de confiança sobre qualquer ideia tende a diminuir. No Afeganistão, por exemplo, temos um país devastado por décadas e décadas de invasões imperialistas, tantos dos soviéticos quanto dos americanos.

Guerras sem fim que impediram que o país se desenvolvesse no mesmo passo que muitos outros. O Talibã é um grupo antigo, financiado pelos EUA para derrubar o regime soviético na região, e que depois disso virou alvo da fúria americana pós ataques de 11 de Setembro. Agora, pro Talibã, tudo isso nem fez muita diferença: eles nasceram para aplicar sua visão do islamismo à força na sua região, e nunca desviaram o foco desde então. Não importa quem financia ou que linha ideológica esteja em vigor no resto do mundo, o Talibã pega arma e atira em quem for contra o que eles querem impor.

Eles nunca foram eliminados, apenas afastados das principais cidades. Os americanos sabiam disso, sabiam que não tinham acabado com o grupo e que assim que saíssem o país cairia de novo nas mãos deles. Já vazaram os avisos das autoridades locais avisando a presidência americana que isso aconteceria em questão de dias, mas o governo americano fez a retirada do mesmo jeito.

Porque mesmo essa questão é complicada: pesquisas de opinião do povo americano sobre a invasão do Afeganistão mostravam que a imensa maioria do povo era a favor de trazer os soldados de volta e deixar o país asiático se virar sozinho. Mas foi só começar a aparecer vídeos do desastre humanitário acontecendo com a volta dos fanáticos que a opinião pública americana já mudou: agora é meio a meio sobre a retirada das tropas.

Trump se elegeu prometendo isso, mas mesmo seu antecessor já flertava com a ideia de parar de gastar dinheiro por lá. Quando Trump faz o acordo com o Talibã para retirar as tropas, está apenas cumprindo o que prometeu, baseado na sua opinião e a de tantos outros americanos que queriam mais que o Afeganistão se explodisse e deixasse de ser um lugar para onde soldados americanos vão para morrer por nada.

Mas, curiosamente, assim que o Talibã voltou, muitos dos veteranos de guerra americanos precisaram de aconselhamento psicológico, porque ficou claro para eles que tudo o que sofreram por lá não teve função. Imagina só voltar para casa achando que perdeu as duas pernas para salvar o povo afegão e ver pela TV o Talibã voltando como se nada? Não servia para nada enquanto estavam lá, serve para nada quando saem de lá.

Existe uma imensa complexidade de fatores políticos e econômicos que criaram e acabaram com essa guerra, e quase nenhum deles tinha a ver com o povo afegão. Claro, era um resultado positivo ver meninas afegãs voltando para a escola e mais tolerância secular nas grandes cidades, mas claramente era uma questão de custo/benefício. O custo ficou alto demais para esse benefício. Trilhões de dólares depois, os EUA decidiram que não valia mais a pena. Se é que valeu um dia.

É tudo muito complicado.

Menos uma parte, porque toda regra tem sua exceção: não é nada complicado ser contra assassinato, tortura e opressão. Porque é isso que o Talibã traz de volta para a parcela da população afegã que teve proteção americana nessas últimas duas décadas. A transição foi rápida porque no interior do país, o grupo radical já controlava as coisas faz tempo. Mas, até pelo modo de vida desse povo do interior de um país que ficou parado no tempo, o Talibã não era tão chocante assim. O que vamos ver agora é como a bolha de proteção americana vai reagir depois de estourada.

Os EUA maquiavam uma realidade terrível para o povo local com a proteção de algumas capitais e a ameaça constante de retaliação caso o Talibã cometesse alguma atrocidade “visível” para a mídia mundial. Quando a maquiagem escorreu, vimos todos quão feia era a situação. E agora não adianta escolher uma causa ou defender seu grupo político preferido, não adianta ter raiva ou amor pelos EUA, não adianta escolher um grupo preferido da população local para defender: a cada dia que passa o Talibã vai ter mais e mais certeza da impunidade.

E aí, o mundo de 2021, um mundo muito mais conectado do que o de 1996, quando o grupo assumiu o controle pela primeira vez, vai ver mais uma crise humanitária, e dessa vez não vai ter como fingir que não é com eles, como quando acontece na China, por exemplo. O Talibã é um bando de malucos armados que não tem impacto no comércio internacional. A defesa deles é a conta que os EUA pagaram para ficar no seu país por duas décadas. Ninguém mais vai querer pagar essa conta… China e Rússia são especialistas em fazer vistas grossas, e são os dois países que estão tentando ganhar a influência sobre o país.

O grande desfavor é que vamos ver a barbárie de volta em escala total no Afeganistão, que o ser humano ainda é isso, e que se você quiser ser tratado de forma decente, é bom ter como pagar por isso. Os afegãos não podem mais.

Para dizer que é igual na metade do mundo que não vemos pela internet, para dizer que é culpa do Bidrumpama, ou mesmo dizer que nem sabia que esse país existia: somir@desfavor.com


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