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Revolução Haitiana.

Revolução Haitiana.

| Somir | | 23 comentários em Revolução Haitiana.

Acaba de sair a notícia do assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, o que quer dizer que pelo menos por um ou dois ciclos de notícias, vamos ouvir falar muito sobre o país. A nação caribenha poderia ser conhecida como uma das primeiras independentes nas Américas ou a primeira a abolir a escravidão, mas infelizmente o é por causa da extrema pobreza e instabilidade política. Como isso aconteceu?

Localizada na América Central, a ilha de São Domingos (ou Hispaniola), foi uma das primeiras visitadas por Cristóvão Colombo, ainda em 1492. Por lá viviam nativos do povo Taíno, que inicialmente receberam os europeus de forma amistosa. Aproveitando a situação, os espanhóis criaram a primeira colônia europeia permanente nas Américas, onde hoje em dia fica a República Dominicana.

Já no ano seguinte, os espanhóis vieram em peso para tomar controle da região. A diferença brutal de tecnologia de guerra foi percebida por Colombo, que já calculava quantos homens e armas seriam necessários para tomar a ilha enquanto sorria para os nativos. Em pouco tempo, as doenças europeias para as quais os locais não tinham anticorpos deram conta de dizimar os taínos, sem contar, é claro, o completo desinteresse espanhol pelo bem-estar dos habitantes originais.

Mas essa parte da história quase toda a América tem em comum. Do norte ao sul, europeus conquistaram povos indígenas com o uso de espadas e doenças. O diferencial haitiano começa com a importação em massa de escravos africanos a partir de 1501. As plantações e minas espanholas precisavam de mão de obra e os índios não sobreviviam tempo suficiente. Os Taínos ainda sobreviveram como um povo por algumas décadas, inclusive se unindo com escravos africanos para realizar algumas revoltas. Mas no final das contas, acabaram mortos ou integrados à população local.

Com a exploração de outras colônias americanas pelos espanhóis, o interesse na ilha de Hispaniola diminuiu, levando a várias décadas de estagnação. Foi nesse desinteresse espanhol que os franceses conseguiram fincar pé na ilha. Em 1697, a Espanha acabou cedendo parte da região para a França. E a França não perdeu tempo com sua colônia americana: em pouco tempo, Saint-Domingue foi chamada da pérola das Antilhas, produzindo açúcar em altíssima demanda no continente europeu.

Toda riqueza produzida com trabalho escravo. A proporção de escravos africanos para europeus na colônia era imensa, os europeus claramente cegos pelos lucros, foram criando um barril de pólvora na região. Onde tem dinheiro, tem interesse: quase todas as nações europeias tentavam pegar um pedaço daquela região riquíssima, e até mesmo uma colônia inglesa em franca expansão logo ao norte se interessava pela ilha.

Em 1791, o barril explodiu na Revolução Haitiana. Escravos, ex-escravos, espanhóis, britânicos, e até mesmo poloneses se juntaram para declarar independência dos franceses. Numa série de batalhas muito sangrentas, nascia o Haiti, sob o comando de um ex-escravo que prontamente aboliu a escravidão. O governo colonial francês foi expulso, e antes que você se esqueça como era o mundo naquele tempo, os franceses que não conseguiram fugir a tempo foram massacrados.

Mas, para você não se esquecer de novo como era o mundo naquele tempo, até para os padrões da escravidão, os franceses eram cruéis. Com dez escravos para cada francês em média, havia o medo constante de uma revolta. Mas, com a região produzindo 60% do café mundial e 40% do açúcar utilizado na França e na Inglaterra, ninguém se interessou em ler as placas de “pare”.

Quando a revolução finalmente começou, não tinha muito o que controlar na região. Estima-se que mais de cem mil escravos aderiram à revolta e começaram a matar seus mestres e destruir plantações. Muitos ainda achando que estavam lutando com o apoio do rei da França, uma fake news daquela época, onde se dizia que a monarquia francesa havia abolido a escravidão e os líderes da colônia estavam desrespeitando a ordem.

No meio da confusão, a França declarou guerra contra a Grã-Bretanha, o que só tornou a situação mais imprevisível. Irritados com a falta de suporte da coroa francesa, os escravocratas locais tentaram se aliar com os britânicos, esperando que eles evitassem a liberação dos escravos. Os britânicos aceitaram a oferta, esperando que controlar a colônia mais rica das Américas fosse uma boa moeda de troca assim que a guerra acabasse e precisassem negociar a paz.

Está acompanhando a bagunça? Piora. Para enfraquecer os britânicos, e à luz da recente Revolução Francesa, os franceses abolem a escravidão em todas suas colônias, esperando que os agora ex-escravos defendessem a ilha. Aí, os espanhóis, que estavam logo ao lado com sua própria colônia lucrativa, resolvem apoiar os franceses para evitar que os ingleses se enfiem no meio da situação.

Enquanto isso, apoiado pelos espanhóis, cresce a figura de Toussaint Louverture, ex-escravo e agora um dos generais mais poderosos da revolta haitiana. Toussaint, espertamente, não confia em ninguém, sabendo que aquela bagunça toda poderia se voltar contra o povo que tentava liberar a qualquer momento. Uma das maiores armas de Toussaint foi o subterfúgio, trocando de lado entre espanhóis e franceses assim que percebia uma oportunidade.

Ao mesmo tempo que toda essa luta acontecia em Hispaniola, a recém independente ex-colônia inglesa começa a fazer mais e mais diferença na geopolítica local. Os Estados Unidos aparecem de surpresa, com poderio econômico e militar suficiente para desequilibrar a balança em direção à liberdade haitiana. Depois de uma série de acordos e facadas nas costas entre os participantes, Toussaint consegue expulsar os espanhóis da ilha e consolidar o poder em mais uma guerra sangrenta contra outro general local.

Só para Napoleão Bonaparte invadir a ilha! Com a promessa de não mexer na abolição da escravidão, as tropas napoleônicas queriam acabar com os generais haitianos e retomar o controle local. Toussaint não estava disposto a ser apagado da história. Com a força de uma população que atribuía a ele a liberdade recém-conquistada, os haitianos peitaram Napoleão… e ganharam. O Haiti é uma das poucas derrotas de Bonaparte, e provavelmente o motivo pelo qual ele abandonou seus planos de um império americano (tentar conquistar uma parte dos EUA também não ajudou).

Em dezembro de 1803, depois de mais uma década de batalhas, os haitianos finalmente venceram a resistência francesa, e logo depois fundaram o primeiro Estado criado por uma revolta de escravos. Estima-se que mais de duzentas mil pessoas tenham morrido nessa revolução, a imensa maioria escravos africanos. Foi sangrento, foi terrível, mas de um significado histórico ímpar.

Muito se fala da Revolução Francesa como marco para o início da era moderna da humanidade, mas eu acredito que possamos argumentar que a independência haitiana tenha algo de ainda mais especial na nossa história. Se você torce pelo mais fraco numa luta, não fica melhor do que isso: escravos que sofreram abusos terríveis se organizaram para se livrar das garras dos maiores impérios da época, mandando até Napoleão de volta para a França com o rabinho entre as pernas.

A gente olha para o Haiti hoje como um lugar onde tudo dá errado, provavelmente sem a visão da grandiosidade do que aconteceu ali. Não é só um país pobre que a gente usa como sinônimo de lugar ruim, é um dos berços do mundo como conhecemos, uma quebra na realidade de um planeta que até então nunca tinha se preocupado muito com as consequências de oprimir e explorar. Claro, a humanidade continuou e continua fazendo isso, mas desde o Haiti não na mesma escala, e com certeza não com a mesma certeza da impunidade.

Se fosse um filme, eu com certeza terminaria com Toussaint assumindo a presidência do Haiti e a esperança de dias melhores. Mas na vida real, as coisas continuam… e no caso do Haiti, continuaram num caminho cada vez pior. Evidente que nenhum dos poderes mundiais gostou dessa ousadia haitiana, foram obrigados a tolerar, considerando que custava caro demais tentar controlar a ilha de novo. E aí, começa o Haiti moderno.

O Haiti do abandono. Depois da independência, um país precisa encontrar aliados, e rápido. Sem o reconhecimento internacional, qualquer novo país está fadado ao fracasso. E o reconhecimento internacional haitiano custou muito caro. Muito caro mesmo. Para conseguir realizar comércio internacional e ser respeitado como Estado soberano, o Haiti teve que pagar reparações de guerra para a França, num valor tão absurdo, mas tão absurdo, que mesmo depois de negociado para cair quase pela metade, só foi terminar de ser pago em 1947!

Quando os franceses vierem com seu papo de igualdade e fraternidade, sempre bom lembrar quem faliu o agora mais pobre país das Américas. Para dar conta dessa dívida astronômica, que chegou a ocupar 80% da produção nacional só para pagar prestações, o Haiti acabou voltando às suas raízes agrárias, explorando os ex-escravos com salários ridículos, que “tecnicamente” não eram a volta da escravidão. Isso manteve o povo muito pobre, sem quebrar a dinâmica de uma minúscula elite muito rica vivendo cercada de gente miserável.

E para piorar, com muitos países incomodados com a ideia de abolição da escravidão, o Haiti penou para conquistar aliados. Isolado e empobrecido, o país começou a ser governado por uma série de ditadores, cada vez mais violentos e malucos. É o ciclo da desgraça: um governo é tão ruim e violento que o próximo tem que tirar na força, e só quem tem coragem pra isso é alguém pior e mais violento…

Não ajudou em nada os interesses imperialistas dos EUA, que sempre que podiam, invadiam o país em nome da paz (vulgo medo de algum adversário invadir primeiro), mas não resolvendo o problema maior da desigualdade. E por conta do apoio dos EUA, o Haiti teve em comum com a América do Sul um ditador “anti-comunista” que ficou por muito tempo no poder, afundando o que ainda restava naquele país. “Papa Doc” assumiu o poder em 1957, ficou até 1971, sendo substituído pelo filho até 1986. Nesse ponto, os EUA já estavam um pouco mais relaxados com a “ameaça vermelha”. Papa Doc e Baby Doc controlaram o país com mão de ferro e a incompetência costumeira de ditadores do tipo.

Quando o Haiti parecia finalmente ter um respiro para recomeçar, leva na cabeça uma sequência de desastres naturais na forma de furacões, tempestades tropicais e um terremoto devastador em 2010. O país, que já estava arrasado por séculos de má administração, não resiste a mais essa pancada. Há mais de uma década o país tenta se reerguer, sem sucesso. Não ajuda nada que continue sendo controlado por políticos pouco afeitos à democracia. O presidente morto hoje estava no cargo por decreto, à revelia da oposição.

Imagine um país que passou por tudo o que o Brasil passou, mas dez vezes pior e com dez vezes mais guerras e violência. Sem contar os desastres naturais. O sacrifício realizado pelos revolucionários condenou o país, mas de uma certa forma, acelerou demais a abolição da escravidão ao redor do mundo. Pode achar o Haiti um lugar horrível, porque infelizmente ainda é, mas se puder, quando olhar para o país, lembre-se de que eles pularam na granada que ninguém mais teve coragem de pular.

E com isso, possivelmente salvaram o mundo como conhecemos hoje. Olhe para o Haiti e se lembre do preço que eles pagaram: os escravos que finalmente assustaram os mestres. Quando eles se mexeram, todo mundo teve que se mexer. É assim que se muda o mundo, mas infelizmente o preço foi muito caro.

Para dizer que achava que eles eram azarados mesmo, para dizer que o melhor que fazemos é não mandar exército brasileiro, ou mesmo para dizer que se identificou: somir@desfavor.com


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