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P**** G******

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| Sally | | 54 comentários em P**** G******

Vamos bater um papo sobre um assunto polêmico? Vocês vão entender exatamente a que me refiro, mas, para não trazer problemas, fã-clube e histéricos de toda a laia, não vou citar nomes.

Como todos devem saber, um famoso humorista faleceu de covid esta semana. Que ele esteja bem, que sua família possa encontrar algum conforto, que sua mãe e seu marido possam, de alguma forma, sobreviver a esta tragédia e voltar a sorrir um dia. Mas, não é sobre ele que quero falar, e sim sobre a lambança que fizeram em nome dele em redes sociais, em especial sua coleguinha humorista, sempre histérica no modo de falar e no gestual, e agora também no discurso.

“Nada é impossível para Deus, tenho CERTEZA de que ele vai se salvar”

“Imagina ficarem com esse pessimismo para cima dele o nível de energia. Os amigos próximos têm CERTEZA da cura”

“Eu tenho TOTAL CERTEZA de que o Fulano ficará bem. TOTAL. Vamos rezar. Não fiquem especulando nem com pensamentos negativos. Bora rezar para ele ficar bom logo. Pq ficar bom ele vai.”

“Amigos, o Fulano vai ficar bem. O bom dele ser amado por tanta gente é que são milhões de pessoas mandando energias positivas para ele. Por favor emane só energia de cura para ele. Não projete medo.”

Estes são alguns trechos tirados de redes sociais de pessoas com zilhões de seguidores, pessoas famosas, formadoras de opinião. E, pelo visto, muito burras e arrogantes também. Obviamente não foi só ela, isso é um modo de funcionar. Tem muita gente que se porta sistematicamente dessa forma odiosa e acaba recebendo aplausos por isso. Não hoje.

Antes de começar a passar o trator, quero esclarecer que eu acho muito importante e saudável ter algum tipo de espiritualidade. Espiritualidade não se confunde com religião. Espiritualidade é dedicar tempo e esforço para manter sua mente sã, em um bom lugar, para se conhecer e aprender a se respeitar, para evoluir em seus pensamentos e pontos de vista. É ter mais consciência, serenidade e senso de coletividade. Isso é bom, é importante e é desejável.

Mas, o que vimos aos borbotões não foi isso. Foi um povo que eu chamo pejorativamente de “Gratiluz” (pois ficam postando “gratidão” e “luz” de forma banalizada), uns xiitas do pensamento positivo, uma gente chata e até agressiva, que prega uma positividade tóxica, mentirosa e irreal quase que como obrigação, ofendendo e menosprezando quem não reza pela sua cartilha. Ou você se junta ao devaneio de fazer afirmações que sejam do agrado dessas pessoas ignorando completamente a realidade, ou você é um pessimista com energia negativa.

Como Deus e orações são muito citados pelos Gratiluz, vamos começar com uma pequena reflexão: em qualquer religião que não seja uma seita criminosa, Deus é tido como uma entidade sábia, que sabe o que é melhor para nós, que se ocupa de cuidar de nossos caminhos e nos guiar para onde temos que ir. Confiar em Deus é um dos mantras mais batidos que esse povo adora recitar… desde que Deus acabe fazendo o que eles querem. Ficam “instruindo” Deus feito um flanelinha que ajuda a estacionar um carro.

Ficar monotematicamente falando em redes sociais que tem CERTEZA (sempre em caixa alta, pois quem mente para si mesmo sente necessidade de se reafirmar) da cura de alguém não é confiar em Deus. Se o seu Deus é muito bom, se ele te ama, se você confia nele, você entrega qualquer situação nas mãos Dele e confia que ela será solucionada da melhor forma possível. Você não tem todos os elementos para saber qual é a melhor forma possível, pois tem uma visão limitada. Deus, até onde eu sei, é onisciente, onipresente e onipotente, ele tem a visão geral e, a menos que ele seja um sádico, vai fazer o que for melhor e vai acontecer o que era para acontecer.

Demandar um resultado X e convocar outras pessoas para focarem sua energia nisso é não confiar na decisão que Deus vai tomar. E, além de tudo, dentro das regras, me parece inútil, já que ninguém pode contra a vontade de Deus, ou estou enganada? Ainda dentro dessa ótica, só retardaram o sofrimento de uma pessoa que deveria ter partido faz tempo, mas acabou ficando presa aqui pela força que uma cambada de egoístas filhos da puta fizeram para que ele não vá, pois se acharam detentores do poder de decidir entre a vida e a morte de alguém.

Saindo um pouco da esfera religiosa, um terreno que eu não domino, querer que uma pessoa fique viva não é amor, dependendo da situação, é até egoísmo. Amor é algo muito acima, muito mais sublime, muito mais generoso. Amor é querer que aconteça o que for melhor para a pessoa. E você não sabe o que é melhor para a pessoa. Você não é Deus. Você não é vidente. Quem deseja o bem deseja que aconteça o que for melhor para a pessoa, sem a arrogância de se portar como se soubesse o que é melhor para a pessoa. O que estas pessoas querem é evitar o seu sofrimento pessoal ao lidar com essa perda, mas camuflam esse egoísmo escroto de amor.

Por outro lado, tem a crueldade de dizer ou insinuar que se a pessoa é muito amada, muito querida, muito boa ou tem muita fé ela vai se salvar. Ou seja, todos os outros 399.999 mil que morreram não eram amados o suficiente ou não tinham fé suficiente. Quem é você para dizer quem “merece” viver ou morrer? Quem é você para dizer que é melhor viver do que morrer? Quem te garante que a pessoa não está em um lugar melhor depois, e que inclusive não era o desejo dela sair desse sofrimento e ir para lá?

Em essência, o que quero é compartilhar uma experiência pessoal com vocês, para que vocês obtenham essa informação sem precisar passar pelo que eu passei: não cabe a você determinar se é melhor para alguém viver ou morrer. Você não ajuda a ninguém (nem a você mesmo) se ficar igual uma líder de torcida com transtorno de ansiedade gritando que a pessoa tem que viver, que vai dar tudo certo, que tem que ter fé, que com CERTEZA ela vai viver. Isso é comportamento de gente desequilibrada.

Quem tem fé está sereno. Quem tem fé confia e entrega, sabe que vai acontecer o que tiver que acontecer e nenhuma “energia positiva ou negativa” sua ou de terceiros é capaz de matar alguém ou de manter a pessoa viva. Quem tem fé sabe que não é Deus, que não tem esse poder e não tenta brincar de ser, só para evitar um sofrimento.

E quando eu falo de “fé”, não me refiro necessariamente a uma religião. Você pode ter fé em você, no outro, na ciência ou até em alguma força que você não entende, não explica, mas acredita que está lá. Não limitem a fé, não a tranquem numa caixinha de regras. Se você tem fé, confia que vai acontecer o melhor e entrega, não fica puxando mutirão de reza de madrugada no Twitter. Não intervém nessa força maior (Deus, destino, universo ou o que queira chamar), pois entende que ela sabe melhor do que você, reles humaninho com visão limitada, o que tem que acontecer.

Não estou dizendo que tem que negar tratamento médico a alguém e deixar o acaso decidir. Estou dizendo que é preciso ter a sabedoria de traçar uma linha: até aqui, existia algo que eu podia fazer, daqui pra frente está fora do meu controle. Mas ninguém gosta de pensar que algo está fora do controle, né? Por mais assustador que seja, é melhor reconhecer, admitir e aceitar do que viver nessa ilusão de controle histérica, que é muito, mas muito nociva.

Também não estou dizendo que é fácil nem que é indolor. A morte de uma pessoa amada é talvez a dor mais profunda e sofrida que experimentamos nessa vida. E é natural querer que ela não morra, tentar de tudo para que ela não morra. Somos humanos, somos tomados pelo desespero, ficamos irracionais.

O que sim estou dizendo é que se você tiver consciência de tudo isso, vai existir um momento, uma janela, um intervalo nesse seu sofrimento totalmente compreensível onde você vai poder respirar fundo e dizer: “o que eu estou fazendo? Será mesmo que o melhor para essa pessoa é continuar aqui? Evitar meu sofrimento não é o foco, o foco é que aconteça o melhor possível para essa pessoa”. Nesse momento, que é extremamente assustador, você deixa a pessoa ir dentro de você. E, não raro, é o momento em que a pessoa acaba falecendo, como se alguém tivesse cortado os grilhões que a acorrentavam.

“Ah mas o mundo fica melhor com o Fulano nele”. Você não tem a visão completa. Você não sabe se existem outros mundos onde o Fulano é mais necessário. Você não sabe se aconteceriam coisas horríveis com o Fulano se ele ficasse aqui. Você não sabe nada. Pare de querer controlar e dizer o que é melhor para o Fulano ou para o mundo. Recolha-se à sua insignificância, no bom sentido (todos somos insignificantes).

Quem controla com uma visão apenas parcial escolhe errado. Recolha-se à sua insignificância e solte o controle. Faça a sua parte nos cuidados com a pessoa, óbvio, mas sem essa obsessão pelo resultado: você controla a roupa que você veste, você controla o que você come, mas a morte você não controla. Tentar controlar o incontrolável é esperneio de criança na versão adulta.

Fora a vergonha, né gente? Passar meses propagando aos quatro cantos que tem CERTEZA (sempre em caixa alta) de que a pessoa vai se curar e a pessoa morrer mostra o grau de desconexão com a realidade. O grau de arrogância de achar que se repetir isso ou se mandar energia tal, vai mudar o resultado final desse processo. Meus amores, nós não temos o poder de adiar ou reverter a morte. Quando ela vem, pode enviar a good vibe que for, que ela passa e leva. Tenhamos mais compostura e humildade.

E, como se tudo isso fosse pouco, ainda tem o enorme desfavor de polarizar a morte, algo que a civilização ocidental faz desde sempre e que contamina a todos nós (inclusive a mim). Viver é bom, morrer é ruim. Quem disse? Por acaso você já morreu e voltou para saber? E se viver for o grande inferno? E se a morte não existir? E se… E se… Falar do que não sabemos é pedir para passar vergonha, ainda mais se falamos com CERTEZA.

Não sabemos o que é a morte. Muitos de nós tem opiniões fortes sobre o que é, mas a verdade é que quem tem certeza deveria repensar, uma vez que só pode atestar quem esteve lá. O que pega é a dor, o sofrimento, a saudade de quem não está mais aqui. Sobre isso sim podemos falar. O apego. O apego nos faz passar por cada papel ridículo… e eu me incluo, pois como todos aqueles criados nessa cultura, a morte para mim é sinônimo de perda, sofrimento e dor.

A morte talvez seja a única certeza que temos nessa vida. Todo mundo vai morrer. Ainda assim, escolhemos vinculá-la com perda, sofrimento e dor. Somos bastante masoquistas, não? A gente nasce fadado a ter uns pit stops de extrema dor durante a vida, pois perdemos pessoas queridas no trajeto. Eu sei que não dá para desfazer isso do dia para a noite, mas podíamos começar, né? Que tal começar a repensar o significado que damos à morte? Que tal dar um primeiro passo para começar a desconstruir isso?

Aí pega no nervo. Se você não orou pelo humorista, se você apontou o fato de que ele fatalmente iria morrer, se você não mandou suas energias gratiluz, você é um babaca. Se bobear, ainda leva a culpa pela morte dele, pois contribuiu com “negatividade” ou o que mais se queira chamar. É dar muito poder para outro ser humano, não? Não podemos nem matar nem salvar ninguém além de nós mesmos. Chega dessa ilusão de controle de que se fizer tal reza, se fizer tal macumba, se enviar tal energia, se fizer tal simpatia, se fizer lei da atração, vai mudar o resultado final daquele cenário. Não vai. Você só muda a você e à sua vida, não tente o resto, pois é perda de tempo e energia.

Dói perceber que, para o que está fora, somos impotentes. E, cá entre nós, que bom que somos, caso contrário faríamos tanta bobagem pensando nos nossos desejos egoísticos, que causaríamos mais sofrimento do que no cenário original no qual decidimos intervir. Quando falamos de situações que não controlamos, vai acontecer o que tiver que acontecer, então, é melhor que você feche com a ideia de que se aquilo aconteceu, foi pra melhor, mesmo que hoje você não entenda os motivos.

“Para Deus nada é impossível”. É mesmo? Então, no caso, Deus não o salvou por não querer, é isso? Olha a mensagem horrível que estão propagando. Isso faz com que as pessoas desanimem, se sintam desamparadas, percam sua fé. Parem de fazer essa associação de que “se a pessoa morreu então deu tudo errado”. Quem disse? Deu errado para você, que vai ter que lidar com o sofrimento que a ausência dela te gera, mas quem disse que você, pequeno alecrim dourado, pauta a realidade? Talvez para a pessoa e para o mundo fosse a hora e, no final das contas, fosse o melhor para todos.

Humorista, vá em paz. Ignore os mal-entendidos que nós humanos criamos, nós não sabemos nada. Não resista, tudo aquilo ao que a gente resiste, persiste. O sofrimento vem da não aceitação. Não brigue contra o que é. Não sofra o nosso sofrimento, ele é apenas um equívoco gerado pela falta de consciência, e, um dia, ele vai passar. Não se preocupe conosco, vamos ficar bem.

Fique em paz. Nós vamos tentar ser melhores e agradecer pelo que tivemos em vez de lamentar pelo que perdemos. Eu achava seus filmes uma bosta e seu humor baseado em careta e palavrão, mas a maioria dos brasileiros gostava, então, que bom que você existiu, que bom que todo mundo riu com você (menos eu) e que bom que você deixou muito material para que todos continuem rindo (menos eu).

E você, maluca do caralho cheia de CERTEZAS, vai se tratar, pois você intoxica muita gente com essa postura péssima. Aproveita e faz uma fono também, para aprender a pronunciar as palavras, fuinha gratiluz!

Para dizer que não consegue decidir se é um texto doce ou azedo, para dizer que você também não achava a menor graça no humorista ou ainda para dizer que vai tentar, aos poucos, ir ressignificando a morte: sally@desfavor.com


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