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Imparcialidade parcial.

Imparcialidade parcial.

| Somir | | 14 comentários em Imparcialidade parcial.

Tem um lado meu que adora ver quando o Judiciário cancela um processo por tecnicalidades. Não, sério. Parece algo horrível, especialmente quando libera o Lula para se candidatar novamente, mas em tese, se havia algum erro na mecânica da forma como ele foi condenado, a análise fria das regras deveria se sobrepor a qualquer sentimento quando falamos do Estado. Mas… só em tese mesmo.

Dependendo do desenrolar do tema, poderemos voltar a falar disso no final de semana, então, eu quero sair por uma tangente agora: não é necessariamente ruim que o Estado tenha várias regrinhas específicas que sejam mais poderosas que nosso senso pessoal de justiça. Na verdade, é uma das maiores proteções que os cidadãos podem ter.

Eu adoraria viver num Brasil que coloca a imparcialidade das regras acima de tudo. Onde as coisas não são feitas na base de reação popular a um tema ou para beneficiar pessoas poderosas. Não existe conjunto de leis perfeito, mas na média mundial, o que rege o país não é para gerar muitas reclamações. Os princípios básicos estão mais ou menos onde deveriam estar mesmo, e caso realmente fossem aplicados, não tem nada que realmente impeça um alto índice de desenvolvimento humano.

Mas essa não é a cultura desse povo. Por aqui, lei é algo que serve para punir seus adversários. Mera ferramenta para conquistar sucesso pessoal e dos amigos e controlar os avanços dos inimigos. Não, não estamos sozinhos: ao redor do mundo temos inúmeros exemplos de outros povos corrompidos pela base. Tem jeitinho brasileiro, tem jeitinho russo, tem jeitinho chinês… o conceito do que é justo é muito flexível em locais onde falta estrutura para combater desigualdade social.

O erro mais comum de quem vive num lugar onde impera uma alta percepção de corrupção é achar que o problema é o Estado jogando contra você e não a favor. Aquela velha história da pessoa que diz, cheia de orgulho, que se estivesse no poder roubaria também. A pessoa acaba achando que o sistema todo só existe para atribuir vantagens a um certo grupo. Ou você está nesse grupo, ou perdeu.

E talvez a percepção mais difícil de quem nasceu e se criou dentro de um sistema desses seja o meio termo onde a imparcialidade se encontra: a ideia de que ninguém é bom juiz de cabeça quente, que é impossível resolver problemas complexos da convivência humana improvisando soluções de momento. O sistema ideal não é aquele que você acha justo, é aquele que funciona de forma previsível.

O que eu ou você achamos justo pode variar. É inocência achar que milhões de pessoas podem ser agradadas com apenas uma regra. Ou mesmo que suas opiniões não mudem de acordo com as condições do ambiente. Você pode achar justo punir alguém sem provas definitivas até o momento que a ameaça de punição recai sobre você. São obviedades, mas obviedades que só podem ser percebidas com um grande distanciamento, especialmente no aspecto emocional.

Sociedades evoluem (ou involuem) com o passar do tempo. O que é considerado normal numa era é criminoso em outra, o que era criminoso passa a ser moda… um sistema que tenta correr atrás dessas mudanças para espelhar o sentimento de um povo a cada momento está fadado a cometer inúmeros erros. Se seus legisladores reagem ao sentimento popular, começam a girar em falso tentando agradar quem não pode ser agradado. Afinal, não existe progresso suficiente para progressistas, não existe conservadorismo suficiente para conservadores. Sempre querem mais e mais, até porque normalmente são guiados por sentimentos e não por racionalidade.

É aí que entra a estabilidade das regrinhas e da burocracia: mecanismos para definir como as coisas são feitas pelo Estado. Não importa o sentimento do povo nem mesmo quem está no poder, regras são regras. Não pode fazer nada ilegal para conseguir seus objetivos. Mesmo que o ilegal pareça certo para você naquela ocasião.

Um sistema realmente eficiente funciona do mesmo jeito se você achar o caso em questão justo ou injusto. O sistema funciona porque o sistema funciona. Não se dobra a qualquer vontade passageira. O Estado vai viver milhares de anos, não precisa se preocupar com problemas de curta duração. Pode irritar milhões por algum tempo se isso significar um ganho de longuíssimo prazo.

E às vezes, soltar um bandido que sabemos que é bandido pode cair nessa descrição. Incômodo? Com certeza. Mas quando você aumenta o tempo de análise da situação, começa a perceber que não é tão ruim assim: se o bandido foi solto porque o Estado deixou de cumprir suas regras na hora de aplicar a punição, o precedente é mais perigoso que qualquer bandido pontual.

E aí, você está pensando que eu estou defendendo o que aconteceu com o Lula, certo? Que a satisfação de vê-lo pagar pela corrupção não é maior que uma falha no mecanismo de funcionamento do Estado. Sim… e não. Porque imparcialidade deve ser analisada de forma igualmente imparcial. Imparcialidade pode ser desculpa esfarrapada para perpetuar aquela ideia terrível de que a lei só funciona para quem você não gosta.

Se houvesse uma indicação que a partir de agora começaríamos a ser imparciais e o preço fosse um bandido escapar, eu estaria de acordo. Temos que começar em algum momento, e nesses casos, não tem momento melhor que agora. Custou o Lula, mas o Brasil começou a entender as benesses de um sistema imparcial? Ok, não é ideal, mas nessa vida quase nada é.

Agora, custou o Lula e assim que o interesse dos donos desse país precisarem ignorar a imparcialidade, voltamos a relativizar as coisas? Aí é o pior dos dois mundos. Deixa o bandido escapar e da próxima vez que outro pagar o suficiente, escapa também? Isso é imparcialidade parcial. Regras que só valem quando interessa para quem tem poder sobre elas.

E pode-se argumentar muito sobre até mesmo o que se considera imparcialidade nesse caso. Eu estou partindo do princípio, de forma argumentativa, que o caso do Lula foi tratado de forma imparcial e a questão técnica que anulou sua condenação realmente se aplica. Eu não sou especialista no tema, pouca gente realmente é. É por isso que estou um passo ao lado do mérito real do caso, falando sobre imparcialidade em termos gerais.

Porque isso tem resultados na mentalidade do povo brasileiro: pessoas radicalizadas por anos e anos de exageros dos dois lados achando que estamos numa guerra pela alma da nação. Quem é do lado beneficiado vai achar que isso é imparcialidade, quem está do lado ofendido vai querer virar o sistema para o lado oposto buscando essa imparcialidade.

E nenhuma delas vai ser. Porque essa não é a definição de um sistema imparcial; um sistema imparcial, como disse antes, é baseado em previsibilidade, não em senso de justiça pessoal. Quantas pessoas podem dispor do mesmo grau de escrutínio sobre um processo que paira sobre sua cabeça? Quantas pessoas são influentes ao ponto de gerar uma guerra interna dentro das mais altas esferas do poder nacional? Quantas pessoas tem a segurança de ser o primeiro dominó numa fileira de corruptos muito ricos desesperados para se proteger?

O caso recente não gera previsibilidade, gera uma exceção. A suposta imparcialidade demonstrada nesse caso não é reprodutível para o resto da população, então… não deveria configurar imparcialidade. É uma questão sutil, que parece discussão vazia até você perceber que toda vez que falamos do Estado e suas regras, não podemos pensar em curtas escalas de tempo.

Repito: para ter um sistema imparcial de verdade, podemos pagar um preço enorme como liberar um corrupto; mas pagar esse preço sem receber a contraparte… isso se chama estelionato. Está na hora do brasileiro aprender o que é imparcialidade, e eu duvido que estejamos mais próximos desse objetivo hoje do que estávamos semana passada.

Para perguntar porque eu não falo da pandemia (concordo 100% com a Sally, não vou repetir as mesmas coisas que ela diz), para dizer que a doença do Brasil é mental, ou mesmo para dizer que topa tudo para tirar o Bolsonaro (Lula 2.0): somir@desfavor.com


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