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Colapso burro.

Colapso burro.

| Desfavor | | 56 comentários em Colapso burro.

Com números alarmantes do esgotamento de leitos de UTI e do aumento de mortes por covid-19 no país, além de palavras caracterizando a situação como “gravíssima” e “absolutamente crítica”, um boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz publicado na noite desta terça-feira (16/3) classificou o momento atual da pandemia como o “maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil”. LINK


O que explica a situação brasileira? O brasileiro. Desfavor da Semana.

SALLY

Em março do ano passado escrevemos um texto afirmando que a vida de todo mundo ia mudar, que o mundo ia mudar, que nunca mais as coisas seriam as mesmas. Muitos nos chamaram de exagerados, malucos e alarmistas. No meio do ano passado escrevemos um texto avisando que vírus respiratórios voltam em uma segunda onda pior do que a primeira. Novamente, muitos nos chamaram de exagerados, malucos e alarmistas.

Hoje, o Brasil voltou à idade média: se você ou alguém da sua família adoecer, não tem médico, não tem centro cirúrgico e periga não ter nem mesmo os medicamentos necessários. Quem vai sobreviver a isso é quem tiver a sorte ou anos de dedicação para ter uma saúde muito boa. A tsunami está passando e varrendo tudo que encontra pelo caminho. E o brasileiro está em inércia contemplativa, negando ou procurando por um culpado.

Todo mundo tem culpa. Não é só o político genocida que jogou contra o tempo todo, é o imbecil que disse que “todo mundo vai pegar então eu prefiro pegar logo”, é o retardado que saiu para reuniãozinha ou jantar “pela minha saúde mental”, é o débil mental que diz que “não dá para viver trancado”. Para não morrer quem eu amo? Fico trancada no escuro, se precisar. Décadas. Mimadinhos do caralho sem senso de sacrifício!

E nesse ponto, Somir e eu temos opiniões muito diferentes. Eu acho que o brasileiro age assim por falta de senso de sacrifício, por ser acomodado, por ser covarde. Já temos um ano de pandemia e tem caboclo gritando que seu negócio vai falir. Oi? Se em um ano você não conseguiu adaptar seu negócio ou mudar de ramo, desculpa, mas a culpa nem é mais da pandemia, é sua por não ter se mexido para se adaptar à nova realidade.

Somir acredita que é pura incompetência: a pessoa simplesmente não sabe como fazer e paralisa. Não consigo acreditar nisso, pois quando é para fazer coisa errada, o brasileiro mostra uma proatividade e criatividade sem igual. É o medo que paralisa. A baixa autoestima. A acomodação. O brasileiro vende a alma para não ter que encarar o desconhecido, um desafio grande ou algo que implique em colocar à prova sua força.

Foram décadas trabalhando com brasileiros. É sempre o mesmo esquema, sempre as mesmas desculpas, para não fazer o que lhes causa medo ou desconforto. Assim, decisões cruciais são adiadas, adiadas e adiadas. As mesmas desculpas sempre: “não é tão fácil” (faça o difícil, caralho!), “eu tenho uma família” (faça para cuidar da sua família!), “não pode ser assim, tem que planejar melhor” (se sua vida está em risco não dá para perder tempo).

Tem muita gente se escorando no “mas eu não sabia”. Não sabia por escolher negar, a informação estava lá o tempo todo, caso contrário, dois leigos como Somir e eu não seriamos capazes de antever tudo aqui no Desfavor. Ninguém é obrigado a saber tudo, mas, quando não se sabe, se pesquisa em fontes confiáveis para entender o que está acontecendo e o que pode acontecer. Não pesquisar é ser acomodado e deixar que o destino decida sobre a sua vida. Quem se planeja tem futuro, quem não se planeja tem destino.

Mas, na cabeça do brasileiro, ele está seguro e vai dar tudo certo, fé em Deus! Uma coisa que nós cansamos de falar: quem não parar por bem, vai parar por mal. Todo mundo tinha acesso a essa informação e continuaram com comércio, empresas e indústrias abertas. Dito e feito, está acontecendo. E não estou falando da birosca do Seu Joaquim que pereceu por suas duas atendentes adoecerem, estou falando de empresas como a Volkswagen, que anunciou a suspensão da produção em todo o Brasil em razão de agravamento da pandemia. Se nem a Volkswagen segura esse tranco, o que faz alguém pensar que seu pequeno comércio vai?

Aos que queriam sair do Brasil mas protelaram a saída do país alegando que “não é fácil”, meus mais sinceros parabéns. Hoje, brasileiro só pode entrar em oito países em todo o mundo: Afeganistão, Albânia, Costa Rica, Eslováquia, Macedônia do Norte, Nauru, República Centro Africana e Tonga.

Sim, é isso mesmo, brasileiro está sendo barrado até no Vanuatu. Eu sei que não é fácil mudar de país, mas, quando sua vida está ameaçada, primeiro você sai, depois você se vira para sobreviver e pagar as contas. Se esperar por condições seguras e confortáveis, não sai a tempo. Não é fácil chegar em um país do nada e ter que correr atrás da sobrevivência, mas me parece menos fácil viver no Brasil, sem direito a atendimento médico e com uma pandemia fora de controle.

Não importa o quanto a situação piore, o brasileiro não parece querer sair da inércia. Até dói falar em “zona de conforto”, pois essa situação é tudo, menos confortável, mas, para o brasileiro, o maior desconforto de todo, maior do que a própria morte, é ter que refazer os planos e se arriscar. Ele topa tudo para não ter que se mexer. Morre no conhecido mas não pisa no desconhecido. Taí o resultado. Ou besunta o corpo de óleo e vai viver em Tonga ou vive na Idade Média sem atendimento médico.

Os governantes estão seguindo a mesma linha covarde-acomodada do povo. Nada de novo, os governantes são o reflexo do povo. Poucos tivera culhão de decretar e fazer cumprir um lockdown de verdade (mais de 70% de pessoas sem sair de casa) e, mesmo os poucos que fizeram, fizeram tarde demais. Essa mania de só aprender a nadar quando a água bate na bunda, de só se mexer quando a vida te dá um tiro nas nádegas e não tem outro jeito, muito lamentável. O sistema de saúde do país está colapsado e a circulação de pessoas continua altíssima.

Lockdown começa a mostrar os primeiros resultados 30 dias depois de efetivamente implementado. Ou seja, se decretarem lockdown em todo o Brasil hoje, ainda terão 30 dias de terror, de horror, de rezar para sua mãe, para o seu pai, para os seus filhos não adoecerem, pois se acontecer, não terão o devido atendimento. Isso tinha que ser previsto antes do colapso e implementado antes do colapso.

E, cá entre nós, mesmo quem consegue hospital está bem fodido. A taxa de mortalidade dos pacientes intubados é de 80% no Brasil, muito maior do que no resto do mundo. Não importa para onde se olhe, é uma loucura viver no Brasil hoje. “Mas eu me cuido”. Sim, mas tem coisas que independem de você e fogem ao seu controle. Conversa direitinho com o seu apêndice, pois se a validade dele expirar, você vai ter que procurar uma cirurgia mediúnica com um garfo enferrujado.

O mais triste é que todos os envolvidos nessa equação de negação, acomodamento e covardia pensam que não poderiam ter feito nada para impedir, que não poderia ter feito nada diferente. Desde o dono da quitanda que fechou, até o Ministro da Saúde (que, francamente, eu nem sei quem é atualmente) até a pessoa que diz que queria ter saído do Brasil mas “não tinha como”. Tinha dinheiro para comprar uma passagem? Então tinha como. Eu saí sem saber se pagaria as contas no mês seguinte, pois preferia isso a colocar em risco a vida das pessoas que eu amo.

Sempre tem o que fazer. Sempre. Só que para isso tem que quebrar a inércia e parar de dar desculpas. Tem que fazer sacrifícios sofridos, tem que ter coragem de se jogar no desconhecido e arriscar. O mundo está mudando e passando por cima de quem não o acompanha como um trem. Fulaninho que quer manter seu mesmo trabalhinho de sempre apesar da pandeia, pois “não é fácil” recomeçar no mercado de trabalho vai perecer. Prestem atenção nisso: os acomodados serão atropelados, serão esmagados, serão sacrificados. Não sejam os acomodados.

Se você ainda não se mexeu para se adequar à nova realidade bizarra que tomou conta do país, mexa-se. Nada do que você conhecia ou tinha por rotina será igual. E não adianta encontrar alguém para culpar, a culpa é de quem em um ano não coçou o cu para trabalhar de casa, para mudar de área, para adaptar seu trabalho/negócio ou para sair do país se esse era seu desejo. Chega de desculpas, chega de “não é fácil”.

Sabe o que não é fácil? Ver uma pessoa amada morrer sofrendo. O resto, meus queridos, é moleza.

A inércia e acomodação (sejam elas por incompetência ou não) vão cobrar um preço muito caro a partir de agora. Saiam dela, vocês não vão querer pagar essa conta.

Para dizer que você está pronto para se besuntar de óleo e ir morar em Tonga, para dizer que você queria visitar a gloriosa república de Vanuatu ou ainda para dizer que não é fácil ler este texto: sally@desfavor.com

SOMIR

Anda difícil escolher um tema para esta coluna. Toda semana é o mesmo assunto. E não tem para onde correr. Dá para falar dos ataques à liberdade de expressão que estão acontecendo quando o país piora sem parar no pior problema que está enfrentando? Ou procurar uma polêmica bizarra que foi pouco analisada? Num mundo mais ideal, tentamos não nos repetir demais semana a semana. Mas agora não dá mais. A pandemia não dá sossego.

O país vai desmoronando diante de uma doença que causa muitos problemas ao redor do mundo sim, mas que parece especialmente focada em solo tupiniquim. Os Estados Unidos e a Europa sofrem bastante também, mas é um tipo de desgraça diferente. Nesses lugares se trava uma luta cansativa, mas o vírus não tem o prospecto de vitória. No Brasil, estamos basicamente apanhando há um ano. Nossa tática aparentemente é fazer o adversário quebrar a mão de tanto bater.

O coronavírus ainda não é uma doença capaz de acabar com uma população inteira, provavelmente não vai gerar uma mutação que consiga o feito, mas mesmo assim consegue fazer muito estrago quando lida com um país de colaboradores. Nenhum povo trata esse vírus tão bem quando o povo brasileiro. Demos uma espécie de passaporte diplomático para ele: vai para onde quiser, entra em qualquer lugar e ainda por cima não pode ser punido pelos crimes que comete.

E quando vemos a forma como os líderes políticos brasileiros lidam com o tema, a bagunça incrível que cerca presidente, ministério da saúde, governadores e prefeitos, cada um fazendo uma coisa diferente, inconsistentes nas suas ações… começamos a ver a raiz do problema brasileiro: incompetência.

Como vocês já leram no texto anterior, isso até gerou uma argumentação entre eu e a Sally: ela acredita que vai muito além de pura incompetência, e embora eu concorde que existam outros fatores contribuindo para isso, nenhum deles é tão básico quanto a total incapacidade de agir de forma lógica e racional diante do problema. Isso não quer dizer que todos os brasileiros sejam muito burros, mas quer dizer que o sistema que temos é muito vulnerável à burrice. Temos poucos mecanismos para evitar que péssimas decisões sejam tomadas e baixo incentivo para formar cidadãos capazes de quebrar o ciclo de estupidez e incapacidade que assola a nação.

Bolsonaro é culpado sim, mas é só mais um dos culpados: ele é resultado de uma sequência de péssimas decisões que o colocou diante do único candidato que poderia vencer nas eleições. E hoje em dia, é refém do culto suicida da “direita conspiratória de internet”, sua única base natural de apoio. Eu confesso que eu nem sei mais no que o presidente acredita de verdade, talvez nada. É bem provável que Bolsonaro esteja numa posição muito acima da sua verdadeira capacidade intelectual, apenas reagindo a estímulos externos.

E existem vantagens para o resto desse sistema corrupto em não ter ninguém no volante: o Legislativo que o diga, impedindo o impeachment em troca de uma cortina de fumaça que os deixa fazer o que bem entenderem em causa própria. Raramente o problema que causam é tão sério ao ponto de brilhar mais que as insanidades do Executivo.

Trocamos a cleptocracia petista por uma burrocracia bolsonarista, com o ministro da Saúde demitido, mas ainda no cargo dizendo que fez um excelente trabalho enquanto o país afunda diante de uma doença evitável. Uma parte da população totalmente abandonada à própria sorte, outra protestando por menos medidas de proteção! O brasileiro médio não sabe muito bem o que fazer a não ser tentar continuar fazendo o que fazia antes da pandemia.

O que normalmente é um sinal de incompetência: não ter capacidade de perceber as mudanças no ambiente e não se adaptar. O governo insiste que a solução é fingir que a doença não existe, e o povo faz o mesmo. Um ano depois do começo da pandemia, muitos empresários estão berrando contra o isolamento social, se dizendo traídos pelas medidas aplicadas por prefeitos e governadores! Oras, um ano é tempo suficiente para não poder alegar surpresa.

Continuo achando que não existe uma intenção negativa dessas pessoas, e sim uma incapacidade básica de entender o que acontece ao seu redor. Se fosse preguiça, teimosia ou acomodação, o tempo que passamos lidando com a pandemia já teria mexido com a forma de pensar das pessoas. A conta só fecha quando você considera incompetência como fator principal. Não é que as pessoas não querem fazer a coisa certa, elas simplesmente não entendem o que é a coisa certa.

O Brasil vê as UTIs lotando e gente morrendo no chão do hospital sem conseguir conectar os pontos. Acha que a economia precisa voltar a funcionar, mas não entende como o colapso do sistema de saúde tem qualquer relação com isso. Pode parecer óbvio para você, mas não presuma que é óbvio para a maioria das pessoas. Mesmo que elas sejam figuras públicas poderosas.

Parece que a maioria desse povo não entendeu até agora o que está acontecendo. O coronavírus não é muito letal individualmente, mas é desastroso quando pensamos em 200 milhões de pessoas. E está aí a prova: viramos párias mundiais, o governo não sabe o que fazer e a sua melhor chance atualmente é simplesmente não adoecer até o vírus “cansar” de matar brasileiro.

Esse é o preço da incompetência.

Para dizer que a culpa é nossa por falar disso, para dizer que o país funcionava bem antes da Covid, ou mesmo para dizer que antes de piorar, piora: somir@desfavor.com


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