Desmotivação.
| Somir | Somir Surtado | 20 comentários em Desmotivação.
Você anda sem vontade de fazer as coisas? Facilmente distraído? Sem ânimo para dar conta das suas responsabilidades? Nada tema, eu tenho o discurso perfeito para você: é normal, não precisa se desesperar buscando motivação ou energia. Permita-se a desmotivação.
Eu já fui mais chato do que sou hoje, e nesses tempos adorava perguntar para pessoas religiosas que acreditavam em paraíso se não seria chato viver feliz pela eternidade. Veja bem, deve ser maravilhoso ter paz e fartura garantidas para sempre, mas para sempre é um longo período de tempo.
Especialmente para quem se acostuma tão rápido com coisas boas como o ser humano. Recebeu um pequeno aumento de salário? Já começa a gastar por conta e se endividar no mês seguinte. O Céu pode ser o melhor lugar possível, mas é meio inevitável que ele se torne a norma na cabeça de uma pessoa. Viveu 60 anos passando perrengue? Depois de passar 61 no paraíso, ela já vai ter experimentado mais paraíso do que perrengue na sua existência.
E aí, o paradigma muda. O normal é essa suposta felicidade infinita. Mas, se você é feliz o tempo todo… como saber que é feliz? Comparado com o quê? Depois de mil anos num lugar desses, a consciência não tem mais parâmetros. E se serve de consolo, provavelmente no Inferno seria a mesma coisa: a punição deve perder o efeito depois de repetida por milênios.
Mas é claro, são só exercícios argumentativos. Não acredito em nenhum desses conceitos religiosos. Agora, a lógica de precisarmos de algum contraste para enxergarmos direito nossos sentimentos se mantêm. Você está feliz ou triste em comparação com algum outro estado mental. Animado e desanimado também.
Uma das coisas que eu mais abomino em discursos de autoajuda é esse truque barato de vender um paraíso de motivação e ânimo para as pessoas. Como se fôssemos viver num só estado a vida toda. Como se tivesse alguma graça viver desse jeito, sem contraste. É fisicamente impossível para o corpo humano manter um grau de atenção e prontidão elevados o tempo todo. Precisamos de descanso.
Precisamos de momentos de desânimo e desmotivação até mesmo para perceber o que nos importa. Se você vive sob a pressão de estar sempre dando 110% e empolgado com o que tem para fazer, não só está teimando contra a mecânica de funcionamento do seu cérebro, como está se colocando em posição de perder a motivação natural que consegue produzir.
A questão aqui é que existe um limite de quanta energia cada pessoa pode oferecer em dado momento. É mais do que costumamos acreditar, mas isso não significa que devemos viver com o “turbo ligado” o tempo todo. Sim, você provavelmente pode fazer praticamente tudo o que faz na vida de forma mais rápida com mais qualidade, mas não tudo ao mesmo tempo. Acaba o combustível, as peças começam a falhar. Nenhuma pessoa foi feita para viver no seu limite de capacidade.
É algo que se usa quando necessário, não o tempo todo. Assim como o corpo precisa de sono para não entrar em colapso, a mente precisa de momentos de baixa motivação e desânimo para não começar a falhar. É algo que eu já reconheci na minha vida: quanto mais eu fico me pressionando para estar empolgado com as coisas, maior a probabilidade de comportamentos ruins (irresponsabilidades em geral) e maior a chance de cometer erros.
Pudera, o cérebro é obrigado a trabalhar acima da capacidade que disponibiliza: o que o faz “superaquecer” e simplesmente parar de funcionar enquanto as coisas voltam ao normal. Nesse meio tempo, coisas ruins tendem a acontecer por necessidade de fuga ou por distração.
Importante: desmotivação e desânimo fazem parte dos sintomas de depressão, mas não são sinônimo disso. É a mesma coisa que se diz sobre tristeza não ser depressão: é um sentimento normal, que quando não passa de jeito nenhum pode ser motivo para procurar ajuda profissional. Se você não consegue sair da cama por alguns dias seguidos, não é desânimo normal e merece atenção. Mas se é algo que vem e vai e ainda te permite funcionar em sociedade, é só o sentimento normal.
O problema é que existe essa ideia generalizada que todo mundo está dando o máximo o tempo todo e só você está aí sem muita vontade de trabalhar mais, dar mais atenção a sua vida social, etc. Mentira, quase todo mundo está passando por fases de ânimo e desânimo, é uma forma de “regulação de temperatura” do cérebro.
Nenhuma sensação é eterna. E se fosse para resumir o ponto deste texto numa frase só, eu diria que desmotivação é um sentimento como qualquer outro. Não o deixe dominar sua vida, assim como não devemos deixar nenhum outro (mesmo os que parecem bons) nos dominar, mas não tem nada de errado em senti-lo de tempos em tempos. Você não pode evitar sentir tristeza (ou mesmo felicidade), você também não pode evitar sentir desânimo da mesma forma como é impossível controlar empolgação com algo que realmente quer fazer.
Claro, você pode fingir que não está com o sentimento, mas no fundo sabe disso. Não é para declarar para o seu chefe que o seu trabalho é uma merda que não te anima, mas é bom começar a reconhecer esses padrões. Será que você fica desanimado a maior parte do tempo no trabalho? Ou fica quando sai? Desmotivação pode te dar informações valiosas sobre as coisas que prestam ou não na sua vida.
Você precisa passar por momentos de desânimo, senão não vai conseguir reconhecer as coisas boas que encontra e a energia que elas te dão em comparação. Essa história de dar o máximo de si o tempo todo é papo furado de guru de esquema de pirâmide. Mesmo que sua mente permitisse essa insanidade, tudo ficaria “cinza”, você não saberia mais reconhecer o que vale a pena investir seu limitado tempo nesse mundo.
Está sem vontade de fazer as coisas? Surfa nessa onda um pouco. Faz umas coisas meio nas coxas, diz que está passando mal hoje, pede para alguém te cobrir. Se não for absolutamente necessário gastar a energia que seu cérebro está dizendo que está baixa, não gaste. Dá um tempo na cobrança interna até ter força para lidar com ela de novo. Não é sempre que a gente pode se dar esse luxo, então, quando puder, aproveite sem dó.
Não é um absurdo. Essa história de viver atrás de motivação é uma narrativa criada para extrair o máximo dos trabalhadores, não é a realidade das nossas mentes. Sucesso é mais sorte que esforço (sem esforço a sorte não ajuda tanto, evidente…), tem gente trabalhando 18 horas por dia e passando fome, tem gente que basicamente só faz o que quer e fica rica.
Motivação e empolgação não resolvem nada sozinhas, especialmente se elas são criadas de forma artificial por culpa de não estar fazendo o suficiente. Além de desaparecem rápido, ainda te colocam sob o risco de fazer muita besteira nesse meio tempo. E isso vai gerando um ciclo vicioso: se sente mal por não estar empolgado, força a barra, faz coisa errada e perde a empolgação, se sente mal… e por aí vai.
Muitos dos problemas da vida moderna se resolvem aceitando um desânimo pontual e deixando o grau de pressão baixar o suficiente para renovar as energias. Cérebros superaquecem, desmotivação é a fumaça saindo do capô. Ou deixa esfriar, ou se prepara para encarar os defeitos. Tomara que você não precise forçar a barra, é muito arriscado.
E, só para não perder a chance: enfiem sua motivação falsa no cu, coaches e gurus de merda. Autoajuda só ajuda quem vende autoajuda.
Para dizer que eu já escrevi este texto antes (sim, mas eu estava motivado para escrever isso hoje), para dizer que qualquer desculpa para relaxar você está topando, ou mesmo para dizer que no burnout, no gain: somir@desfavor.com
Este é um texto pra fazer pensar mesmo. E muito.
Falar sobre desmotivação não dá dinheiro. Deve ser por isso que quase ninguém entra no assunto.
Mas seguir funcional com esse sentimento de desmotivação o tempo todo tbm não é sinal de problema?
Por isso um parágrafo só para falar de depressão. Quando é o tempo todo, vale a pena investigar mais a fundo com ajuda profissional. O texto fala sobre os ciclos naturais de ânimo e desânimo da mente e não se deixar tomar pela culpa quando o a cabeça cansa e quer um pouco de sossego.
Esse texto me motivou. Psicologia reversa?
Se eu disser que sim, deixa de ser? Preguiça de pensar nas implicações.
Obrigada pela reflexão, Somir!
Veio em um momento no qual minha mente tem pedido para descansar, mas não tenho me permitido.
Quase todo mundo sabe instintivamente que não é para fazer muito esforço quando está muito cansado. Faz bem pensar no cérebro como um músculo.
Posso rir kkkkkkkkk
Não.
Esse texto é um alento nesse momento de positividade tóxica e felicidade falsa. Estranho como me sinto melhor depois de ler esse texto desmotivacional, muito obrigada!
Faço minhas as suas palavras.
Esse texto “Desmotivação” me motivou.
“coaches e gurus de merda. Auto-ajuda só ajuda quem vende auto-ajuda”
Show
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Eu sei que é muito tentador esses papos tipo “Fulano ganha milhões no Youtube enfiando Nutella no cu”, “Fulana deu chá de buceta num gringo e hoje mora na Europa/América do norte”, “O mundo pertence aos descolados e as gostosas do Instagram”, mas no fim das contas a humanidade ainda precisa de gente que sabe agregar conteúdo e resolver problemas.
Justo.
Mas eu argumento que gente que sabe agregar conteúdo e resolver problemas não pode esquecer que é um emaranhado de células e hormônios que não se importam muito com nossos objetivos racionais. Às vezes a mente diz “hoje não”, e não é crime obedecer. Até para poder agregar conteúdo e resolver problemas no dia seguinte…
“tem gente que basicamente só faz o que quer e fica rica.” – tô precisando aprender a fazer o que quero e ficar rico, viu? Rs
Bacana o texto, importante mesmo a gente dar um tempo pra nós mesmos, bem como saber a hora de parar. Eu esgotei todas as minhas forças com o doutorado, até que surtei e desisti, não aguentei, não tinha mais ânimo pra nada. Se talvez eu tivesse dado uma pausa pra descansar e recuperar as energias depois do mestrado, talvez tivesse sido diferente.
Pois é, as pessoas parecem achar que existe uma “fada da desmotivação” que te enfeitiça aleatoriamente. É a mente avisando alguma coisa pra gente. Tem motivo.
Eu nem tô nesse estado, mas me proporcionou excelente reflexão. Obrigada, Somir.
Sempre disposto a desmotivar. Disponha!