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A culpa está lá fora.

A culpa está lá fora.

| Desfavor | | 32 comentários em A culpa está lá fora.

Num ofício de última hora, enviado ontem, dois parlamentares brasileiros do Podemos fizeram apelo aos senadores argentinos para rejeitarem a aprovação do aborto no país. Acreditam que a decisão argentina abre um precedente para o Brasil adotar medida semelhante. O documento foi assinado pelo senador Eduardo Girão (CE) e pelo deputado Roberto Lucena (SP), ligados a grupo religioso conservador denominado Pró-Vida. LINK


Daqui a pouco a Argentina vai ter que denunciar o Brasil por ser stalker… Desfavor da Semana.

SALLY

Qual é o problema do brasileiro com a Argentina? Essa estranha obsessão que nasceu no começo de 2020 e fica cada vez maior, de apontar cada suposto erro, tentar se mostrar superior e ficar incitando o linchamento? Vocês têm noção que o Brasil está se tornando o Felipe Neto do Mundo?

Esta semana chegamos ao cúmulo do brasileiro controlar as leis que a Argentina decide impor a seus cidadãos. Teve parlamentares (sim, no plural) brasileiros tentando impedir a aprovação da lei do aborto na Argentina, teve manifestação no Brasil contra a aprovação da lei e teve um sem fim de gente bosteando em redes sociais sobre essa aprovação e outras coisas sobre as quais não tem a menor ideia.

Controlar a vida alheia é o passatempo dos medíocres. Jogar merda no colega ao lado para parecer melhor é o modus operandi dos fracassados. Comemorar quando o vizinho se fode é recurso dos invejosos. O brasileiro está protagonizando um baita papelão, já faz algum tempo, tentando cobrir a Argentina de merda e até tentando intervir no que o país faz com suas leis. Fizeram com a quarentena, com o fechamento de fronteiras e agora com a legalização do aborto. Imagina se fosse ao contrário? Imagina o discurso indignado sobre a soberania brasileira ser ameaçada?

Estabeleceu-se uma narrativa para tentar fazer com que a Argentina pareça ser o que não é, seja como referência de algo bom, seja como referência de algo ruim. Argentina virou o exemplo do que ser ou do que não ser dos grupos polarizados do Brasil. Haja saco, deixem o país em paz! Não é um paraíso na Terra e não é uma Venezuela, é um país, como qualquer outro, com problemas e com coisas boas.

Em pouco mais de um mês (e em meio a uma pandemia, o que dificulta tudo nessa vida) a Argentina aprovou o auto cultivo de maconha para fins medicinais, taxou grandes fortunas, começou a vacinar a população, fechou acordo para fabricar outras vacinas, aprovou a legalização do aborto e proibiu a entrada de brasileiros no país.

Um país que está em crise econômica desde a década de 40 prova ao mundo que economia não é tudo. O brasileiro anda com essa mania feia de fazer da economia tudo que interessa e isso é vergonhoso, não apenas pela economia brasileira ser uma boa merda, mas também por colocar como prioridade absoluta algo que não deveria ter tanto valor. Para quem tem um salário-mínimo (medido em dólar) inferior ao da Argentina e um custo de vida bem maior, estão agindo como o retardado da vila.

A economia, como ente autônomo, não existe. Não basta um bom Ministro da Economia ou muitos recursos naturais para que a economia de um país deslanche. São as pessoas, o povo, que faz o país e, por consequência, sua economia. E o povo brasileiro é o maior retrato de atraso civilizatório que eu já tive oportunidade de conhecer. Não se enganem: por melhor que pareça a economia, com um povo que pensa tão pequeno e mesquinho, o país não vai para frente nunca.

E, como todo podo pequeno e mesquinho, o brasileiro parece viver de controlar e criticar a vida alheia. Este ano o alvo escolhido foi a Argentina. Durante todo o ano se falou que a Argentina seria a “Nova Venezuela”, como forma de antagonizar com o governo de “esquerda” que comanda o país (muitas aspas nesse “esquerda”, são um bando de filhos da puta com zero ideologia, como qualquer outro que consiga chegar ao poder). No entanto, postamos, durante todo o ano, várias notícias sobre falta de liberdade de expressão, desabastecimento e medidas arbitrárias, todas vindas do Brasil.

Eu li todo tipo de mentira sobre a Argentina: desde desabastecimento, até números irreais de covid, de inflação, de desemprego e de salário-mínimo. Toda categoria de mentira que possa ser inventada para fazer a Argentina parecer um país péssimo, atrasado, pior do que o Brasil, foi disseminada. E muita gente acreditou, afinal, estamos falando de um povo que acredita que se você tomar vacina ela pode mudar seu DNA. Não é de se espantar que, ao contrário da Argentina, o Brasil nunca tenha conquistado um Nobel.

Eu acho muito deprimente dar tanto foco à vida do colega ao lado. Quando se idolatra, parece querer criar um país imaginário para provar como tudo pode ser perfeito se comungar com sua ideologia (não pode). Quando se detona, parece uma invejinha barata, um ego frágil que precisa jogar o outro na lama para se sentir bem. É deplorável.

Mas fica ainda pior quando você olha para como está a vida de quem está falando do vizinho. Enquanto o Brasil não tem seringa para aplicar vacina, enquanto o Brasil ainda discute Cloroquina, Azitromicina, Ivermectina e outros remédios que já foram cientificamente desaconselhados para tratar covid-19, a Argentina está olhando para seu próprio umbigo e fazendo o que pode.

Sim, o que pode. É um país em crise, como eu já disse, portanto, com muitas restrições. Mas, ainda assim, é um país mais avançado e digno que o Brasil. Se eu tiver que escolher entre viver em um país com uma economia como a do Brasil (que nem de longe dá para dizer que está bem) mas com um povo mal educado, sem cultura, sem respeito ou viver em um país em crise econômica, mas com um povo culto, com uma mínima noção de respeito e com um mínimo de educação, eu não tenho dúvidas do que prefiro.

Qualidade de vida não é um entorno rico, é não ter que escutar vizinho pagodeando, gente urinando no meio da rua, pessoas malandras furando fila, fazendo esquema, querendo se dar bem. A Argentina, apesar dos problemas, é um oásis civilizatório. Não importa como esteja a economia, e isso, meus amigos, é qualidade de vida. Se você for bom no que você faz, você ganha dinheiro em qualquer lugar do mundo, mas não adianta dinheiro quando as pessoas à sua volta são um inferno.

O brasileiro médio é incompetente, burro, acomodado, invejoso, mentiroso, malandro, desonesto, com capacidade intelectual abaixo da média, corrupto e egoísta. Pode acontecer o desastre econômico que for na Argentina, o povo sempre estará em outro nível. O mais curioso é que faz muito tempo que eu não vejo um Argentino falando mal de brasileiro, seja no cotidiano, seja na imprensa. Ao contrário, todos são muito solidários ao que o Brasil está passando, torcem pelo Brasil e ficam felizes quando algo dá certo para o Brasil. Dá vergonha comparar os dois comportamentos.

Parece que o Brasil polarizado se divide em dois grupos: os retardados que idolatram o governo argentino e ficam repetindo “como é bom ter um Presidente” (spoiler: o atual governo é um lixo sem precedentes, mas que às vezes, como qualquer um, acerta e na pandemia acertou bastante) e os retardados que acham que o atual governo é um demônio que vai jogar a Argentina no esgoto e transformá-la no pior país da América Latina. Como sempre, os dois extremos estão errados.

Sabe por qual motivo, não importa a crise, o povo argentino sempre será mais educado, culto e respeitoso que o brasileiro? Uma boa educação de base. Isso faz toda a diferença. Um povo que vem de uma base de excelente educação pode estar na merda que for, que ainda há chances de se reerguer. Já o brasileiro, com seu analfabetismo funcional, sua desonestidade, seu jeitinho, sua protelação? Não há esperanças. Uma hora os recursos naturais acabam, aí só vai restar turismo sexual para nutrir a economia do país.

Que vergonha alheia, ver gente falando com tanta certeza de um país no qual nunca sequer pisou o pé, que desconhece a essência, o funcionamento, a atual realidade! Em que coisa horrorosa o brasileiro está se transformando! Seja para idolatrar o país (é um país cheio de problemas) seja para jogá-lo na lama (está anos-luz na frente do Brasil na maior parte dos aspectos), quem sai proferindo certezas sobre a Argentina sem conhecê-la está se comportando como um idiota.

Resta deixar que essas pessoas continuem focadas em falar mal da Argentina enquanto problemas graves e urgentes assolam o país. Mas, fica aqui minha pergunta: vão tentar interferir nas leis da Dinamarca, da Noruega, do Reino Unido ou dos muitos outros países que permitem aborto?

O que vai acontecer é o que sempre aconteceu: criticam, mas se refugiam na Argentina. Quando filho de rico retardado não consegue passar nem pagando em faculdade de medicina no Brasil (ou quando quer um bom ensino), vai cursar na Argentina, onde não tem vestibular, onde todo mundo que quer entra em uma faculdade boa, pública e gratuita. Quando a amante ou a filha engravidar, o conservador de direita vai mandá-la para a Argentina, para fazer um aborto, enquanto em redes sociais defende “a vida” ao mesmo tempo que apoia um Presidente que diz que não é coveiro quando questionado sobre os mortos da pandemia.

Tá cada vez mais difícil ter estômago para o brasileiro médio: cuidem do seu país, que está uma bosta, em vez de se preocupar com o que o país vizinho decide como melhor para ele!

Para dizer que prefere acreditar que a Argentina está estilo Mad Max pois torna o Brasil superior, para dizer que acha que a Argentina é um paraíso (não é) ou ainda para ter a cara de pau de dizer que eu não entendo nada de Argentina ou de Brasil: sally@desfavor.com

SOMIR

Vai ver a tal da cloroquina resolveu mesmo! Só um país que venceu a pandemia poderia se dar ao luxo de ficar discutindo os problemas do vizinho. Mas… eu não apostaria nisso. Com os números de infectados e mortos voltando ao patamar do auge no meio do ano passado, e em alguns lugares até batendo recordes prévios, não parece ser o caso.

O Brasil tem muito com o que se preocupar dentro de suas fronteiras. Com uma resposta bizarra das autoridades federais e na melhor das hipóteses vacilante das estaduais e municipais no combate à pandemia, estamos seguindo em alta velocidade rumo a uma crise ainda maior. Não ajuda nada que as coisas já estivessem complicadas antes do coronavírus. As férias que o Estado brasileiro tirou ainda devem durar mais dois anos, com sério risco de ir para seis caso a oposição resolva entregar a próxima eleição de bandeja de novo.

O bom de ter um presidente tão representativo do brasileiro médio é que você vai se livrando de esperanças inúteis. O brasileiro é isso mesmo. É o povo da balada no auge da pandemia. Muitos por babaquice, mas a maioria por não pensar muito nas coisas mesmo. Uma vitória pírrica contra uma doença evitável está de bom tamanho pra essa gente. Faz mais filho depois. Francamente, quando você vive num país que não liga muito pra sua vida, fica mais fácil não ligar também. Morreu, morreu.

O que está me levando de volta ao ponto do meu texto do Desfavor do Ano, mas é daqui que eu volto para o tema da vez: a ridícula reação do brasileiro médio e vários dos seus representantes legais sobre uma decisão do povo argentino que impacta… o povo argentino. Esse descaso com o bem coletivo que estamos vendo com tanta clareza atualmente tem vários efeitos colaterais, e um dos principais é a cegueira seletiva sobre os próprios problemas.

O mesmo povo que coloca em risco a vida de terceiros por não querer ter restrições ao próprio lazer é o que fica escandalizado com o descaso dos argentinos pela vida humana, quase sempre com o argumento que aborto é apologia ao hedonismo. E sim, é quase sempre o mesmo público: há uma correlação evidente entre conservadorismo religioso e negacionismo científico. Mesmo que não pareça no começo, pode ter certeza que Jesus (ou outro ser do tipo) está sempre numa esquina de qualquer avenida conspiratória anticientífica. Felizmente não temos que entrar no mérito do aborto: a Argentina já aprovou, e pelo menos nisso, já saiu da Idade Média. Se não gostou, não adianta nem reclamar com o Papa.

No Brasil, a discussão é atualmente impossível. O povo e especialmente os políticos estão num estágio tão atrasado de desenvolvimento humano que faz pouco tempo atrás estávamos discutindo se um ser SEM CÉREBRO podia ser diferenciado de qualquer outro brasileiro. Oras, na prática, foi isso: foi polêmico, mas ficou definido que o feto anencéfalo de fato não cumpria todos os requisitos para ser considerado um cidadão com os mesmos direitos de todos os outros. Ainda é obrigatório ter um cérebro no Brasil, mas Meu Deus, como os religiosos lutaram contra.

Mais dos efeitos colaterais do descaso com o bem comum é a tendência de querer exportar o próprio fracasso. Não basta viver num país brutalizado e ignorante, tem que tentar arrastar pro buraco quem estiver por perto. O que é bizarro, os argentinos são especialistas em encontrar buracos para cair. Mas tem algo de mais cruel aí: por mais merdas que nossos hermanos façam, por pior que sejam seus governantes, eles ainda acharam um jeito de fazer alguma coisa que prestasse.

Talvez essa seja a verdadeira putez do brasileiro. Ele sabe que está rodeado por sabotadores, e age como sabotador no seu dia a dia para poder aguentar o tranco, e quando vê alguém de fora tentar algo um pouco melhor do que isso, deve ser dolorido. E aí, o clássico de sair atacando os outros com o que dói neles mesmos. Percebam como as críticas são basicamente problemas brasileiros. Fracasso econômico, instabilidade política, deterioramento de valores, resposta ruim à pandemia…

Bem indicativo que a obsessão de tantos brasileiros de criticar a Argentina seja baseada em apontar para um espelho. E a motivação pode ser bem mais profunda do que mera radicalização política pelo corrupto de lá ser de esquerda ao contrário do corrupto de cá que é de direita, ela tem cara de ser resultado de muito brasileiro começar a sentir a fadiga de viver num país que está girando em falso há muito tempo. Até as crises recentes que vivemos são resultado de inépcia e não de ir para um caminho errado. A vergonha do Brasil no combate à pandemia é sobre não agir.

Chega uma hora que deve cansar ver um país que não sai do lugar. E aí, quando você vê um que está sempre desabando e se reerguendo que nem a Argentina, deve ser mais interessante mesmo. Agora, a cada um desses ciclos, nossos vizinhos fazem alguma coisa diferente. O povo fica um pouco mais inteligente, moderniza algumas coisas… provavelmente vai entrar em crise mais algumas vezes ainda, mas pelo menos não é o gigante deitado eternamente em berço esplêndido.

Aqui não tem evolução na agenda de costumes porque a religião não deixa mudar nada, não tem reforma verdadeira na economia porque explorar o Estado sem dar nada em troca é a única forma de renda de milhões, não tem planos de longo prazo porque a baixa inteligência média prioriza o imediatismo. Não acontece quase nada. E digo mais: não acontece quase nada desde 1500. Tudo é feito devagar e de má vontade, com décadas ou mesmo séculos de atraso em relação ao resto do mundo.

Quer falar da Argentina? Fala porque acha interessante, não porque está se cagando de medo de olhar para dentro.

Para dizer que eu não deveria estar falando da Argentina pelo meu argumento (que você claramente não entendeu), para dizer que fofoqueiros são sempre as pessoas com a vida mais chata, ou mesmo para dizer que nem aeroporto é saída atualmente: somir@desfavor.com


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