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The Great Reset

The Great Reset

| Somir | | 16 comentários em The Great Reset

É possível que muitos aqui já tenham ouvido ou lido o nome “The Great Reset”, especialmente no contexto de alguma grande conspiração acontecendo debaixo dos nossos narizes. Estariam as elites mundiais preparando alguma coisa nefasta contra todos nós?

Um pouco mais de contexto para quem nem sabe do que diabos estou falando: “The Great Reset”, ou “O Grande Reinício” numa tradução mais literal, é uma proposta do Fórum Econômico Mundial (aquele das reuniões em Davos na Suíça) para mudar os rumos da economia mundial no mundo pós-pandemia. O grande porta-voz da proposta é o Príncipe Charles do Reino Unido (também conhecido como ex da Princesa Diana).

A mídia não deu muita bola para o lançamento dessa proposta, costumam só se interessar pelo Fórum Econômico Mundial quando fazem suas famosas reuniões com líderes mundiais; mas os conspiradores de plantão foram à loucura. Pudera: o grupo sediado em Davos é composto por muitas das pessoas mais ricas do mundo, e não à toa tem o poder de atrair os maiores líderes mundiais todos os anos numa espécie de convenção da economia global.

Em tese, o FEM é uma organização sem fins lucrativos que legalmente tem tanto poder quanto a ONG daquela sua prima maluca que acumula gatos sob o pretexto de salvá-los das ruas. Mas na prática, ter entre seus membros muitos dos maiores bilionários e políticos de destaque no mundo confere pelo menos o poder da influência. É um clubinho exclusivo com mensalidade caríssima, mas que com certeza se paga com os contatos feitos lá dentro.

A missão deles é literalmente influenciar os rumos do desenvolvimento global através da economia, então o argumento conspiratório já começa a ficar mais fraco: um plano para moldar a forma como países e empresas lidam com a recuperação pós Covid não chega a ser uma surpresa vinda da organização, não? É como dizer que a Associação Brasileira dos Cafeicultores está agindo de forma estranha ao lançar uma campanha de incentivo ao consumo de café. Não há um conflito de interesses aqui. O Fórum Econômico Mundial faz essas coisas mesmo.

Mas o que é esse grande reinício? A proposta pode ser resumida como uma mudança de mentalidade de empresas e governos para valorizar mais atitudes sustentáveis na hora de estimular a economia num mundo que sofreu tanto com a pandemia. Ou, em termos ainda mais simplistas: já que as coisas ficaram tão paradas, vamos aproveitar para colocar umas ecochatices na hora de voltar. É mais fácil mexer num carro parado do que em um em movimento.

É claro que o projeto vai muito mais longe nas suas explicações, afinal, dinheiro para pagar gente para fazer textão não falta em Davos. No escopo deste texto, tentando entender de onde vem o pânico conspiratório, a explicação simples basta. Todos podemos ter muitos motivos para desconfiar de bilionários e governantes, mas se a base do medo é o nome “The Great Reset”, então na prática não é nada muito mais assustador do que a Greta Thunberg fazendo caretas numa reunião da ONU.

Talvez seja o nome. Pode ser que o FME tenha excelentes profissionais de economia ao seu dispor, mas podem ter economizado na parte de propaganda e comunicação. Quem eu estou enganando? Eu conheço cliente rico: quanto mais dinheiro a pessoa tem, maior sua propensão de empurrar ideias goela abaixo do pessoal de publicidade. Que eu também conheço como um bando de mercenários. Aposto que foi ideia de quem assinou o cheque. Em 2020, o clima não está bom para nomes que parecem que vão virar o mundo todo de ponta-cabeça.

E a forma de apresentar é outro erro de iniciante: mostrar um mundo de pessoas simples e felizes como objetivo final liga o instinto de sobrevivência da maioria dos conservadores. Sim, é “simpático” ficar mostrando lavradores africanos sorrindo em campos verdejantes, mas essa coisa proletariado feliz já foi muito usada na propaganda de regimes comunistas. Eu teria focado numa coisa mais urbana e tecnológica para não acirrar os ânimos da turma das conspirações comunistas para dominar o mundo.

Já digo faz tempo que um dos problemas mais sérios dos tempos modernos é o excesso de informação que chega ao cidadão médio. É um tanto demais para mentes que não estão treinadas para lidar com tanta coisa ao mesmo tempo, por isso a tendência é resumir tudo e tentar encontrar uma grande ordem mundial por trás da infinidade de notícias, teorias e estatísticas com as quais somos bombardeados diariamente. Vou até mais longe: sem um modelo conspiratório para dar liga a todo esse material, o cidadão médio provavelmente perderia o resto da sanidade que ainda tem.

O cérebro tem limites de quanta coisa pode manter em foco. Todo mundo tem que fazer algumas concessões em relação a quanta informação consegue processar de forma decente, e o modelo de imaginar um grande conluio global para controlar sua vida é excelente para simplificar as coisas. Mesmo que as coisas pareçam confusas eventualmente, há a segurança de saber que desde que você saiba escapar desse controle (ou tirar vantagem dele), entender essas informações é secundário.

Pessoas como eu e provavelmente muitos leitores do Desfavor tendem a preferir outro modelo, um pouco mais difícil, mas que também aceita a impossibilidade de entender tudo o que chega até nós: o modelo do interesse seletivo. Já que não dá para entender de tudo, que pelo menos você entenda bem de algumas coisas através da sua curiosidade e não se obrigue a ter opiniões fortes sobre o resto. Como todo modelo, tem pontos positivos e negativos. Aceitar que tem muito mais coisa que não se entende do que entende te deixa mais vulnerável a ser enganado por discursos de autoridade e “poços envenenados” de informação manipulada.

O modelo conspirador está sempre com uma pedra na mão, o modelo de interesse seletivo não. Se por um acaso o Fórum Econômico Mundial realmente for uma entidade tramando um golpe para controlar a humanidade, eu provavelmente daria o benefício da dúvida para eles por muito mais tempo do que o indicado. Mas, o interesse seletivo de ir pesquisar o que era esse “Great Reset” ao invés de achar que algo muito terrível vinha por aí e pronto me indicou que se há algum risco de regime totalitário controlando toda a humanidade, provavelmente não vem daí.

O que me permite ir buscar outros interesses e continuar atento ao que acontece no mundo. O conspirador vai ficar preso nisso por muito mais tempo, provavelmente estressado com a ideia de um ataque iminente às suas liberdades. É o preço de carregar essa pedra pra cima e pra baixo. No final das contas, é muito mais provável que as pessoas usando o modelo de interesse seletivo percebam de onde vem o perigo, afinal, são elas que estão observando mais coisas ao mesmo tempo.

E curiosamente, eu entendo o lado do Fórum Econômico Mundial: se tem algo perigoso no horizonte, é a questão climática. Na época da Greta, criticamos o uso de uma menina com algum tipo de problema mental como imagem do ambientalismo, porque ela tomaria todas as pancadas sozinha; mas não necessariamente criticando as ideias que ela foi treinada a repetir. Existem problemas sim. E eles vão muito além de matar um mico leão roxo com bolinhas amarelas: o impacto na economia e qualidade de vida média do ser humano tende a ser grande.

Mesmo com minhas relativamente poucas décadas nesse mundo, já dá para perceber que algo saiu do padrão. Quando eu era pequeno, existiam estações, por exemplo. Hoje em dia, onde moro é Verão o ano todo, com uma ou duas semanas de frio. Não é aquela análise simplista de achar que só porque esquentou existe aquecimento global, é uma quebra dos padrões climáticos sugerindo uma mudança de larga escala. Eu estaria mais feliz se fosse o contrário com frio o ano todo e duas semanas de calor, mas estaria percebendo algo errado do mesmo jeito.

O interesse seletivo me fez olhar para mais coisas e não considerar só uma experiência pessoal como prova de teoria, e, aberto a escutar o que outras pessoas pesquisaram, eu comecei a entender que se é para estar com a pedra na mão contra uma ameaça, essa parece a mais evidente. Mudança climática não é problema de possíveis netos meus, é algo que acontece bem mais rápido do que se esperava. E mesmo pequenas alterações já começam a mudar a lógica de uma sociedade tão complexa como a nossa: um pouco de aumento no nível do mar já impacta a economia global, afinal, muitas das maiores cidades do mundo ficam à beira do oceano. Climas um pouco fora do padrão já mudam consideravelmente os resultados da agricultura, mexendo com preços e criando riscos de falta de alimentos. Deslocamento populacional e insegurança alimentar causam guerras desde a antiguidade.

Mas eu vou estender a mão aos conspiradores mais uma vez, assim como a turma de Davos não soube se vender bem com essa história de grande reinício, boa parte do discurso ambiental das últimas décadas errou feio ao falar de um mundo em colapso total em um século ou dois. Primeiro que não impacta diretamente o ser humano médio, que provavelmente não enxerga muito além do próximo final de semana, e segundo que tentar assustar o povão só os aproxima do modelo conspiratório de pensar. Na hora do aperto, a pessoa corre para o que acha mais seguro. E nada mais seguro para um cérebro acuado do que se fechar em negação.

Existe um problema de publicidade nessa história toda. A menina de cara fechada na ONU e iniciativas com nomes como “Great Reset” são prova disso. É a humanidade achando que ainda está no mundo pré-internet, onde o cidadão médio tem amplo espaço para novas informações. Essa não é mais a lógica das coisas. Terraplanismo e antivacinação funcionam porque tem o poder de desinformar; aliviar a pressão sobre um pobre cérebro abarrotado de informação sobre coisas que nunca tinha pensado antes. Negacionismo científico e tendências conspiratórias são sintomas de uma alergia à informação que vai se instalando na humanidade.

O meu interesse seletivo me faz ficar com a pedra na mão contra esse problema, tanto que mesmo sem ganhar um centavo por isso, continuo escrevendo aqui. Acredito que alguma utilidade tem. Mas eu consigo enxergar que existem outros problemas no mundo: a questão climática com certeza é uma delas. E nesse ponto, debaixo dos erros de comunicação do Fórum Econômico Mundial, “The Great Reset” é uma ótima iniciativa. Eu teria chamado de algo como “Riqueza Verde” ou algo que remetesse a desenvolvimento, mas a base é sólida. Digo faz tempo que acredito que o mundo só consegue resolver a questão ambiental aumentando a eficiência e a lucratividade de iniciativas sustentáveis, e de uma certa forma é bem isso que eles propõem: aponta o dinheiro para esse lado e deixa as empresas correrem atrás das verdinhas.

Espero que mais gente comece a perceber que não dá para ignorar uma maioria de pessoas que se assusta com o que não entende por não estar treinada para ir aprender sobre o tema. Esse povo começa a achar que tudo é conspiração porque é o que cabe na cabeça delas. É uma questão de reeducação também, até mesmo quem consegue ir para a escola aprende as coisas na base do decoreba para passar em vestibular, aprendendo que o que a sociedade quer delas é que saibam de tudo, não que sejam curiosas e apliquem seu interesse em algo que lhes pareça valioso.

Num mundo onde saber é mais importante que aprender, tudo é conspiração.

Para dizer que ainda está desconfiado(a), para dizer que o Príncipe Charles escolhe sempre a opção mais feia, ou mesmo para dizer que eu sou um inocente por não me informar por corrente de WhatsApp: somir@desfavor.com


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