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Estado incerto.

Estado incerto.

| Somir | | 31 comentários em Estado incerto.

Ainda não sabemos quem vai ser o próximo presidente dos EUA. A apuração continua nos estados mais divididos, principalmente por causa do número recorde de votos pelo correio. No momento que escrevo este texto, tanto Biden quanto Trump podem ganhar, com uma probabilidade um pouco maior para o democrata. Seja como for, vai ser apertado. Mas, mais uma vez as previsões de que Biden ganharia fácil foram furadas.

Este não é o texto definitivo sobre o tema, afinal, a situação pode ser judicializada e demorar mais de um mês para ser resolvida; em 2000, foi só no meio de dezembro que decidiram. Vamos ver as coisas como estão agora.

Como eu disse semana passada, também acreditava na vitória do candidato azul, mas prevendo uma disputa bem acirrada. O mais comum por lá é que as eleições sejam próximas, o colégio eleitoral é um terror de entender, mas não se pode dizer que não torna o processo muito mais emocionante. Talvez nas próximas horas tenhamos alguns resultados mais sólidos com dois estados-chave, Michigan e Wisconsin, próximos de finalizar a contagem, mas nem isso garante que terminemos o dia com uma decisão.

Mesmo que Trump perca nos votos, já ganhou algo muito importante: adicionou caos o suficiente no processo para colocar tudo em dúvida. Inclusive a idoneidade do sistema eleitoral americano. O dia começou com um aumento súbito no número de votos de Biden nos estados mais disputados, o colocando na frente na disputa em três estados que se somados, dão o número exato de votos que ele precisa para vencer. Não estou afirmando que aconteceu uma fraude, mas que chama a atenção, chama.

Mas aqui eu explico o título do texto: como Trump foi eficiente em colocar tudo em dúvida, agora é complicado decidir se as notícias que chegam estão contaminadas por política ou não. É claro que o partido que está na frente vai dizer que foi tudo feito certo, é claro que o partido que está perdendo vai dizer que foi roubado. Eleição virou pênalti: quem caiu na área jura que foi derrubado mesmo se o adversário estava do outro lado do campo, quem teve a falta marcada contra diz que foi invenção do juiz mesmo com a gravação dele enfiando um murro no outro jogador.

É uma espécie de fadiga democrática que vai se espalhando pelo mundo: parece que saiu de moda negociar com adversários. Antes, valorizávamos pessoas que conseguiam unir grupos dissidentes e achar um meio termo, mas hoje em dia esses candidatos não conseguem mais sobreviver às eleições, tanto nos EUA como em boa parte do mundo. Joe Biden tinha essa característica de moderado ao seu favor, mas no final das contas, foi a eleição sobre gostar ou não do Trump. A personalidade polarizadora do homem laranja é a cara da política moderna: pé no acelerador o tempo todo, e se derrapar, coloca a culpa nos inimigos.

A eleição americana tende a definir padrões para o resto do mundo, até pela gigantesca presença deles na cultura humana moderna. Nenhuma eleição chama tanta atenção fora de seu país como a deles. E em alguns países como o Brasil, chega a ser caricata a forma como se copia o que acontece por lá. Então, o que podemos perceber da eleição americana antes mesmo de ter um resultado? Que os sistemas políticos que usamos até hoje podem estar ficando desatualizados. Inclusive no que se diz sobre países e identidades nacionais.

Se você olhar o mapa eleitoral americano, percebe que não é o mesmo país de costa a costa. Algumas regiões são contadas para os republicanos ou para os democratas antes mesmo de começarem a apurar, de tão impensável que é votarem em outro candidato que não o do partido que sempre vence por lá. O estado da Califórnia, o mais populoso dos EUA, é um exemplo claro disso. Ontem de noite assim que começou a apuração no estado, os 55 votos do colégio eleitoral já estavam com Biden, e ninguém pensou meia vez em esperar contarem os votos de verdade.

O “país” da Califórnia sabe o que quer, goste você ou não. Não parece injusto que eles precisem aceitar um presidente que pensa totalmente diferente? E se Biden ganhar mesmo, não parece injusto que aqueles estados do Sul americano tenham que engolir um presidente contrário ao porte de armas? Novamente, você pessoalmente pode concordar ou discordar das opiniões de cada partido ou político, mas isso não muda o fato de que no modelo atual, comunidades inteiras perdem o direito de se autorregular de acordo com suas próprias crenças.

Quando falávamos de políticos que só conseguiam ser viáveis acomodando as vontades de vários grupos, fazia muito mais sentido ter presidentes de grandes áreas politicamente heterogêneas. Mas desde o advento da internet, os políticos que conseguem se destacar normalmente o fazem com plataformas mais e mais específicas para agradar uma parcela da população. Temos um exemplo simples aqui no Brasil: com certeza na sua cidade tem uns 100 candidatos a vereador que só sabem falar de cachorro. Historicamente seriam tachados de imbecis sem um plano real do que fazer quando eleitos, mas nas últimas décadas ficou claro que basta dizer que vai cuidar de cachorros para ter o poder de um vereador ou mesmo deputado!

Acabou a vergonha de ser um candidato unidimensional, que só sabe falar de uma coisa, na dúvida, o povão vota em quem disser a bobagem que quer ouvir, desde que seja bem específica. No mundo pós-internet, as pessoas gostam de participar de comunidades sem dissidência, bolhas de aceitação que se tornaram viáveis com a tecnologia. O candidato moderno tem que se adaptar. O espaço para uma visão mais plural e moderada da realidade vai se esvaindo enquanto gente muito limitada vai acumulando poder.

E aí, como conciliar eleições nacionais? Trump fala com seus fanáticos, Biden ainda tenta conversar com um pouco mais de gente, mas são dos candidatos mais limitados em termos de buscar equilíbrio que vimos na história daquele país. Será que o mundo ainda aceita países do tamanho de Brasil ou EUA? Eleições acabam resolvidas exclusivamente na base da rejeição: estão sempre votando contra alguém. No Brasil, votamos contra o Lula para eleger Bolsonaro. Talvez o país estivesse melhor separado com vários presidentes mais talhados para as vontades de cada estado. O presidente parece uma espécie de venda casada: para comprar a paz de não ter um inimigo no poder, você leva de brinde qualquer imbecil que realize essa tarefa.

Algo me diz que estamos vendo o começo do fim da era dos grandes impérios na humanidade. Eleições frequentemente irritando as populações cada vez mais divididas. E com tamanha liberdade de movimento e comunicação, nada impede que as pessoas comecem a se posicionar geograficamente cada vez mais próximas de seus parecidos. E a cada passo, mais e mais estados vão ficando incomodados com a escolha nacional. Os EUA ficaram tão divididos dessa vez que realmente parece a escolha mais correta dividir o país e dar a presidência para os dois. Biden vai entrar para desfazer o que Trump fez, assim como Trump passou seus quatro anos desfazendo as ações de Obama.

Claro, a política sempre teve disso, mas parece que está virando só isso. Só desfazer as ações do último no cargo para agradar uma base de eleitores cada vez mais fanática. Se for para ser assim, qual a utilidade de ter presidentes mesmo?

Vamos esperar para ver.

Para dizer que continua torcendo pela briga, para dizer que quer se separar do Brasil inteiro, ou mesmo para dizer que Trump já se declarou vencedor (é claro que ele fez isso): somir@desfavor.com


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