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Religiões do futuro.

Religiões do futuro.

| Somir | | 16 comentários em Religiões do futuro.

Eu sei que muita gente discorda por aqui, mas a verdade é que o ser humano médio fica mais inteligente a cada geração. A quantidade de informações que processamos diariamente só aumenta, especialmente nesse último século da nossa história. E isso vai gerando efeitos cada vez mais perceptíveis no lado mais místico da mente humana: a mitologia de alguns milênios atrás não “sustenta” mais as necessidades básicas do cidadão do século XXI. Tivemos que complementar essa dieta…

E para trazer de volta ao barco quem fez cara feia com a primeira afirmação do texto, quando eu digo mais inteligente, eu estou falando de capacidade de absorver e processar informações. A mente humana ainda é parte de um organismo moldado pela evolução: evita gastar energia desnecessária, e assim que encontra uma forma eficiente de entrar em equilíbrio com o ambiente, tende a ficar travada nela. Ou seja: se você cresce num mundo onde o ideal é saber bastante sobre poucas habilidades essenciais para a sobrevivência, é assim que seu cérebro vai se moldar.

E no passado, isso era a norma: nossas comunidades eram menores, quase todas as profissões eram hereditárias, e sobrevivência precisava estar no topo das prioridades de todos. Isso forma especialistas. E por quase toda a história humana, especialistas permitiam que a espécie continuasse viva. O surto sem precedentes de crescimento econômico e disponibilidade de recursos do século XX para a frente criou uma nova realidade: a tecnologia e a abundância de recursos gerou uma estabilidade nos processos necessários para a subsistência humana, e com isso, o número de especialistas necessários para manter as estruturas que dependemos para viver foi ficando cada vez menor.

Com uma máquina, o fazendeiro substitui centenas de trabalhadores especializados. Com estradas e sistemas de logística, uma empresa pode fornecer produtos para o mundo todo. Com a internet, o conhecimento humano está disponível na ponta dos dedos quando ele for necessário. Isso cria generalistas. Pessoas que lidam com quantidades imensas de informação todos os dias e podem trocar de profissão constantemente. O ser humano fica mais inteligente por usar mais o cérebro, mas, é claro, isso não quer dizer que toma decisões melhores. Trocamos a completa incapacidade de lidar com informações fora da nossa área de especialidade com o risco maior de cometer erros por arriscarmos opiniões e ações sobre uma quantidade cada vez maior de temas.

Como eu sempre escrevo aqui: nada é de graça nessa vida. Ao invés de entender 100% sobre um tema e zero sobre todos os outros, o ser humano médio atual entende 10% sobre quase todos os temas. Na soma geral sabemos mais, mas ainda pode nos levar a inúmeros erros. E é aqui que eu volto para o foco inicial do texto: como é que as religiões sobrevivem nesse mundo? Se você já é ateu, não precisa dessa próxima definição, mas ainda somos minoria: a mitologia religiosa é absurda de um ponto de vista racional. Nenhuma das histórias se sustenta se você usar como base o funcionamento da realidade como vemos no dia a dia.

Se você é religioso, pode usar o argumento da fé. Fé não se explica. A mitologia religiosa é literal ou metafórica de acordo com a necessidade do momento, e só quem tem fé entende por que isso faz sentido. Eu já desisti de discutir tecnicalidades de religiões, todo ateu tem (ou pelo menos deveria ter) o seu momento de aceitar que não é uma discussão com o racional da outra pessoa e que todo argumento sobre a plausibilidade de mitos e milagres está fadada e girar em falso até o fim dos tempos.

Agora, vamos começar a conectar as coisas: o ser humano moderno com seu saber generalista não é mais tão vulnerável à palavra fria da religião. Antigamente, você se virava com um “faz isso senão Deus vai te matar”, mas o pouco que o cidadão de hoje sabe a mais que o da antiguidade vai enfraquecendo o poder desse tipo de ameaça. O mundo é complexo demais para os dogmas de milhares de anos atrás, a pessoa sabe, mesmo que inconscientemente, que tem coisa que não encaixa nos discursos religiosos originais. A dissonância cognitiva entre o texto das suas escrituras sagradas e as informações as quais tem acesso sem parar nesse mundo hiperconectado começam a enfraquecer o poder da mitologia pura.

Uma coisa é dizer que Zeus mora no topo do Monte Olimpo cinco mil anos atrás, outra completamente diferente é dizer isso hoje em dia quando você pode ver o topo dela no seu celular a qualquer hora do dia, de qualquer lugar do mundo. Falar de uma enchente que cobriu o mundo e que Moisés salvou todos os animais num barco até funcionava num tempo onde o cidadão médio sequer sabia ler e mal saia da sua vila durante toda a vida, mas hoje em dia todo mundo sabe o tamanho de uma girafa e de um elefante desde a infância. A religião perdeu boa parte da presunção de relato fidedigno de acontecimentos passados e/ou distantes, ficando relegada quase que exclusivamente à imaginação de seus fiéis.

Embora o lugar da mente destinado à fé seja extremamente seguro, ele não é grande o suficiente para lidar com os problemas existenciais da mente humana, ainda mais nessa era moderna onde o cidadão médio tem acesso a tanta informação. Durante milhares de anos, quase todos os seres humanos vivos não tinham sequer tempo de ter crises existenciais, quanto mais a profundidade intelectual de se afundar nelas. A religião em suas bases originais não dava mais conta de suportar o emocional humano. E por boa parte do século passado, ela sofreu derrotas nunca antes vistas na nossa história. Mais e mais países adotaram constituições laicas, a cultura popular foi se afastando de valores tradicionais, reles mortais começaram a ser alvo de mais devoção que qualquer profeta com a cultura das celebridades… parecia o fim agonizante de uma era.

Até que deixou de ser. Por trás dos panos de um espetáculo de abandono de valores religiosos tradicionais, o ser humano foi criando novos significados para essa mentalidade religiosa. Se me perguntassem nos anos 90 qual seria esse caminho, eu com certeza diria que o culto de personalidade seria o destino desse processo, com celebridades ocupando todo esse espaço de devoção e definição de moral que o cidadão médio parece precisar. O popstar parecia o novo messias. Mas o mundo das celebridades seria virado de ponta cabeça com a popularização da rede mundial de computadores: ninguém mais duraria tempo o suficiente para virar uma religião.

Na verdade, a demonstração do verdadeiro caminho das religiões modernas aconteceu logo depois dos atentados de 11 de setembro nos EUA. As conspirações que se desenvolveram nos anos seguintes não eram parecidas com as que sempre existiram na nossa história. Tinha algo maior ali, uma devoção ao tema que está chegando à segunda década. Ela cobria todos os pontos que a religião tradicional não dava mais conta: fazia parte de uma memória recente e tinha conexão com a realidade. A partir dela, o conspirador extraia o mesmo senso de grandiosidade do sistema no qual estava inserido, derivando dali seu valor pessoal.

Enquanto estávamos vendo atônitos o crescimento exponencial da igreja evangélica no Brasil como se fosse uma renascença da fé tradicional, tinha outra coisa por trás do processo que só foi ficar clara com a atenção gerada pelos movimentos terraplanistas (que sempre terminam misturados com o cristianismo se você se aprofundar): o vácuo deixado pela parte já quase impossível de acreditar das religiões estava sendo preenchido por conspirações. Elas seguem mais ou menos a mesma lógica de forçar conclusões por bases frágeis e gerar significados maiores para a nossa existência, mas com a vantagem de você não precisar mais defender mitos bizarros criados por pessoas há cinco mil anos atrás. A religião amadureceu rapidamente: foi-se o tempo da inocência infantil de cobras falantes, o cidadão médio precisava de algo mais adulto.

E eu não estou falando só de negação científica como conspirações sobre vacinas ou o formato do planeta, é algo ainda mais profundo: o momento político atual pode ser explicado pela ocupação do espaço deixado pelas religiões na mente da maioria das pessoas. Todo mundo parece achar que tem uma grande conspiração para destruir o mundo como conhece: alguns acham que nazistas controlam tudo, outros acham que vão forçar seus filhos a virarem gays. O que, francamente, é risível para quem pensa meio minuto sobre o funcionamento da sociedade humana, mas pelo menos é mais factível que deuses morando em montanhas perto da sua casa ou de barcos que carregam todos os animais do mundo.

Eu sei que em questão de minutos eu vou deixar qualquer religioso puto da vida ou sem saber o que dizer se ele tentar defender os mitos e milagres da sua religião numa discussão, mas a coisa é extremamente mais complicada com essas “religiões modernas” baseadas em conspirações. Mesmo que sejam tão ridículas quanto o terraplanismo, são versões muito mais complexas e cheias de armadilhas argumentativas do que as fábulas tradicionais do cristianismo, islamismo, judaísmo, etc. E como o ser humano do século XXI é sim mais inteligente, ele tem milhares de caminhos para escapar no meio de uma discussão do tipo. A conversa nunca termina.

Não é à toa que a mentalidade religiosa encontrou lugar novamente na política: direita e esquerda trabalham com essas religiões modernizadas, muito mais apelativas para o cidadão médio de hoje. Não parece mais algo infantilóide como de costume no tema, parecem temas complexos, cheios de nuances e muitas vezes com estudos pseudocientíficos para dar suporte. Precisa de uma pesquisa dizendo que genética é uma invenção sexista? Tá na mão. Quer um estudo comprovando que máscaras aumentam o risco de contágio da covid? Não quer dois? As religiões modernas vão continuar crescendo porque acertaram precisamente no que estava faltando para o cidadão médio: profundidade na insanidade.

Sei que parece contraditório que esse grau de maluquice que estamos vendo seja resultado direto do ser humano ficando muito inteligente para o discurso religioso tradicional, mas a culpa é sua se você achava que inteligência sozinha resolvia alguma coisa. Inteligência é ferramenta. Você ainda tem que ter um propósito decente para fazer bom uso dela. Gente perdida pega essa ferramenta e constrói o QAnon…

Por um bom tempo eu tentei entender onde estava no espectro político nesse mundo, mas agora finalmente entendi por que não achava uma casa confortável em nenhum desses movimentos: eu sou ateu. Não colou antes, não cola agora.

Para dizer que o diabo trabalha de formas misteriosas, para dizer que ainda é melhor que a Inquisição, ou mesmo para dizer que tem fé que eu vá parar de pensar tanto nas coisas: somir@desfavor.com


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