Skip to main content
Artes decadentes.

Artes decadentes.

| Desfavor | | 24 comentários em Artes decadentes.

O que configura arte é difícil de se definir em linhas gerais, mas há um consenso mínimo sobre quais são as sete artes clássicas: Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Poesia, Dança e Cinema. Sally e Somir colocam o monóculo, levantam o dedinho e discutem sobre os rumos delas. Os impopulares apresentam suas peças.

Tema de hoje: das sete artes clássicas, qual é a mais decadente?

SOMIR

Dança. Eu diria que a dança é mais do que uma arte clássica, é uma arte primordial: basta estar vivo e ter coordenação motora básica para praticá-la. Veio das cavernas de nossos primeiros antepassados até os mundos virtuais da atualidade, sempre encontrando alguma forma de se manter relevante. Mas curiosamente, justamente na era onde as pessoas têm o menor pudor de praticar essa arte é quando ela parece estar vivenciando seu momento mais decadente.

Como gosto é algo muito relativo, é importante termos algum parâmetro que vá além disso para definir o que configura a decadência de uma dessas formas de arte. Muito embora eu veja coisas terríveis acontecendo em todas as outras, é na dança que a percepção extrapola qualquer senso artístico pessoal e começa a parecer algo cada vez mais distorcido e sem significado em termos mais gerais. A Dança está monotemática, reduzida a um menor denominador comum de tal forma a me fazer duvidar se há como retornar desse abismo.

Ou, em termos de mais fácil entendimento: eu enxergo a dança como algo decadente porque virou a arte de chacoalhar a bunda! É tipo o irmão mongo das outras artes, que fica tendo convulsões anais sem parar e envergonha todo mundo. Vejam bem, eu não vou ser hipócrita aqui e dizer que a imagem de uma mulher atraente mexendo o corpo de forma provocativa não me traz felicidade, porque traz. Não estou aqui reclamando de bundas porque me acho superior a isso, estou apenas dizendo que se 99% do que você vê de uma das artes são bundas se mexendo, é porque algo deu muito errado no caminho.

Se quase todas as músicas modernas fossem sobre fazer sexo e nove em cada dez pinturas fossem de mulheres peladas, não é que eu não saberia apreciar as bem feitas, é que seria difícil não olhar para essas artes e ver algo além de gratificação instantânea. A dança no século XXI está perigosamente perto desse vácuo de propósito maior. Sim, ainda existem variações suficientes e pessoas realmente dedicadas a ir além dessa preguiça existencial de basicamente apontar a genitália na direção dos outros, mas a dança parece ser a arte mais afetada por essa apelação atualmente.

E quando a variedade começa a desaparecer, encontramos a decadência. Os exemplos de apenas uma forma de utilizar a dança vão se acumulando, e novas gerações vão enxergando essa arte de forma cada vez mais limitada. Se você falar para uma criança dançar hoje em dia, grandes chances dela começar a fazer rituais copulatórios imitando os artistas populares. Mesmo que eu não me importe muito com a pureza infantil e moralismos do tipo (crianças brincam de serem adultas, é literalmente a programação cerebral delas – é sempre culpa do adulto presumir algo além disso), demonstra a decadência da arte. Criança enxerga as coisas como elas se apresentam para elas: se tudo o que os adultos fazem nessa área é simular um ato sexual com o ar, é exatamente isso que elas vão imitar.

E já estamos vendo o resultado dessa decadência nos adolescentes: o TikTok, por exemplo, é um aplicativo que em tese tem foco em dança, mas que na prática só existe para pré-adolescentes e adolescentes tentarem conquistar a atenção sexual de seus pares (e de tarados). Novamente, não quero que o que você que está lendo tire deste texto seja uma crítica à sexualidade humana, e sim como a dança está se tornando escrava disso. Atrair parceiros sexuais não deveria ser o foco de nenhuma arte, afinal, é terrivelmente restritivo.

Se vai virar só isso, abre espaço na lista e deixa o Teatro ou até mesmo os Quadrinhos entrarem. Podem ser artes com diversos problemas, mas pelo menos ainda não são tão repetitivas. Pode ser uma questão ainda mais complexa do que eu estou sugerindo aqui e eventualmente todas as artes estão fadadas a se tornar essas versões extremamente focadas e popularescas ao invés da proposta original de expressão da criatividade humana. Por causa da velocidade na qual a cultura humana se move nos dias atuais, quase tudo corre o risco de se tornar uma caricatura de si mesmo: podemos testar a popularidade de tudo em tempo real e ir adaptando os resultados para gerar maior interesse.

O que é um perigo para a arte. Quando arte começa a se moldar ao que acha que as pessoas querem ao invés de ser uma expressão do artista, perde-se a essência. Mesmo sendo publicitário, eu acho engraçado quando alguém tenta sugerir que Publicidade deveria entrar no rol das artes: a expressão publicitária é o oposto da arte. O que não quer dizer que seja algo ruim, mas que conceitualmente, se presta a outro papel. O de gerar consenso, de ir buscar um sentimento específico dentro do outro ao invés de ser uma expressão única. E eu falo disso porque corremos o risco de ver todas as artes se tornando Publicidade com o tempo. Pelo menos no palco maior das mídias de massa.

E quando eu falo da decadência da dança falando sobre o controle excessivo que a necessidade de alardear a própria sexualidade assume sobre a arte, estou falando desse processo de se tornar Publicidade. Quando a dança é só uma forma de anunciar para o mundo sua atratividade sexual, o rebolado é apenas um comercial. E comerciais não podem ser muito inventivos: precisam falar com muita gente ao mesmo tempo e não gerar sentimentos confusos. Que tipo de arte sobrevive assim? Eu quase concordei com a Sally sobre o cinema porque hoje em dia os filmes mais famosos são comerciais de brinquedos, mas ainda existe uma indústria fazendo coisas diferentes e arriscando mais. Ainda.

Já a dança, essa arte parece perdida em celebridades anunciando serviços sexuais que não pretendem realizar. E numa massa cada vez maior de pessoas que só tem contato com a dança através dessa forma de prostituição estelionatária. Não é à toa que a maioria das mulheres mais jovens vira de costas instintivamente na hora que começam a dançar. Dança é isso para elas. Homens dançam menos em média, mas quando o fazem, é quase sempre o mesmo movimento de pélvis complementar.

Tem gente que não é assim? Claro. Todo mundo que dança é um macaco tentando transar com um fantasma? Não, de forma alguma. Você pode ser diferente? Claro, eu não duvido que você seja diferente. Mas nada disso muda o fato de que a arte da dança está em decadência como um todo. Virou mero comercial de sexo para uma grande maioria. Pode ser divertido, mas é pouco, muito pouco para uma das sete artes clássicas.

Para dizer que eu odeio dança (acho que escrevi à toa), para dizer que é poesia porque poesia nunca foi arte, ou mesmo para dizer que sou puritano (sim, escrevi à toa): somir@desfavor.com

SALLY

Das chamadas sete artes, qual é a mais decadente?

São elas: Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Poesia, Dança e Cinema. A tentação de escolher poesia é enorme, mas, no meu ponto de vista, ela sempre foi decadente, praticada por gentalha em estado de sofrência, floquinhos de neve especiais que se acham mais sensíveis que o resto do mundo e bêbados e vagabundos no geral, então, eu fico com cinema.

Para estabelecer que houve decadência é preciso comparar o ponto mais alto daquela arte com a sua condição atual e verificar o quanto de prestígio e qualidade ela perdeu. E, meus amigos, o que aconteceu com o cinema no geral, não é para poucos. Uma derrocada digna de pena.

Cinema já foi a arte que mais atraiu público mundialmente, em sua época de ouro. Mesmo pintura e escultura, que são muito mais antigas, não chegaram a arrastar multidões como o cinema. Talvez tenha sido, entre as sete, a forma mais democrática de arte, afinal, até surdo-mudo pode ver e se emocionar com um filme legendado ou cego, escutando a história.

Havia uma época onde a indústria cinematográfica representava o que havia de maior prestígio e luxo. Além de movimentar bilhões, era de um status sem precedente. Ser artista de cinema, ser artista de Hollywood, te tornava um semideus. Era a glória, o ápice de glamour, o mais alto que alguém poderia chegar em termos de fama e admiração mundial.

E, quanto maior a altura, maior é a queda. As outras seis nunca chegaram a esse status de serem apreciadas por todo o planeta durante décadas. Eram mais restritas, menos populares, portanto, qualquer oscilação não vai ser comparável à queda que o cinema teve. Um império que se manteve sólido por anos e fez parte das nossas vidas como uma opção de lazer está agonizando e morrendo lentamente.

Não falo só de altos e baixos nas produções. Falo do ritual em si, de ir ao cinema. Mesmo antes do coronavírus, por uma série de motivos, ele vinha em franca decadência. Foi se tornando obsoleto com o tempo. O primeiro golpe foi nas locadoras, que foram extintas pelo streaming, pelos seriados, pela facilidade e variedade de ter todo tipo de programação (muitas vezes melhor do que um filme) no conforto do seu lar. Acabou sobrando para o cinema no geral também.

Começaram a perder seus bons atores, bons roteiristas, bons diretores, bons profissionais no geral para o streaming. Aquele blockbuster do qual todo mundo falava aos poucos deixou de ser o cinema e passou a ser o seriado X ou Y. Mesmo as produções feitas para streaming, nem de longe tem a qualidade e prestígio dos áureos tempos do cinema. O cinema foi definhando, agonizando lentamente, mantido vivo por aparelhos plugados por saudosistas que não queriam abrir mão do ritual de “ir ao cinema”.

O problema é que essa geração morre, e a que vem no lugar, quer ver tudo de casa, podendo dar um pause para fazer xixi, sem ninguém na poltrona ao lado incomodando. Uma nova geração mimada (no bom sentido, de quem quer conforto) que quer ver tudo no seu tempo, não nos horários estipulados na bilheteria. Uma geração que quer ver o que há de melhor, seriados onde cada capítulo custa mais caro do que fazer um filme.

Por já ter estado no topo do mundo, a derrocada do cinema me parece mais significativa. Os outros podem até ter caído, mas nunca estiveram tão alto. Além disso, continuam fazendo versões de qualidade. Até de música você acha se procurar.

O mesmo vale para dança: tem muita coisa merda? Tem sim, principalmente do Atlântico pra cá, com uma tremenda bundificação, mas ainda tem dança de qualidade pelo mundo: belíssimos balés, exóticas danças orientais como a dança do ventre e muitas outras que conservam uma tradição de perfeição e alto nível.

O cinema, coitado, faz tempo que não apresenta uma obra digna de aplausos. O cinema passa por uma crise de criatividade sem precedentes: tudo é requentado, seja oficialmente (como por exemplo os Live Action) seja camuflado, com velhas fórmulas de roteiro e atores que são apenas iscas. O cinema que ainda se manteve intacto, o alternativo, nunca foi famoso, sempre foi de nicho, então, não há que se falar nem em derrocada nem em ascensão. O cinema das massas, esse sim agoniza.

O coronavírus, ao que tudo indica, vai ser o golpe de misericórdia. Não estou dizendo que o cinema vai acabar, não vai, sempre existirão os românticos saudosistas ou as pessoas sem uma opção tão barata de lazer. Mas aqueles tempos gloriosos de status, prestígio e endeusamento? Esse trem já partiu, e não volta. Cinema agora é filme merda de super-herói, comédia romântica, franquias sendo exauridas até a última gota (como Star Wars) e roteiros requentados na forma de Live Action.

A dança é uma arte milenar, praticada em rituais pré-históricos, e ainda se mantém com relativa dignidade, dentro do seu nicho de público de qualidade. O cinema, coitado, morre jovem. Nasceu por volta de 1895. Perdeu sua força em apenas 125 anos, enquanto as outras sobrevivem por eras. Talvez o cinema tenha queimado lenha rápido demais, às vezes é bom crescer devagar.

E, veja bem, eu sou fã de cinema. Mas infelizmente é preciso admitir que ele está agonizante. Filmes? Com certeza continuarão existindo, mas sem o glamour da exibição em salas de cinema, de arrastar multidões, de despertar admiração na grande massa e definitivamente sem o status de arte mais popular do planeta. Hoje, os seriados estão lentamente tomando seu posto, e possivelmente algo novo surgirá em breve e tomará o lugar dos seriados. É o destino cruel da arte consumida pela massa: ela tem vida curta.

Assim como um quadro do Romero Britto não destrói a Pintura uma dança feia não destrói a Dança. Amadorismo e péssimo gosto existe em qualquer lugar. Ninguém se importa em como aborígenes da América do Sul ou divas pop cafonas da América do Norte estão dançando. Cada país tem sua dança, que representa culturalmente e mantém viva uma tradição de séculos. O que aconteceu com o cinema foi algo mais dramático, mais profundo e mundial. Não é que a qualidade de suas obras caiu, o gênero foi substituído.

O cinema conseguiu cair mais baixo do que o rádio, que ressurgiu com uma nova roupagem na forma de podcast. O cinema não. Streaming, seriados, documentários… não são cinema. Principalmente nesse esquema fast-food que as Netflix da vida os apresentam. E não soube lidar com isso, se agarrando a estratégias furadas para tentar sobreviver: lacre, feminismo raivoso e outras militâncias que lhe tiram a espontaneidade.

Me dói afirmar, mas de todas as derrocadas, a pior foi a do cinema. E eu não vejo retorno, não pela pandemia, mas pelo que vinha sendo apresentado antes dela. Vai virar entretenimento de hipster e de cabeça oca. Descanse em paz, Cinema.

Para dizer que meu texto te entristeceu, para dizer que a culpa é do Me Too ou ainda para dizer que a culpa é das cotas impostas: sally@desfavor.com


Comments (24)

Deixe um comentário para Somir Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: