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“Medicina” Ortomolecular

“Medicina” Ortomolecular

| Somir | | 16 comentários em “Medicina” Ortomolecular

Para completar a semana da inutilidade medicinal, resolvi pegar um dos maiores desafios: a “medicina” ortomolecular. Medicina entre aspas porque assim como os outros exemplos desta semana, assim que a modalidade é testada de forma rigorosa, os supostos efeitos positivos desaparecem. Mas ao contrário de maluquices óbvias como cristais mágicos, essa tem uma base muito mais forte do ponto de vista científico… e é aí que mora o perigo.

Primeiro problema: o pai da ortomolecular é ninguém menos do que Linus Pauling, um dos grandes cientistas da história da humanidade. Não dá para bater no currículo dele, cidadão ganhou um Nobel por ter basicamente criado a base da química moderna (do século XX). Linus não é pouca coisa, não tem nada a ver com os malucos aventureiros que criaram quase todas as outras formas de medicina alternativa que criticamos aqui. Ao contrário dos charlatões que foram alçados à categoria de cientistas sérios pelos defensores das suas terapias alternativas, na ortomolecular, temos um cientista sério de verdade lá no começo.

Segundo problema: a ideia da ortomolecular não é bizarra. Orto vem do grego “certo”, ou seja, é sobre achar as quantidades certas de cada molécula que nosso organismo precisa para se manter saudável. Nada de errado com isso: precisamos mesmo de uma série de vitaminas e minerais para o funcionamento correto do corpo e da mente. Quando você tem deficiências ou excessos, a chance de ter problemas de saúde começa a aumentar consideravelmente.

Se eu quisesse te vender a “medicina” ortomolecular, eu tenho certeza que conseguiria. Pouca gente nesse mundo tem o conhecimento necessário para processar informações sobre bioquímica e categorizá-las como corretas ou falsas. Se não estivéssemos na semana temática da medicina alternativa, eu aposto que a maioria de vocês não teria a mínima defesa contra os argumentos em prol da ortomolecular. Não estou chamando ninguém de burro, até porque se estivesse, estaria me colocando no mesmo pacote. Eu já caí nisso uma vez.

Há quase uma década atrás, eu tive um problema chato de pele. E é claro, honrei a teimosia masculina demorando para ir buscar um tratamento. E, botando a mão na consciência, só o fiz mesmo porque era no meu braço, muito visível, o que me atrapalhava em basicamente todas as interações sociais. Mas como desgraça pouca é bobagem, era um problema de pele raríssimo que ninguém descobria o que era, procurei desde clínicos gerais até dermatologistas, tomei um monte de remédios… e nada. Não ia morrer por causa disso, mas era algo muito chato de conviver.

Recebi a indicação de um médico ortomolecular. Estava desesperado, e mesmo com uma pulga atrás da orelha por causa do nome, resolvi dar uma chance. Pesquisei muito por cima, vi Linus Pauling e vitaminas… ok, não deve ser nada bizarro. Tirei o dinheiro para pagar a consulta, que não era nem um pouco barata, e fui fazer minha consulta. Casa de alto padrão num bairro bom, sala de espera cheia, tudo parecia corroborar com a ideia de que eu tinha feito uma boa escolha.

Até que começa a consulta. Sou colocado diante de uma máquina bizarra que passa uma corrente elétrica do meu pé até minha mão (não se sente nada) e em alguns minutos dá um relatório de todos os elementos químicos do meu corpo. A vantagem de ser nerd nessas horas é que meu senso de perigo ativa: se essa tecnologia realmente funcionasse desse jeito, todo consultório do mundo teria algo assim. E como a máquina tinha uma cara de algo feito nos anos 80, 90 no máximo… tinha algo estranho ali. Eu já tinha ouvido falar de bioimpedância, mas era sobre definir massa magra e gordura no corpo, não a quantidade de cádmio ou vitamina D no seu corpo.

Segue uma explicação bizarra sobre a minha vida baseada nos resultados daquele exame que não parecia ter base científica alguma. Mais uma vantagem de ser nerd: eu sei reconhecer leitura fria. Leitura fria é uma tática de médiuns e charlatões do tipo onde eles vão jogando iscas para a pessoa ir completando as informações. Sabe quando o médium que diz que fala com os mortos pergunta se tinha “uma mulher muito importante na sua vida”? Eu me fechei na hora e não dei munição nenhuma. O curioso é que o “médico” teve que se virar, e começou a dar chutes e mais chutes, algumas coisas no alvo, outras totalmente sem sentido pra mim. Sentindo que eu não estava ajudando, até tentou dizer que pelos resultados eu deveria ter muita potência sexual… o que provavelmente diz quando sente que precisa ganhar um homem que está perdendo a paciência com a consulta. Naquele momento ele havia se tornado transparente. E eu estava puto da vida por ter gastado tanto dinheiro na consulta.

E quando eu achava que não podia ficar pior, ele me diz que o tratamento era equilibrar os elementos do meu corpo com… está pronto para ler isso? Com FUCKIN’ homeopatia. Ele ia reequilibrar meus elementos com soluções homeopáticas! Além de ignorar totalmente o problema de saúde óbvio que eu tinha, que estava diante dele no meu braço estendido sobre a mesa, ainda tenta me empurrar uma receita caríssima de vários remédios homeopáticos? Saí dali muito puto, sem nenhuma ideia de como tratar meu problema, e mais pobre.

Já que eu abri o tema: algumas semanas depois depois eu achei uma dermatologista com 40 anos de experiência que precisou de umas 20 consultas e o esgotamento da literatura médica conhecida para achar a solução. Estava quase achando que teria uma doença com meu nome, mas eu só estava sendo hipster com uma doença de pele que já tinha saído de moda há décadas. No final das contas, a medicina de verdade resolveu meu problema. Hoje em dia o meu único problema de pele é a presunção de opressor.

Voltando à ortomolecular: eu sei que não é assim que todos os que trabalham nessa especialidade lidam com as coisas, mas é um bom exemplo de como ela não anda em boas companhias. Como não há comprovação científica do funcionamento desses tratamentos de reposição ou megadosagem de vitaminas e minerais, por mais sentido que as ideias de Linus tivessem, a ortomolecular não pode ser considerada medicina de verdade. É aí que fica aberta a porta para todas as outras bobagens de medicina alternativa: o que é uma homeopatia para quem já trabalha com algo que comprovadamente não funciona?

Normalmente eu estaria aqui dizendo como o tratamento alternativo não tem nenhuma base lógica científica, mas esse não é o caso da ortomolecular: o buraco é muito mais embaixo. Um cientista de alto nível como Linus Pauling não sairia de uma base mística sem sentido. Mas isso não quer dizer que a “medicina” ortomolecular vai entregar resultados. Primeiro porque um experimento científico é sobre os dados coletados, não sobre a hipótese. Tem muita ideia que parece perfeita em tese, mas na prática dá errado. Em tese, achar que já sabíamos o suficiente sobre o funcionamento do corpo humano para conseguir equilibrar os elementos químicos que o compõem não era uma má ideia. Na prática, é absurdamente mais complicado: falta muito para conseguirmos entender exatamente o que influencia no quê com o grau de precisão necessário para a “medicina” ortomolecular funcionar mesmo.

A ideia de Linus estava uns 200 anos à frente do seu tempo, pelo menos. Eu estou tomando muito cuidado de não bater diretamente nele porque eu jamais o culparia pelo charlatão que desperdiçou meu tempo e dinheiro naquela consulta bizarra: o problema não era a hipótese lançada pela ortomolecular, o problema é a prática. Na prática, os testes sérios demonstram que seus tratamentos não geram mudanças reais na taxa de cura de qualquer doença. O que acontece, e muito, é um falso positivo baseado nas sugestões de melhorar a dieta e fazer exercícios. Claro que isso melhora a saúde das pessoas, é algo comprovado. Agora, tomar doses de elementos químicos aleatórios para equilibrar algo que nem se sabe direito como funciona não é ciência.

Linus pode até ter achado um caminho na medicina, mas não deu certo até hoje. Talvez a tecnologia do futuro permita isso, talvez não. O problema não é a ideia, o problema é a quantidade de gente que entrou nessa profissão e cobra caro de muita gente até hoje por tratamentos sem comprovação científica. A partir do momento que você se presta a aplicar uma modalidade medicinal sabendo que nenhum estudo sério suporta a conclusão de eficácia, você está trabalhando com charlatanismo. E é por isso que eu coloco a ortomolecular no mesmo balaio das outras pseudociências nesta semana temática: não se pode confiar em alguém que escolheu cobrar dos outros e prometer curas com algo que não funciona. Tem algo de errado com a pessoa, ou é ignorância (péssimo no seu médico) ou é ganância (igualmente péssimo).

Nem sempre vai ser fácil perceber o golpe. A minha “sorte” foi que o charlatão que me atendeu era tão desesperado para arrancar dinheiro que colocou uma homeopatia junto para vender água por preço de ouro. Eu estava desconfiado, mas só consegui ignorar totalmente a validade dele como profissional quando algo tão bizarro foi colocado no pacote. Talvez eu tivesse dado o benefício da dúvida, talvez eu não tivesse encontrado a médica de verdade que resolveu meu problema…

Eu não vou dizer o nome desse médico porque 1) não lembro mais, e 2) porque não é um problema específico: não vá em médicos ortomoleculares em geral. Não é reconhecido pelos conselhos médicos por um motivo.

Linus, descanse em paz (morreu de câncer), você sempre vai ser um herói na história da ciência (até alguém cismar que você era racista, machista, etc.), mas nessa parte da medicina, não deu não.

Para dizer que se fosse um texto normal dizendo que funciona você teria acreditado sem pensar meia vez, para dizer que a ciência só é confiável porque erra, ou mesmo para dizer que medicina não pode ter aspas: somir@desfavor.com


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