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Tiktokalização da economia – Parte 2

Tiktokalização da economia – Parte 2

| Somir | | 32 comentários em Tiktokalização da economia – Parte 2

No capítulo anterior, o foco era como enxergar diferentes redes sociais como alegorias de uma economia em processo de transição da Era Industrial para a Era da Informação: o tipo de conteúdo consumido e produzido por gerações diferentes reflete a forma como se enxergam inseridas nessa realidade. Hoje, a ideia é seguir em frente… do jeito que der.

Desde que a humanidade é humanidade, os mais velhos passam o controle do mundo para as novas gerações. Um processo inevitável que dá sangue novo para as estruturas sociais das quais dependemos e permite que se mantenham em constante evolução. Tudo o que consideramos como direitos básicos hoje em dia não foi nem um pouco básico na maior parte da história humana. E, é claro, isso não é resultado só das pessoas ficando mais “boazinhas” com o passar dos séculos, é um resultado benéfico de processos mais eficientes para tratar das nossas necessidades básicas.

Produzir mais foi se tornando sinônimo de avanço social. Quando sua plantação começa a entregar mais comida do que sua família precisa, começam a surgir novas oportunidades. Talvez um dos seus filhos possa aprender outra profissão, afinal, ele não precisa mais trabalhar na produção do próprio alimento. Antes que eu gaste dez parágrafos contando a história da economia humana até aqui, vamos estabelecer apenas que até pouquíssimo tempo atrás ser mais produtivo criava um efeito em cadeia na sociedade que ajudava progressivamente mais gente a melhorar de vida.

A mentalidade que moldou a sociedade humana moderna foi essa: seja mais eficiente e melhore o mundo. Foram séculos e séculos lutando para tirar gente do campo e torná-las especialistas nas mais diversas áreas de conhecimento e produção. Evidente que é uma generalização que não considera a infinidade de abusos contra a classe trabalhadora, mas os números não mentem: no final do século passado todo mundo vivia mais e tinha mais liberdade que em qualquer outra época da nossa história. Muita gente pagou o preço individualmente, mas todos colhemos os frutos dessa evolução.

Mas nessa sanha evolutiva, algo deu… certo demais. Se o ser humano acreditava que mais eficiência significaria mais qualidade de vida, o computador era a resposta de todos os problemas. Praticamente todo o nosso processo produtivo podia ser melhorado imensamente com o poder de processamento dessas máquinas. Com a experiência de produção e a abundância de energia e recursos, vivemos uma explosão de complexidade e resultados espetaculares se empilhando ano após ano.

E aí, o jogo começou a virar: mais eficiência começava a causar mais problemas. A ideia de que todo mundo tinha alguma função no mundo começou a caducar junto com os processos antigos de produção. Mas até os últimos anos do século XX, ainda acreditávamos que uma economia composta de bilhões de pessoas era grande demais para nos falhar. Só que ela já começava a dar sinais de fadiga: profissões desapareciam, indústrias se instalavam em países asiáticos com leis trabalhistas mais brandas, novos hábitos e tecnologias criavam uma demanda de profissionais para os quais escolas e faculdades não tinham preparado ninguém…

E é nesse momento que a geração dos millennials começa a fazer senso do mundo dos adultos. Eu sei por que vivi isso: em menos de uma década, profissionais excelentes viraram dinossauros vagando perdidos ao redor da cratera causada pelo meteoro da internet. Alguns foram vaporizados imediatamente, mas muitos estavam perto o suficiente de alcançar cargos gerenciais, e foi essa sua corda de salvação. E aqui, a minha teoria da conspiração: mais ou menos nessa época, o Marketing começou a virar um ramo muito lucrativo, com várias empresas montando equipes e gastando os tubos para se adequar à aparente obrigatoriedade de ter esses profissionais no time. Não é curioso que assim que muitos especialistas com muito tempo de empresa se tornam praticamente inúteis na linha de produção, todo mundo precisa ter um departamento de Marketing? Quando começou a ficar meio na cara, veio a febre da Administração… claro que são coisas importantes na empresa, mas eu ainda acho que a função de cabide de emprego de quem não entendia de computador foi o fator determinante para a popularização.

E eu não queria perder tempo alguns parágrafos atrás… ok, de volta: os millennials encontram um mercado que está com portas abertas para funções que ninguém os ensinou a preencher, e uma massa de ocupantes em outras funções mais clássicas que não tinham mais pra onde correr. A concorrência por “empreguinho” foi para as alturas. E com o processo de concentração de renda acelerando ao mesmo tempo que o êxodo rural batia recordes, tudo o que era relativamente barato para seus pais e avós começou a ficar proibitivamente caro. Complicado achar emprego e praticamente impossível pagar um aluguel… e ainda nos perguntamos por que tanta raiva em redes sociais…

Ficamos tão bons em tornar processos produtivos mais eficientes que os ricos começaram a ficar muito ricos. Tão bons que o número de empregos que alguém pode ter sem estudo não cobrem mais a taxa de reposição de pessoas no mundo. E não é um processo que pareça ser reversível: a tecnologia vai acelerar esse processo até algo mais forte a estagnar. Vejam bem, eu não estou falando isso de forma tão pessimista assim, pode ser que seja apenas uma fase complicada de transição e consigamos chegar num mundo pós-escassez que vai fazer um alto padrão de vida de 2020 parecer violação séria dos direitos humanos em comparação futura. Não perdemos nem ganhamos ainda, estamos no jogo.

E é com essa incógnita que crescem os usuários do TikTok. Sim, voltamos para ele. Com base na tecnologia atual e o que está sendo estudado e testado, não podemos ignorar a possibilidade de uma espécie de singularidade tecnológica (uma aceleração tão rápida do desenvolvimento que é impossível prever como vai ser) pelo menos durante a vida deles. Mas prever tecnologias futuras costuma ser furada, meu carro com certeza ainda não voa… vamos trabalhar com o que podemos depreender da situação atual.

A favor dessa nova geração está o fato de já serem imunes à esperança de uma vida adulta do século XX. Pouca gente está criando esses jovens para formar uma família de 2.5 filhos, morar em casa própria e ter um emprego pra vida toda. Não vão ter o mesmo choque da geração anterior. Já é um bom começo. Mas, contra essa geração está o fato de que seja lá que processo começou no começo desse século, ainda não estabilizou. O mercado de trabalho não abriu, e os millennials ainda começaram a ressuscitar tecnologias e profissões para ter algo o que fazer. Ser “hipster” não foi só uma moda, foi um movimento econômico necessário.

É meio que nem naquele filme “O Poço”: a noção antiga do mercado de trabalho foi consumida pelos mais velhos, os millennials pegaram o resto, e ninguém colocou mais comida na plataforma até agora… então, está na hora de ser criativo. Olhar para o mercado e ver quem você pode substituir de forma mais agressiva ou mesmo desenvolver ramos completamente novos para produzir valor. Alguns millennials acertaram nisso e fizeram a vida com redes sociais e aplicativos. Só que eventualmente as coisas mais óbvias acabam sendo feitas: criar uma nova rede social ou um aplicativo que entrega outra coisa é forçar a barra num mercado cada vez mais saturado.

Mas assim como a maioria dos millenials acabou não bolando nada de tão impressionante assim, é de se presumir que a geração Z não fuja tanto assim do padrão. Cada geração forma um número limitado de inovadores de sucesso, não é culpa do ano que a pessoa nasceu, é só uma realidade do desenvolvimento médio humano. E é aqui que eu volto para revisar aquela ideia de que esses jovens terão que ser criativos: é meio escroto exigir que uma pessoa média tenha que pensar fora da caixa para sobreviver. Não é essa humanidade que construímos, e não é esse tipo de Lei da Selva intelectual que deve ditar o nosso rumo. O mundo ainda precisa acomodar gente que não é completamente incapaz de contribuir com a sociedade, mas que também não vai fazer nada de muito chamativo durante a vida, afinal, somos a maioria esmagadora. O que fazer com o cidadão médio dessa nova geração?

Aqui, voltamos para o final do texto passado: se o TikTok demonstra como essas novas gerações já parecem nascer sabendo que precisam fazer um show para encontrar seu valor na sociedade, sites como o Only Fans são um dos sinais do que pode acontecer com eles com o passar dos anos. Only Fans é uma espécie de rede social onde você paga para seguir uma pessoa, não é a primeira vez que fazem isso, mas é um dos projetos de maior sucesso na área até hoje. E se você está se perguntando quem pagaria para seguir uma pessoa na rede social, aposto que você vai entender tudo quando eu disser que as pessoas mais populares na plataforma são mulheres atraentes que postam conteúdo erótico ou pornográfico para uma legião de homens sedentos.

Ao invés de trabalhar para uma empresa que filma cenas e vende para os consumidores, essas mulheres (e homens também, mas sabemos que continua sendo uma maioria esmagadora de homens que consome do mesmo jeito) viram sua própria produtora, e com um contato mais próximo com seus clientes, podem até mesmo adequar o material aos pedidos deles. E isso não acontece por ganância das modelos de cortar o intermediário, a própria indústria da pornografia começou a afundar por “excesso de eficiência”. Produziam tanta coisa tão rápido, competiam tanto que o mercado saturou, e com boa parte do mundo filmando por conta própria material do tipo para distribuir (intencionalmente ou não) de graça para todo mundo, o mercado teve que mudar. Se um vídeo gravado no celular num banheiro vende pelo mesmo preço que uma produção completa de grandes empresas, o incentivo vai diminuindo. Isso vai mais longe ainda, considerando que esse povo paga mensalidade para essas atrizes/modelos também por se sentirem mais próximos delas. Vivemos em tempos solitários…

Quando eu vejo vídeos do TikTok, não deixo de pensar que é uma espécie de curso profissionalizante do Only Fans. Não acho que vamos ter uma maioria de pessoas produzindo pornografia profissionalmente, mas é certeza que a repressão social vai diminuir o suficiente para que as barreiras de entrada ficarão cada vez menores. Quem melhor do que uma jovem de 18 anos para achar que vai produzir pornografia na internet e sair na hora que quiser sem nenhuma repercussão? Vai ser uma máquina de moer mulheres… e homens. Homens que vão achar natural formar uma relação de longo prazo completamente não correspondida como se fosse mais uma assinatura de serviço de streaming.

Mas é tudo sobre sexualidade e pornografia? Não, é uma parte do quebra-cabeças. Se eu falo das “trabalhadoras do sexo” do Only Fans, é por ser uma extensão visual óbvia da estética e da linha de comunicação do TikTok, mas isso vai muito mais fundo: quando você cresce acreditando que precisa ser uma marca e gerar valor através dela, deixa de se entender como parte de uma comunidade. Eu desconfio que vamos ver uma era de cidadãos-empresa, com todo o treinamento de marca das redes sociais e o desespero de dar de cara com um mercado de trabalho onde ninguém quer passar o bastão para a próxima geração. Vocês acham que os bilionários de hoje vão largar o osso? Que os idosos que foram obrigados a voltar a trabalhar (ou que “infelizmente” ainda estão saudáveis demais para parar) vão voltar para seus cantos? Que toda a indústria de profissões imaginárias dos millenials (chefe de departamento de diversidade, barista, etc.) está disposta a se aposentar antes da hora?

O cidadão-empresa é a solução para essa situação. O cidadão-empresa se enfia em qualquer canto que couber e tira seu sustento de quem der atenção para ele. Eventualmente, se alcançarmos uma massa crítica de pessoas vivendo assim, a economia pode ser balanceada levando em conta o valor gerado por conteúdo gerado por essa gente toda. E não precisa ser vídeo pornográfico, pode ser só um stream jogando um jogo, um canal de YouTube, e se a pessoa não tiver potencial para desenvolver uma carreira nesse sentido, eu temo que até mesmo coisas como amizades podem começar a ser monetizadas de forma agressiva. O cidadão-empresa tem que ganhar dinheiro para interagir com outros cidadãos-empresa.

Porque não é muito provável que mais profissões de baixa complexidade comecem a ser criadas. Tudo o que um robô ou um software podem fazer vai acabar sendo feito por um robô ou um software. E nem precisa de um salto tecnológico grande para matarmos boa parte das profissões da indústria e do comércio, só não é economicamente viável ainda. Mas, como eficiência ainda é a meta final, eventualmente vai ser. Quem quiser se adaptar a isso tem que saber trabalhar com máquinas e programas ou se adaptar bem à prostituição (sexual, emocional, seja lá o que seja necessário) de relações humanas sob a constante pressão de sobreviver num mundo cada vez mais desigual.

E não como se eu fosse um visionário falando disso, muito mais gente percebeu. Especialmente aqueles que precisam prever os próximos passos da economia global para continuar na frente. E não precisamos ir mais longe que o próprio TikTok para isso: espionar os hábitos dos usuários do aplicativo e compilar dados sobre o que é popular ou não pode dar uma janela para esse futuro. Se a China faz isso mesmo eu não sei, mas não seria uma anomalia tão grande assim, especialmente se você tem vantagens ao manipular dados. Saber o que é popular entre essa nova geração pode ajudar a criar celebridades alinhadas com sua causa, reconhecer ameaças rapidamente e preparar o terreno econômico para incentivar ou desencorajar conteúdo produzido por milhões de produtores de conteúdo compulsivo como é bem provável que vejamos na próxima década.

Da próxima vez que ouvir alguém falando de Renda Básica Universal, lembre-se deste texto. A economia global está indo para um lugar que pode ser muito problemático para a própria noção de humanidade. Claro que não é a única solução possível, é só um exemplo de pauta política que pelo menos se adianta ao perigo de uma era de cidadãos-empresa que podem muito bem tornar relações humanas em negócio numa escala nunca antes vista. É muito por isso que eu sempre escrevo sobre o terror que é viver polarizado entre direita ou esquerda: são modelos baseados num mundo que já veio e já foi. Tem um mundo novo se formando onde a maioria de nós ainda vai viver. As meninas rebolando no TikTok já viram isso, mas e quem diz que se preocupa tanto com as futuras gerações? Está vendo o quê, a bunda delas?

Se for, aproveita enquanto é de graça.

Para dizer que só eu para falar de um site pornô e te deixar entediado, para dizer que agora sim perdeu a fé na humanidade, ou mesmo para dizer que é tudo culpa deles (seja lá quem for): somir@desfavor.com


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