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O caso Suzy

O caso Suzy

| Sally | | 46 comentários em O caso Suzy

O assunto estará morto e enterrado até sábado, portanto, como não vai render um Desfavor da Semana (Coronavírus monopolizando os temas), vamos falar sobre ele hoje, o caso Suzy.

Para quem não sabe, um programa da Globo fez uma reportagem sobre a solidão das pessoas trans presas, mostrando a dura realidade e abandono que muitos enfrentam. Uma delas, um travesti que responde por Suzy, comoveu o espectador. Sem receber visitas há oito anos, ela conversou com o médico Drauzio Varella, que lhe deu um abraço em uma matéria bem piegas.

A história comoveu muitas pessoas. Escolas fizeram com que crianças enviem cartas com desenhos e demonstrações de carinho para Suzy, pessoas se comoveram e enviaram cartas de apoio, fizeram inclusive uma vaquinha para arrecadar dinheiro para Suzy. Uma corrente de compaixão e amor como poucas vezes se viu. A reportagem foi bem tendenciosa, dando a entender que as pessoas fazem questão de marginalizar trans, contando o quanto elas são vítimas de preconceito. Nas redes sociais, terra dos Lacro Land, o discurso foi ainda mais exacerbado. Coisas como “o crime de Suzy foi ser negra, pobre e trans”.

Em algum momento, no meio dessa comoção (não foi apenas lacre, o povão de fato se comoveu), veio à tona o motivo pelo qual Suzy estava presa. Curiosamente, foi uma instituição lacradora que foi acionada para ajudar a tirar Suzy da cadeia e disse “não, obrigada”, pois não queria arcar com a repercussão que isso geraria, por causa dos crimes que ela cometeu. Foi aí que as pessoas começaram a se perguntar qual crime ela teria cometido, para que instituições lacrantes não queiram se envolver com ela.

Suzy sequestrou um menino de 9 anos que morava na sua vizinhança. O levou para sua casa e o estuprou de diversas formas, das quais eu vou poupá-los, mas os detalhes estão públicos no processo, que foi divulgado. Quem quiser procure e leia com riqueza de detalhes todas as atrocidades cometidas. Depois de uma rodada de estupros variados, Suzy estrangulou o menino de nove anos e o matou lentamente por sufocamento. Não contente, manteve seu corpo em sua casa por dias. Quando o corpo do menino começou a apodrecer, Suzy o deixou na porta da casa dos pais da criança.

Obviamente o telespectador ficou muito irritado ao ter ciência destas informações e se sentiu traído pela forma como a Globo apresentou o caso. Começaram a surgir críticas contundentes. As pessoas ficaram putas por “gastar” sua comoção, simpatia e compaixão com alguém que, do ponto de vista delas e social, se convencionou que não merece.

E aí, o pessoal da bolha começou a atacar quem criticava Suzy, o programa e o médico Drauzio Varella, dizendo que era transfobia. Complicado. A reportagem fez parecer que por ser trans a pessoa foi marginalizada e acabou presa e isolada do convívio social. Porém, ao que tudo indica, ninguém se afastou de Suzy por ela ser trans e sim pelos crimes hediondos que ela cometeu, e que de fato afirma que cometeu. Não é algo imputado a ela, é algo que ela admite. E foram esses atos que provocaram rejeição social.

Então, pouco importa se era hétero, branca, alien, azul. Pedofilia e assassinato são crimes severamente repreendidos na sociedade atual. Pedófilos brancos, pretos, roxos ou verdes sofrem severa rejeição. Talvez sejam os dois crimes que mais provocam a ira do povo, sobretudo quando cometidos com requintes de crueldade. Qualquer pessoa, de qualquer cor, credo ou orientação sexual sofreria rejeição.

Não que trans não sejam vítima de preconceito, certamente são. Mas essa, em específico, sofreu abandono de parentes e amigos por estuprar e matar um menino de forma cruel e violenta, não por ser trans como se insinuou. E, ao enganar o público desta forma, fazendo-o acreditar que Suzy era uma vítima do preconceito, o espectador se sentiu traído.

Com isso, a Globo reforçou a ideia de que não temos que ter compaixão por ninguém, que quem está preso tem mais é que se foder pois deve ter feito algo horrível e que trans são mesmo criminosas. Não sinta compaixão, você vai se arrepender, algo horrível da pessoa vai vir à tona! Para conseguir audiência, a Globo prestou um enorme desserviço a todos, inclusive às trans. Uma pena que um sentimento tão bacana se amor e perdão tenha saído pela culatra e voltado com o dobro de intensidade na forma de ódio. Parabéns aos envolvidos.

E aí, como costuma acontecer no Brasil, quando a merda fedeu, reviraram a merda mais, mais e mais, até ela ficar dez vezes mais fedida. O brasileiro médio obviamente ficou com ódio do Drauzio Varella, da Globo, da Suzy e de todas as trans. Como mecanismo de defesa, se voltou para o outro lado da moeda: se o que se pretendia apresentar era que trans eram vítimas, agora eles decidem acreditar que trans são sempre vilãs. Trans, presos ou qualquer grupo marginalizado: demonstre compaixão e você vai se arrepender, pois essas pessoas não merecem. Isso é um retrocesso social horrendo.

Drauzio Varella, por sua vez, emitiu um comunicado dizendo que ele é médico, não juiz, e que prefere não saber dos crimes que as pessoas que ele atende cometeram, para não comprometer sua imparcialidade. Ou seja, Drauzio Varella meteu no cu da Globo, pois, se ele não sabia (spoiler: sabia sim), a culpa é toda da Globo que pintou Suzy como uma vítima da sociedade e não como um predador sexual de crianças. Para quem acha este senhor um ser de luz, tenha em mente a saída covarde que ele fez pela tangente.

O pessoal do lacre também não decepcionou. Além da repetição da frase “o crime de Suzy foi ser negra, pobre e trans” ficaram marretando outras frases escrotas, daquelas que garantem a eleição da família Bolsonaro até o ano 3000. Inclusive começaram a comer estranhos no esporro dizendo que “não interessa qual crime ela cometeu, o importante é que ela seja tratada como ELA, pois trans tem o direito de ser chamada pelo pronome feminino. Sim, sim. É ISSO o importante. Meu anjo, a criatura sequestrou, estuprou e matou um menino de 9 anos, jura que é isso que você acha importante defender?

A família tradicional brasileira rebateu a lacração contumaz com “bandido bom é bandido morto”, “pedófilo tem que ser torturado” e muitas outras frases de efeito no mesmo estilo. Todo mundo bateu na Globo, como sempre, e a Globo, como sempre, não se desculpou e continua com índices de audiência ótimos, muito obrigada.

A pancadaria em redes sociais só serviu para uma coisa: para fomentar a polaridade, para criar lados inimigos que se odeiam e se agridem. Não surgiu um bom debate, socialmente produtivo, dessa babaquice lastimável que a Globo fez. Como sempre, surgiram dois lados extremistas, cada um deles gritando que tem razão e que o outro é burro, sem refletir por um segundo. Ou seja, mais uma vez a mídia fomentando a discórdia e mais uma vez o povo burro mordendo a isca.

Sabe o que seria um bom debate? O que fazer com essas pessoas. Pedofilia é uma doença, portanto, a pessoa não escolhe ser assim. Não é uma preferência. Não é uma questão de força de vontade. Não é de sacanagem para ferrar com a vida de uma criança. É uma compulsão contra a qual nem sempre a pessoa pode lutar. Faz o que? Prende? Mais cedo ou mais tarde vai ter que soltar e essa doença não tem cura, sai com a pessoa do presídio. Parece uma boa saída?

Também teria sido muito legal discutir o quanto o sistema penitenciário brasileiro se propõe a ressocializar o preso, mas não ressocializa. Com isso, se coloca o preso na rua muito antes do cumprimento total da sua pena, presumindo que ele está ressocializado, ou seja, soltam monstros na sociedade. Não seria o caso de admitir que o Brasil fracassou na ressocialização e instituir um sistema apenas punitivo? Não há capacidade de ter um sistema que ressocialize, assim como não há capacidade de ter nada de primeiro mundo aqui. Não seria melhor um retrocesso (o sistema meramente punitivo é de fato mais atrasado), porém mais realista e viável quando pensamos na realidade igualmente atrasada do Brasil?

Outro tema interessante: o jovem emocionado que fica gritando “Globo lixo” e, horas depois, está comentando o BBB. Quando a gente acha algo um lixo, não consome. Se consome, melhor calar a boquinha se achar um lixo, pois depõe contra você bradar aos quatro cantos que consome lixo. É como aquela pessoa que fala mal do próprio parceiro, a torto e a direito. Só a própria pessoa se queima com isso. Entretanto, o povo tem uma flexibilidade moral espantosa: Globo lixo, mas vou continuar assistindo. Tá faltando vergonha na cara, minha gente.

Também seria bacana que a Globo sinta que, ao enganar o telespectador dessa forma, pintando uma história comovente de discriminação e exclusão social por ser negra pobre e trans, quando na verdade o real motivo foram crimes bárbaros, ela perde audiência. Pois bem, aconteceu justamente o contrário: ela ganhou audiência. Tudo aquilo em que você coloca seu foco, expande. Mesmo que seja para falar mal. Não gostou? Toca sua vida, nunca mais vê, nunca mais fala a respeito. As pessoas precisam entender de uma vez por todas que falar mal é promover quem quer que seja: Globo, Lula, Bolsonaro… e parar de fazer publicidade gratuita para seus desafetos.

Mais um assunto que renderia um bom debate: aqueles que pregam que erros devem ser perdoados, crimes devem ser perdoados e que solidariedade e compaixão não podem ser seletivos, estão prontos para perdoar a lavagem de dinheiro dos filhos do Bolsonaro? Pois é, se compaixão com crime não pode ser seletiva, tem que perdoar TODO MUNDO. Seguem seu próprio discurso? Não seguem. São hipócritas.

Muitos chegaram ao cúmulo de dizer que se você não viu o crime acontecendo, não pode condenar Suzy, pois podem haver erros no processo (além de Suzy confessar o crime, diversos familiares seus também confirmaram). Os mesmos que por muito pouco ficam berrando que Bolsonaro matou Marielle. Aí eu te pergunto: se Eduardo Bolsonaro fosse preso sob acusação de estuprar e matar um menino de nove anos, essas pessoas teriam compaixão e diriam que não pode condenar a menos que você veja o crime? Coerência. Ou todo mundo merece o benefício da dúvida, ou ninguém merece.

Não vou entrar no mérito sobre se devemos ter compaixão e solidariedade com criminosos, não é esse o objetivo do texto. O ponto em destaque é: sagrado direito seu ter ou não ter compaixão, mas tem que valer para todos. Ou não julga ninguém ou julga a todos. Ou um governo pode matar as pessoas por seus motivos (estilo Cuba e seu paredão de fuzilamento ou Hitler) ou ninguém pode. O que não dá é achar que quem comunga com a sua ideologia pode tudo e quem não comunga não pode nada. “Se matar tal grupo pode, se matar este outro grupo não, aí é imoral”. Não dá. Isso é pensamento de criancinha de cinco anos de idade. Adultos devem ser capazes de compreender e colocar em prática o conceito de coerência.

Por fim, o último grande desfavor dessa tsunami de bosta: faz parecer que todos progressistas, que todos esquerdistas, que toda a oposição é a favor de quem estupra e mata um menino de nove anos e que é isso que vai acontecer em larga escala se a oposição subir ao poder. Nesse ritmo, a família Bolsonaro se elege até o próximo século. Não dá para não imputar responsabilidades a uma pessoa pelo simples fato dela ser trans. Aconteceu uma coisa grave, que se você condenaria em um branco hétero, tem que condenar em uma trans também. Não é sobre quem faz, é sobre o que se faz.

Imagina o alvoroço das Tias do Zap quando essa notícia e os comentários da lacrolândia defendendo Suzy forem divulgados. Quando os comentários mariadorosarianos de políticos de esquerda dizendo que Suzy é uma vítima da sociedade foram divulgados. Minha Nossa Senhora da Bicicletinha, calem a boca! Não cansam de ser cabo eleitoral do Bolsonaro não? Se não por coerência, calem a boca por estratégia!

Enfim, a merda está feita, está fedendo e todos nós somos obrigados a cheirar. Suzy ganhou uma polpuda vaquinha em dinheiro, deve estar esfregando as cartinhas e os desenhos das crianças no pau e o povo está cada vez mais convicto que a melhor dinâmica social é o ataque e a defesa. Só piora. Parabéns aos envolvidos.

Para dizer que este texto é transfóbico, para dizer que este texto passa pano para trans ou para dizer que acha tudo muito bem feito para todos: sally@desfavor.com


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