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O Grande Salto Adiante.

O Grande Salto Adiante.

| Somir | | 18 comentários em O Grande Salto Adiante.

A China é hoje a segunda maior economia do mundo, e a maior exportadora por uma larga margem. São trilhões de dólares que enchem os olhos de qualquer capitalista, mas que tecnicamente são resultado de um governo comunista. Considerando que o país vive sob o controle de um partido único – o Partido Comunista Chinês – desde 1949, alguma coisa eles devem ter feito certo… certo?

A Segunda Guerra Mundial terminou para a maioria dos países em 1945, mas a China ainda tinha coisas para resolver: comunistas e nacionalistas, que tinham uma aliança pra lá de tênue contra os japoneses, explodiram em conflito assim que a ameaça nipônica foi neutralizada. Durante quatro anos, as duas frentes disputaram o controle do país. Spoiler: os comunistas venceram. E foi durante esses anos de guerra, primeiro contra os japoneses e depois entre os próprios chineses, que surgiu a figura de Mao Tsé-Tung. Líder militar no começo, é nomeado líder do Partido Comunista Chinês e primeiro presidente da República Popular da China.

Após uma daquelas tradicionais campanhas de consolidação de poder de ditadores, vulgo extermínio em massa de dissidentes, Mao começa a colocar em prática suas ideias de como desenvolver o país. Como de costume em regimes comunistas da época, a ideia era criar planos grandiosos de cinco anos. O primeiro que ele realmente chama de seu é o Grande Salto Adiante. Assim como na União Soviética, a maior parte da população estava no campo como agricultores de subsistência que eventualmente vendiam o excedente. A ideia do Grande Salto era gerar um processo de industrialização e desenvolvimento agrícola em tempo recorde.

Num processo gradual, um pouco menos agressivo que o feito por Stálin, a propriedade privada é abolida e todos aqueles agricultores são colocados para trabalhar para o Estado. Uma parte continuou nas áreas rurais vivendo em cooperativas forçadas sob controle total do Partido Comunista, outra foi enfiada dentro de fábricas apropriadas pelos comunistas nas cidades, e outras construídas a toque de caixa para acomodar a demanda. Mesmo naquela época, a população chinesa já era enorme: estamos falando de milhões de pessoas sendo jogadas dentro de fábricas de uma hora para outra. E pior: gente que entendia de agricultura.

No campo, uma população reduzida tinha metas brutais de produção, com venda compulsória para o governo de até 30% de sua safra. Nas cidades, fábricas guiadas por pessoas inexperientes passavam mais tempo paradas por falta de técnicos do que funcionando. Mao achava que dava para usar sua população gigante para avançar o país na força bruta. Se a história tomasse outro rumo aqui, com Mao percebendo que não ia dar certo, dava até para perdoar. Governantes erram. Mas a história não toma outro rumo, ela vai exatamente para onde você está pensando:

Não só Mao bate o pé no seu plano furado, como ainda cria situações que se não fossem trágicas, seriam hilárias pelo grau de incompetência:

Agromisticismo: cego pela ideologia, Mao resolve que o país deve seguir os ensinamentos de Trofim Lysenko, um “agrônomo” e “biólogo” soviético com grande influência em sua terra natal. Lysenko tinha das piores ideias já vistas sobre agricultura no mundo, e era tratado como um charlatão pelo resto da comunidade científica. Mas era queridinho de Stálin. Negador da genética e proponente de uma visão quase que mística da agronomia, foi usado como autoridade pelos chineses na hora de modernizar sua agricultura. Lysenko misturava ideologia comunista com processos biológicos, e fez com que a pesquisa de genética na União Soviética fosse proibida por muito tempo.

Ele dizia que o certo era plantar as sementes muito próximas umas das outras, porque acreditava que não haveria competição entre a mesma espécie. Os chineses fizeram isso, e a produção caiu imediatamente. Outra teoria de Lysenko era que a terra deveria ser arada muito mais fundo do que se fazia habitualmente, achando que o solo era ainda mais fértil de acordo com a profundidade. Os chineses seguiram suas ideias e descobriram que puxar solo morto, pedras e areia pra cima do solo fértil era uma péssima ideia.

Quatro pestes: Mao queria aumentos na produção agrícola, e do alto da sua sabedoria, mandou seu povo matar os seres que comiam as plantas e os grãos: ratos e pardais. As outras duas pestes eram mosquitos e moscas, por motivos de saúde. A parte da saúde até que é razoável, mas a parte dos animais que comiam as plantações…

Os chineses, muito solícitos pelo medo de desagradar o Partido Comunista, começaram a matar ratos e especialmente pardais. Foi um massacre. Os pássaros eram caçados onde apareciam e seus ninhos destruídos. A população de ratos era um pouco mais “safa” e não sofreu tantas casualidades assim, mas os pardais… o problema é que Mao não entendia nada sobre natureza: com a morte de um predador formidável como o pobre pardal, os insetos ganharam um impulso evolutivo incrível.

Então, os insetos, especialmente os gafanhotos, foram lá e destruíram boa parte das plantações chinesas. E o que sobrou, os ratos continuaram comendo, isso é, até virarem comida…

Fornalhas de quintal: a sabedoria sem fim de Mao o convenceu que um país forte precisava produzir muitos grãos… e muito ferro. A China nunca foi conhecida pela sua produção de ferro, o que complicava bastante os planos do Grande Líder. Mas ele tinha mais uma ideia para resolver tudo isso: transformar toda casa numa fundição. O Partido Comunista tirou milhões de pessoas do trabalho rural e as colocou para produzir ferro, não importava como. Os chineses, novamente, obedeceram a ordem. Pegaram tudo o que tinha ferro e derreteram nos quintais de casa. Panelas, garfos, candelabros e até ferramentas.

Resultado? Toneladas de ferro de baixíssima qualidade, que não podia ser usado para nada, e uma falta crônica de utensílios básicos para casa e para agricultura no país todo.

Junte-se a isso as demandas cada vez mais insanas do governo e os oficiais do partido mentindo descaradamente sobre a produção agrícola em suas áreas de influência (para ganhar benefícios ou para escapar de punições), e temos um cenário perfeito para uma grande fome. A natureza não ajudou, com alguns anos de tempo ruim para criar ainda mais dificuldades na agricultura local.

Como os oficiais do partido inventavam números altíssimos de produção, quando o governo vinha pegar sua parte, acabava levando quase tudo de uma safra muito mais baixa que o normal, por todos os motivos levantados anteriormente. Com os dados errados, o planejamento central do Partido Comunista estocou comida que era necessária, trocou culturas de alimentos por algodão e cana de açúcar, e começou a vender boa parte do suposto “excesso” para financiar a industrialização. Os governos locais fizeram tudo o que podiam para esconder os problemas que tinham, por medo de serem repreendidos.

Entre 1959 e 1961, estima-se que mais de 30 milhões de chineses morreram de fome. A essa altura do campeonato, os problemas já eram óbvios até mesmo para Mao, tanto que mais ou menos nessa época, ele resolve parar o Grande Salto Adiante e começar outra campanha no lugar.

Não fica claro que essa grande fome tenha sido planejada ou incentivada de forma maliciosa por Mao e o Partido Comunista, e talvez possamos culpar um pouco da cultura asiática pelo grau de insanidade visto nessa situação: nós, ocidentais, temos um pouco mais de apreço pela rebeldia. Em países como Japão e China há uma preocupação elevada com “não perder a honra” e não se destacar demais, uma noção de coletividade que muitas vezes nos encanta, mas que pode ser bem opressiva para quem está diante de uma situação extrema. A necessidade de fazer o que é esperado da pessoa pode forçá-la a tomar atitudes que sabe que são erradas só para não ganhar um destaque negativo.

Eu apostaria que muitos desses milhões de chineses perceberam as besteiras enormes sendo impostas sobre eles, mas não tinham em si a capacidade de se rebelar nem mesmo dentro da própria casa. Claro que a repressão terrível de uma ditadura recebe a maioria da culpa, mas até culturalmente era uma tempestade perfeita.

E qual é a próxima campanha depois do Grande Salto Adiante? A Revolução Cultural. Mao continuava achando que a culpa era dos burgueses das cidades, e faz com que seu povo já ferido por anos de fome generalizada comece um processo de perseguição e exposição de todo e qualquer detrator do regime comunista. O líder, nascido e criado no campo, se ressente dos intelectuais das classes mais privilegiadas, e começa a atacar as escolas. Manda fechar todas e inicia um processo de expurgo violento contra os professores, que considerava ferramentas do imperialismo.

Vale lembrar que o estilo de comunismo de Mao e Stálin proibia religiões, mas não tinha nenhum apreço especial pela ciência. Tanto que até hoje China e Rússia são antros de pseudociência e tratamentos alternativos de todos os tipos. Quando a ciência dizia algo que ia contra as crenças deles, esmagavam todos que tinham o conhecimento. Na China de Mao, as escolas ficaram fechadas por anos, mas os ex-alunos eram convidados a continuar por lá, dessa vez para presenciar e ajudar na tortura de seus ex-professores, tidos como traidores do regime. É uma geração toda de gente que foi incentivada a colocar fanatismo pelos seus líderes acima de qualquer coisa. E os melhores alunos até então receberam outro tipo de punição:

Mao acreditava que o verdadeiro conhecimento estava no trabalho braçal, por isso pegou milhões de jovens das cidades que estavam se destacando nos estudos e os enviou para o interior, para trabalhar nas fazendas. Muitas perderam todas as chances de estudar por estarem presas no que pode se considerar campos de trabalho forçado, e tantas outras morreram lá mesmo, sob as terríveis condições de vida para as quais não estavam preparadas para resistir.

O comunismo chinês não só matou muita gente por ignorância, mas também fez de tudo para arrebentar com o desenvolvimento intelectual de seguidas gerações do seu povo. Sob a “intelectofobia” de Mao, a China perdeu milhões de oportunidades de se desenvolver. Por lá, longe dos ouvidos do Partido, os chineses falam de gerações perdidas. Gente tão incentivada a não pensar por conta própria ou se desenvolver que simplesmente não tem lugar no país dos dias atuais. São pessoas que vivem às margens de uma economia em crescimento, menosprezadas pelos jovens que tiveram muito mais acesso à educação e liberdades pessoais.

A China só começa seu processo de desenvolvimento como conhecemos hoje depois da morte de Mao Tsé-Tung. E obviamente não foi um processo imediato, afinal, precisavam esperar até que as gerações que não foram destruídas pelas políticas dele estivessem em idade produtiva para que as coisas finalmente começassem a funcionar. Para quem não sabe, a China sempre foi uma das maiores ou a maior economia do mundo durante quase toda história da sociedade humana. Sofreu muito na mão dos europeus nas décadas que antecederam a revolução comunista, mas ainda sim tinham um grande poderio econômico.

O ponto mais baixo do país foi justamente o Grande Salto Adiante de Mao. E foi só quando sua influência acabou que as coisas voltaram ao normal. A China ser um gigante econômico foi a norma da humanidade por milênios, a maioria de nós pertence a gerações que aprenderam sobre o país asiático pela ótica torta da incompetência comunista durante o século XX, por isso pode parecer impressionante o crescimento do país nas últimas décadas. Não, não é novidade nenhuma, é a China voltando ao normal depois de um governo terrível. Não obrigatoriamente por causa do comunismo, mas por essa anti-intelectualidade galopante que tomou conta do país nas mãos de Mao.

São lições que valem a pena aprender, não pela ótica “comunista é malvado” que a direita moderna adora utilizar, mas pelos fatores que criaram esse desastre no país asiático. Povo que rejeita conhecimento científico e politiza excessivamente a distribuição desse conhecimento é povo que passa fome e não sai do lugar. E essa lição eu duvido que boa parte dos detratores do comunismo na atualidade tenham tirado do governo terrível de Mao Tsé-Tung…

Para sugerir os próximos ditadores da série, para dizer que qualquer coisa mata muita gente na China, ou mesmo para dizer que eu sou secretamente comunista: somir@desfavor.com


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