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Mídia esquerdista?

Mídia esquerdista?

| Somir | | 29 comentários em Mídia esquerdista?

Seguindo a sugestão de Anônimo, hoje falamos sobre como a mídia de massa influencia diversos aspectos da nossa vida rumo às ideologias de esquerda, ou… como acabamos com essa impressão. Embora exista mérito sim nessa proposição, preparem-se para mais um texto sobre como na verdade as coisas são bem mais complicadas do que parecem. É quase que um padrão, não?

Para começo de conversa, temos que entrar num acordo no que configura ser de esquerda politicamente. Estamos acostumados com a ideia de que capitalismo é de direita e comunismo é de esquerda, certo? Pois bem, essa definição não vai dar conta desta análise: você consideraria a mídia de massa chinesa como uma mídia esquerdista? Ela prega obediência ao governo e manutenção de valores tradicionais, desencorajando qualquer pensamento revolucionário. E a China é comunista! A pouca mídia de massa soviética seguia pelo mesmo caminho antes de sua derrocada. Já nos Estados Unidos, um dos sistemas mais capitalistas do mundo, tem uma mídia predominantemente liberal e combativa ao poder constituído.

Por isso, temos que voltar à definição mais antiga e mais ampla de esquerda e direita: a esquerda quer mudar a sociedade, a direita quer manter as coisas como estão. Até por isso, é melhor usarmos os termos progressista e conservador para definir essas inclinações políticas a partir de agora. Progressistas querem livrar o ser humano de seus costumes em busca de novidades que consideram positivas, os conservadores querem manter o que acreditam ser as fundações da nossa sociedade para evitar uma degeneração do nosso comportamento.

(Nota: eu sei que é mais comum chamar progressistas de liberais, mas isso gera muita confusão com o conceito de liberalismo, que é uma forma de capitalismo muito mais hardcore.)

Eu poderia passar o texto inteiro estabelecendo situações onde o que consideramos esquerda se comporta como esperaríamos da direita e vice-versa, mas acredito que ao estabelecer progressistas e conservadores aqui a coisa fique menos confusa. Esqueça comunismo e capitalismo por enquanto. Mesmo que você ache a mídia brasileira super esquerdista, há de concordar comigo que a apologia ao socialismo ou comunismo é bem limitada. Você não vai ver nenhuma novela pregando o fim da propriedade privada ou um jornal noticiando os males da burguesia. Até porque para chegar ao ponto de controlar grandes veículos de mídia, você precisa de uma quantidade obscena de dinheiro e poder. Você nunca vai ver o William Bonner denunciando o capitalismo em rede nacional…

Na verdade, o que se considera o viés esquerdista da grande mídia é na verdade uma tendência progressista no comportamento esperado do cidadão médio, especialmente em questões relacionadas à justiça social. Como partidos que se posicionam do lado do socialismo e/ou comunismo também tendem a defender essa visão mais revolucionária do comportamento, criou-se uma mistura na cabeça das pessoas sobre os conceitos. O programa de TV que te chama de nazista por criticar o cabelo de uma celebridade negra não está defendendo a revolução do proletariado, está tentando mudar seu comportamento dentro do sistema político que já existe. Lacradores também querem ficar ricos e curtir as vantagens da desigualdade social, como aliás, boa parte já faz.

Severino, 47, pai de cinco filhos, que pega quatro ônibus por dia para chegar no trabalho e sempre está com a conta no negativo do dia 15 pra frente do mês, não tem sequer energia mental para se preocupar com as dificuldades de transexuais no mercado de T.I., quem carrega essa mentalidade progressista são pessoas que enxergam vantagens pessoais nessa visão política, ou pessoas que tem desenvolvimento intelectual suficiente para enxergar os pontos onde podemos melhorar como sociedade. Esses dois grupos convivem nesse espectro progressista, mas são seres muito distintos.

Tanto que aqui no desfavor criticamos os oportunistas sem parar há mais de uma década, mas nunca nos posicionamos como conservadores. Ser conservador num país como o Brasil é passar atestado de maluco ou masoquista. Eu não sei o que conservar aqui. Corrupção? Preconceito? Ignorância? Preguiça? Não sei quem olha para o estado da sociedade brasileira atual e pensa “poxa, taí algo que eu quero conservar!”. Dá para entender na Suíça ou no Japão o desejo por mudanças mais lentas sem perder a identidade local, mas por estas bandas é duro de engolir.

Por isso minha análise não pode deixar de considerar o seguinte: mesmo que vejamos muitos imbecis aparecendo na grande mídia e imprensa, a estrutura necessária para manter esses grandes negócios depende de pessoas muito mais inteligentes que a média nacional. Mesmo que eu sofra lendo um texto do Universa, por exemplo, lá está uma pessoa capaz de escrever uma ideia minimamente coerente, por mais que eu discorde dela. Não é muita gente que consegue isso. Precisa de estudo e treinamento para montar os conteúdos que são divulgados em meios profissionais.

Não é culpa do Severino do exemplo anterior ter nascido tão pobre e nunca ter estudado o suficiente, mas na prática, ele não tem condições de escrever um artigo ou mesmo articular uma ideia de forma clara o suficiente para ser atrativo na indústria da mídia. Quem está lá é Camila, 23, vinda de uma família de classe média, com muitos estímulos intelectuais na criação, acesso a escolas razoáveis e oportunidades geradas por poder ficar próxima de grandes centros urbanos. Camila tem disponibilidade mental para se preocupar com as dificuldades da mulher negra no mercado financeiro. E embora não tenha conseguido empurrar essa pauta no telejornal para o qual faz as pesquisas, pelo menos deu um jeito de enfiar um pouco de opinião selecionando cuidadosamente as fontes usadas para a matéria sobre o aumento da violência contra homossexuais amanhã.

Camila trabalha para Pedro, 58, que não entende metade das coisas que sua equipe fala na hora do café, mas sabe que jornalista que não se adapta vira dinossauro e não tem o contrato renovado. Redator-chefe, aprendeu desde cedo que sem sua equipe não consegue entregar nada nos prazos absurdos que programas diários impõem. Pedro estudou em uma excelente faculdade e ficou amigo de vários de seus antigos colegas de classe, igualmente bem posicionados no mercado de trabalho. Um dos seus melhores amigos se revelou como transexual, ele estranhou no começo, mas logo entendeu que é bizarro que alguém ainda precise se reprimir em 2019! Pedro aprendeu que era uma bobagem ter preconceito e que era natural continuar gostando da agora amiga. Afinal, Pedro tinha subsídios para se adaptar a uma nova realidade.

O que não era o caso de Joaquim, o âncora do jornal noturno: de fala firme e postura de galã, Joaquim atropelou todos no seu caminho até o posto de maior prestígio do jornalismo da emissora. Joaquim perguntou para Pedro quem era a bichona que estava andando com ele, e ainda insinuou que dava para pegar travecos bem mais bonitos em qualquer esquina de noite. Pedro relevou, porque Joaquim poderia pedir sua demissão a qualquer momento, e também porque dos absurdos proferidos pelo âncora nos corredores da emissora, esse até que era leve.

De qualquer forma, na hora do jornal, Joaquim emprestou todo seu carisma para a matéria sobre o aumento da violência contra homossexuais, utilizando uma fonte duvidosa que Camila achou mais impactante e que Pedro deixou passar para não parecer que odiava pessoas como seu melhor amigo. Em casa, Severino disse para a mulher que “esses viados ainda vão acabar com o Brasil”. Ela só respondeu com um “coitados”.

A mídia de massa tem um viés progressista? Sim, em sua grande maioria. Porque nunca é o Severino no começo do processo, é a Camila. E tem que ser a Camila, por uma necessidade prática do trabalho. O Pedro está só esperando a aposentadoria, o Joaquim lê qualquer coisa que colocarem no teleprompter. Para entender isso, basta voltar ao ponto de que não faz sentido ser conservador no Brasil. Quanto mais você for capaz de pensar na realidade na qual vivemos, mais vai perceber como esse modelo não faz bem para a imensa maioria da população. O pensamento tende ao progressismo em países mais problemáticos.

E como a grande mídia depende de gente mais bem articulada e estudada para funcionar, na base da maioria das coisas que chegam prontas para você consumir nos meios de comunicação estão pessoas que tiveram a chance de pensar um pouco em como o Brasil é uma bizarrice sem fim. Não estou dizendo que conservadores são sempre burros, afinal, tudo depende do ponto de vista. Para uma pessoa que acredita que não dizer os pronomes preferidos de outra deveria ser motivo de prisão, alguém que só prega aceitação de homossexuais é conservador.

Ei, ainda tem gente nos chamando de Bolsominions aqui, no mesmo lugar onde eu já escrevi um texto inteiro falando que a família tradicional é uma merda e que crente só serve para puxar carroça! Acredita? Ser progressista ou conservador é relativo a quem faz o julgamento, mas existem tendências. A tendência de quem está na base da cadeia produtiva (intelectual) da mídia de massa é ser muito mais progressista que o cidadão médio, pelo combo de juventude e maior escolaridade; gerentes e líderes vão tender a ser um pouco menos progressistas, mas não vão querer se indispor com um novo paradigma social; já as celebridades que realmente mostram a cara para todos nós estão nessa para ganhar mais e mais dinheiro e fama, repetindo qualquer coisa que julgarem ser lucrativa para suas imagens.

O “esquerdismo” é uma propriedade emergente da mídia de massa em países minimamente democráticos do ocidente. Mas só aquele que está relacionado a relações humanas, especialmente no campo da sexualidade. O progressismo em relação ao capitalismo em si fica muito longe dos holofotes. É mais seguro para os negócios regular canudinhos e pronomes. Então, eu entendo quando pessoas mais conservadoras que eu dizem que esse é um grande plano dos ricos para controlar o povo. Mas não se iludam: os ricos não gostam da esquerda de verdade, afinal, já estão ricos e não querem ver o mundo mudar ao ponto de perderem suas vantagens, só gostam da parte “lacradora” que faz as classes mais baixas viverem em pé de guerra.

Enquanto Camila estiver preocupada com sexualidade e não com acúmulo de riquezas, venerando grandes empresas de tecnologia por contratarem um mix exato de minorias e não levantando a lebre sobre como o sistema tributário brasileiro ignora grandes fortunas e lucros de capital, está liberada para influenciar os rumos das pautas de jornais e programas de entretenimento em geral. Não precisa de plano maligno gigante para criar a mídia atual, basta colocar o dinheiro nos lugares certos que as pessoas garantem seu funcionamento.

No final do dia, é sobre o dinheiro. A mídia de massa sempre vai na direção do que é mais lucrativo, e hoje em dia é mais lucrativo evitar que um mundo tão conectado quanto o nossos perceba que concentração absurda de riquezas é uma tendência que aumenta em escala exponencial e a mecanização vai deixar a maioria da população perdida e sem função em questão de décadas.

Pra ser sincero, eu acho que o problema maior é que a mídia de massa não é de esquerda o suficiente. Não por que eu quero comunismo, mas porque só trocar o nome dos donos do oligopólio enquanto brigamos pelo que as pessoas fazem com suas genitálias é pra lá de conservador…

Para dizer que hoje eu me assumi comunista, para dizer que vai ignorar tudo isso e continuar reclamando de judeus, ou mesmo para dizer que quase simpatizou com a Camila: somir@desfavor.com


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