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Mentiras que os pais contavam…

Mentiras que os pais contavam…

| Sally | | 38 comentários em Mentiras que os pais contavam…

Atendendo à sugestão da leitora Bia, hoje vamos falar um pouco sobre as mentiras que os pais contam para os filhos.

Não sei quais são as mentiras dos dias de hoje, mas lembro bem das mentiras da minha infância, talvez você tenha sido vítima de alguma delas também. Uma psicologia duvidosa? Sim, claro, mas forjou uma geração tóxica que ri do politicamente incorreto e não se deixa abater pela opinião dos outros. Quando o bullying vem dos próprios pais, desde a mais tenra infância, a gente cria anticorpos.

Vamos começar por pequenas mentiras. Sempre achei que era só comigo, mas conversando com várias pessoas percebi que era quase um ritual dizer às crianças que se elas engolissem o chiclete algo muito ruim poderia acontecer. A mentira oscila desde coisas menos graves (vai colar no seu estômago, entre outras) até o extremo “você pode morrer”.

À primeira vista parece uma mentira pequena, preventiva, mas se transformava em um grande problema se alguma criança acabasse por engolir um chiclete sem querer. Isso ensina a lidar com a pressão e a ter senso de responsabilidade desde cedo: mastiga direito essa porra se não falece.

Não creio que fosse por ignorância, afinal, todo mundo na vida adulta provavelmente já engoliu ou conhece alguém que engoliu um chiclete e está vivo e saudável. Suponho que fosse para assustar, em uma pedagogia sádica, que te obrigava a dar cada mascada com uma precisão cirúrgica e total atenção, pois disso dependia sua vida. Levanta a mão nos comentários quem já passou maus bocados achando que ia morrer depois de engolir um chiclete! Você é uma pessoa preparada para lidar com responsabilidades.

Fazer com que crianças comam nem sempre é fácil. Adultos com privação de sono, falta de tempo e pressa para cumprir horários de trabalho podem perder a paciência e apelar para todo tipo de chantagem para fazer uma criança comer. Bem, no meu tempo, o elemento de pressão era a Criança Africana que Passa Fome.

Deixou um brócolis no prato? Estava sem fome no dia e não queria comer? Não terminou seu feijão? Lá vinha o discurso sobre crianças que passavam fome na África, que não tinham o que comer, etc. Em casos extremos, a coisa ficava ainda mais personalizada: era dito que ESSE prato que você, criança ingrata, estava deixando, poderia salvar a vida de uma Criança Africana com Fome, de modo a que a cada refeição você sinta que, naquele exato momento, enquanto você come, outra criança morre.

Como estratégia alimentar é uma furada, afinal, o sofrimento de outra criança não desperta fome e sim angústia e culpa. A Criança Africana com Fome vai continuar com fome, comendo você ou não seus brócolis, não é como se você estivesse tirando comida dela. Mas essa mentira ajuda a entender desde pequeno que o mundo não é a sua bolha e que tem muitas realidades diferentes.

Lembro de uma pessoa que cresceu em um condomínio fechado e contou que quando viu um mendigo pela primeira vez, aos 15 anos, chorou. Nós da geração da Criança Africana com Fome já sabíamos desde a primeira infância que desigualdade extrema existe. Choque de realidade precoce? Certamente. Traumático? Talvez. Mas prepara para um futuro que passa longe do ideal.

Uma mentira muito difundida, que acredito perdurar até os dias de hoje, é a falácia “Você não é todo mundo”. A dinâmica funcionava assim: o filho pedia algo (comer tal coisa, ir a tal festa, ver tal filme) e os pais negavam. A criança, coitada, com sua argumentação precária dizia, “mas todo mundo vai/pode/faz” e os pais ceifavam qualquer chance de argumentação dizendo “Mas você não é todo mundo”.

Como argumento, é um lixo, mas prepara para o futuro. Seria um argumento válido, se eles bancassem, mas não era o caso. Quando convinha, você virava “todo mundo” rapidamente: “Todo mundo vai para escola, você também tem que ir”, “Todo mundo tem que escovar os dentes” e tantos outros “todo mundo” se voltavam contra você quando menos se esperava.

Basicamente, quando o que a maioria faz convém à linha de criação dos pais, você é todo mundo, caso contrário, você não é todo mundo. Esquizofrenizante? Sim, mas prepara para o mercado de trabalho: quando convém você será incluído, considerado parte integrante da “família” que é a empresa, será acolhido e elogiado. Quando não convém, melhor você se adequar, afinal, “emprego está difícil de conseguir hoje em dia”.

Tem uma clássica que é a “na volta a gente compra”. A criança pede alguma coisa, os pais não têm autoridade suficiente para dizer que não vão comprar sem que ela faça um escândalo, então eles adiam o problema dizendo que ao final do passeio voltarão na loja e comprarão, na esperança de que a criança se distraia e esqueça do pedido.

Além de mostrar uma falta de autoridade com o filho (minha mãe só me olhava e eu recolhia qualquer intenção de birra), também mina a confiança da criança. Desleal? Com certeza, mas prepara para o tanto de furos, bolos e decepções da vida adulta. Aquele Zé Cu que vive dizendo que chamar para jantar não faz nem cócegas em quem já perdeu toda a confiança em seres humanos após anos de “na volta a gente compra”. Nada mais te abala em matéria de estelionato afetivo!

Temos também a Mentira Timer, aquela onde um dos pais te demandava que você fizesse alguma coisa e dizia “Eu vou contar até três!” e começava a contar, em tom de ameaça, para que a ordem seja cumprida. Normalmente, a consequência do “três” nunca ficava muito explícita, talvez para deixar a cargo da mente da criança imaginar o pior cenário possível.

Essa tática é um tanto quanto arriscada, pois na maior parte das vezes é blefe. Imagina a cara de cu de uma mãe que contou até três e a criança não saiu do lugar? Imagina a pressão de ter que, no improviso, providenciar uma punição exemplar, eficiente e imediata pelo não atendimento da contagem?

Como medida coercitiva talvez não seja ideal, mas prepara para lidar com a pressão e com os prazos exíguos do futuro. Seu chefe precisa que algo urgente seja feito e o colega Millenial chora e pede dois dias? Você, da geração forjada na mentira ri e samba na cara dele, afinal, você foi coagido a fazer o que quer que seja em três segundos!

Na mesma linha terrorista, tem o “se você não arrumar seu quarto vou jogar tudo fora” e suas derivações, coisas como “se você não vier agora eu vou embora e vou te deixar aqui” ou “se você repetir de ano vou te colocar em uma escola pública”. Ê Brasil, que país merda, onde ir para escola pública é motivo de ameaça! São ameaças que provavelmente nunca seriam cumpridas, mas que, por si só, eram graves o bastante para assustar uma criança.

Isso destrói o sistema nervoso de tal forma que nada mais te aborrece na vida adulta. Anos de ameaças estapafúrdias forjaram nervos de aço e você apenas mostra um dedo médio quando uma namorada histérica diz que “se você sair com os seus amigos hoje eu vou me matar”. Você está imune. Depois de ameaçarem dar seu pet, te abandonar no supermercado e dar todos seus brinquedos, nada mais te abala.

Temos também as mentiras que desafiam a física e a biologia. Desde coisas pequenas como “corte o cabelo assim ele vai crescer mais rápido” ou “não coma chocolate pois dá espinhas” até coisas mais grotescas, como dizer que se você fizer uma careta por muito tempo seu rosto vai ficar assim pra sempre ou que se você assistir tv muito de perto vai ficar cego.

Obviamente uma criança (e alguns adultos) não tem condições de refutar isso com dados científicos, então, abusando da confiança que seus filhos depositam nos pais, eles cospem essas imprecisões para facilitar sua vida e manipular o filho a fazer o que eles querem. É baixo? Muito. Mas é uma estratégia que pode ser muito útil no futuro.

Mas o mundo dá voltas, décadas depois, o filho terá a oportunidade de dizer qualquer atrocidade envolvendo computador e celular que eles acatarão. “Se você não cantar Macarena pulando em uma perna só o celular não destrava”, “Você tem que se vestir de tamanduá e dançar Vamos Abrir a Roda da Sarajane se você quer que a impressora funcione”. Esse mecanismo de usar o absurdo como algo válido é uma sabedoria milenar passada adiante, para que você usufrua dela no futuro.

Tem uma que talvez eles contem para os filhos e também para eles mesmos: “nós amamos você e o seu irmão/irmã da mesma forma”. São pessoas diferentes, logo, são amores diferentes. Não que se ame a um mais do que ao outro (apesar de acontecer com bastante frequência), mas dizer que ama a todos de maneira igual? Não cola. Mas ensina como emular sentimentos e mentir descaradamente para não sentir culpa ou não se indispor.

Muito útil para aqueles “eu te amo” não correspondidos, para interagir com os filhos dos seus amigos que são horrendos e irritantes (mas que você vai dizer que são lindos e uns amores) e também para todos os compromissos infantis envolvendo seus filhos, desde apresentações óbvias e medíocres na escola até sorrir e elogiar aqueles desenhos horrendos que eles fazem.

Há também a grande mentira genérica de que algo, alguém ou alguma entidade “vem te pegar” se você não fizer tal coisa. O Bicho Papão, o Homem do Saco, o Diabo, são muitas as alegorias na intenção de apavorar a criança e fazê-la obedecer, não por respeito aos pais, e sim pelo pavor de uma punição externa. Viver no medo é uma merda? Sim. Pior ainda para uma criança? Sem dúvidas. Mas muito útil no futuro.

Você pode coagir qualquer um a votar em quem você quer sob a ameaça de um membro do partido do outro lado “vir pegar” a pessoa. Você pode manipular qualquer um a fazer qualquer coisa desde que crie um antagonista pior do que aquilo que você está pedindo: desde um chefe que vai brigar com a pessoa até o diabo que vai te levar pro inferno.

O mesmo vale para as ameaças-doença quando a criança se recusa a atos de higiene: “se você não tomar banho vai crescer uma árvore na sua orelha”, “se você não escovar os dentes eles vão cair todos” e outros terrorismos envolvendo saúde, para que a criança aprenda a funcionar movida pelo pavor de uma lesão corporal em vez de incorporar hábitos de higiene gradativamente como uma atividade saudável e divertida.

Cruel? Talvez seja, mas fornece ferramentas fundamentais para uma vida adulta livre de mimimi. Você ri da cara do pneumologista quando ele diz que fumar faz mal para a sua saúde, foda-se ele e todo os médicos, você está mais que calejado para viver com a expectativa de um dano iminente à sua saúde. O que é um enfisema perto de uma fuckin’ árvore que ia sair da sua orelha? Nada mais te assusta.

Temos a figura da mentira-chantagem também, muito eficiente para manipular filhos: “se você não for um bom menino, Papai Noel não vai trazer presente no Natal”. Além de tudo, é uma mentira que não se sustenta, pois toda criança ao longo de 365 dias vai acabar fazendo uma cagada. Fosse verdade, Papai Noel não trazia presente para ninguém.

Vil? Detestável? Pode ser. Mas depois de uma infância toda de ameaças a pessoa nem pisca quando o cônjuge diz que se você continuar assim, vai perdê-lo. O cônjuge você vê todo dia, nada de mais, pior era perder o presente do Papai Noel que era só uma vez por ano!

As mentiras que os pais contam/contavam para os filhos eram tenebrosas, cruéis e sádicas? Sim, mas o mundo não é um arco-íris, então, entre criar em uma bolha deixando a criança incapaz de lidar com um coice ou uma frustração eu prefiro mil vezes a criação gambiarra, a criação raiz, a criação com mentiras toscas e sádicas.

Para não entender que é um texto de humor e me passar um sermão sobre construir autoestima de uma criança, para não entender que é um texto de humor e concordar plenamente comigo ou ainda para repensar muitas das coisas que você faz com os seus filhos: sally@desfavor.com


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