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Topo da mesa.

Topo da mesa.

| Somir | | 22 comentários em Topo da mesa.

Hoje em dia, algo em torno de 70% de todos os acessos da maioria dos sites da internet vem de smartphones. E pode-se argumentar que isso nem conta como uma mudança de hábitos: as pessoas que vem se juntando à grande rede mundial de computadores cada vez menos usam computadores na sua configuração clássica de torre, monitor, teclado e mouse. Já entraram nesse mundo com seus aparelhos portáteis, e salvo necessidades pontuais no trabalho, praticamente não lidam com o equipamento tradicional. Sim, o mundo muda, mas talvez a era dos computadores de mesa tenha acabado antes da hora…

Eu poderia tomar um rumo de velho chato reclamando sobre os jovens e suas escolhas erradas na vida, mas mesmo que tenha toda a capacidade para escrever um texto assim, vou tomar outro caminho: vou argumentar sobre o que você pode estar perdendo ao consumir o mundo moderno através dessa telinha. Vamos focar nos pontos positivos antes de eu começar a falar do que pode dar errado no rumo que a tecnologia humana está seguindo atualmente.

Se o smartphone e por extensão o notebook permitem muita mobilidade, integrando-se à sua vida de forma mais orgânica, um computador de mesa – ou desktop como vou chamar daqui para a frente por praticidade – também oferece um mundo de possibilidades. Como quase tudo na vida, é uma questão de escolhas. Sim, o desktop fica parado num canto da casa, mas te entrega de volta uma gama de capacidades completamente diferente de smartphones. E isso está baseado no fato de que o desktop não só tem mais potência para realizar tarefas (em 2009 eu tinha um computador mais poderoso que todos os smartphones existentes), como tem mais espaço para isso acontecer.

Uma tela grande permite mais coisas visíveis ao mesmo tempo. Quase todos os softwares de produção mais complexos têm umas 200 funções visíveis na tela ao mesmo tempo. O que é impossível de se ver num celular, onde toda a interação com o conteúdo é montada para ser o mais simples possível, com poucos botões e funções para não roubar precioso espaço de tela. E isso faz diferença até mesmo no longo prazo: eu percebo que os estagiários mais jovens costumam ficar um pouco confusos com a quantidade imensa de opções de softwares de produção profissionais, e tendem a se concentrar em poucas funções deles a não se que diretamente incentivados a buscar por soluções alternativas.

O ser humano tem uma capacidade incrível de intuição, que é incentivada pelas interfaces simplistas dos smartphones, mas é uma criatura de hábitos: se for condicionada a limitar sua interação com o conteúdo através de palpites educados (empresas como o Google montam verdadeiras bíblias de como padronizar interfaces de programas para reduzir a frustração de usuários), é isso que essa pessoa vai levar para a vida. Não vai ter o reflexo de procurar outras possibilidades e ajustes mais finos no que está produzindo, vai querer que o processador em questão continue tentando adivinhar suas intenções a cada passo.

Pode ser que não demore muito para programas usados profissionalmente consigam trazer esse grau de predição para suas interfaces, mas atualmente essa não é a regra. Computadores conseguem prever o que você vai fazer se tiver poucas possibilidades. Com um programa de edição de imagens 3D, por exemplo, o número de possibilidades é tão imenso que a chance dele errar é exponencialmente maior do que a de acertar. Por isso que nesse tipo de trabalho, o melhor que fazem é colocar milhões de opções na tela e deixar a pessoa comunicar seus desejos de forma clara.

Quem aprende também a linguagem do desktop, mais específica e cheia de possibilidades, desenvolve uma capacidade a mais que a aparente maioria das pessoas nesse planeta: a solução de problemas complexos através da percepção das possibilidades no ambiente. A área de visão é maior, a interface não presume coisas por você, isso desenvolve uma capacidade natural do ser humano: o uso de ferramentas. Pode-se argumentar que smartphones fazem isso de uma forma limitada, mas nada se compara ao grau de complexidade possível num desktop. Você aprende a encontrar o problema que quer resolver, dirigir-se a ele, escolher a ferramenta ideal e a forma como usá-la.

E isso gera uma vantagem competitiva no longo prazo: eu noto claramente que gerações mais novas estão respondendo ao processo de simplificação de interfaces e se acostumando com um mundo onde sua intenção define as ações ao invés da realização da tarefa. O smartphone exibe apenas as opções que ele é capaz de fazer praticamente sozinho, o que limita o espaço de possibilidades e gera uma falsa sensação de escolha. Ele só tem um toque para resolver a questão. Perceba que você só escreve algo para o celular numa pesquisa: a partir daí ele presume o que você quer fazer e você volta a apenas cutucar a tela.

Eu aprendi a linguagem dos smartphones porque ela é sim muito importante, mas não é a única. E considerando o mundo real, raramente é a melhor escolha para lidar com as coisas. No mundo real, ferramentas não entendem sua intenção, afinal, elas podem ser usadas de inúmeras formas diferentes. Pessoas não presumem sua intenção com facilidade, também. Existe um risco das pessoas ficarem cada vez mais mimadas com sua vida diante de uma telinha que simula inteligência e comecem a perder a capacidade de lidar com a frustração de algo dando errado ou sendo difícil de fazer.

Quase tudo o que tem valor nesse mundo dá muito trabalho de fazer, e o que diferencia pessoas no mercado de trabalho é sua capacidade de produzir mais e melhor com as ferramentas que tem em mãos. Essa mentalidade de smartphone – com um toque usado para presumir muita coisa – não se traduz bem num ambiente de produção criativa ou gerenciamento de processos. Você tem que ser capaz de prestar atenção em muitas coisas ao mesmo tempo e enxergar as possibilidades o mais rápido possível. Parece uma bobagem dizer isso, mas pense bem: onde você ou seu filho vai desenvolver essa habilidade? Na vida fora das telas ou no mínimo diante de uma tela que tenha esse conceito integrado à sua própria existência. E com tanta gente se perdendo dentro do mundo da internet, com nós nos obrigando a passar boa parte da vida online para interagir com outros seres humanos e produzir valor para o nosso sustento, usar esse tempo com um smartphone pode ser um tiro no pé.

É complicado desenvolver uma habilidade importante na vida como a resolução de problemas através de noção do ambiente e escolha das melhores ferramentas se tudo o que você vê é um processo extremamente simplificado. E isso vai além de ser mais capaz no trabalho, cada vez mais impacta nossos relacionamentos humanos: a máquina que faz a interface entre duas pessoas pode ser montada de forma perfeita para reduzir a sua frustração com o ato de se comunicar, mas a pessoa do outro lado está longe de ter sido atualizada com o mesmo software: ela é confusa, cheia de possibilidades e precisa ser trabalhada com diversas ferramentas pouco óbvias para conviver bem com você. Uma pessoa é caótica como uma tela cheia de comandos que você nunca viu antes, uma pessoa tem capacidade limitada de prever o que você vai fazer através de um gesto, afinal, para ela, você também é um péssimo smartphone!

Se você vai tirar algo deste texto, que seja a ideia de que o mais fácil e conveniente normalmente cobra um preço: você se torna mais limitado. Sou totalmente favorável a integrar computadores cada vez mais nas nossas vidas, mas desde que não tenhamos que nos rebaixar ao nível deles…

Para dizer que leu e concordou do seu celular, para dizer que não é burro(a) por usar um (não disse isso, burro(a)!), ou mesmo para dizer que vai tirar a poeira do seu desktop depois dessa: somir@desfavor.com


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