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Rachaduras.

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| Desfavor | | 22 comentários em Rachaduras.

Nesta semana, a deputada Janaína Paschoal (PSL) foi xingada de “traidora” pelos mesmos militantes que estiveram ao seu lado defendendo o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016 – que resultou de um pedido coassinado por ela. Membros do Movimento Brasil Livre (MBL) foram chamados de “vendidos” e “comunistas” pelos mesmos bolsonaristas que antes compartilhavam os posts do grupo no Facebook. Comediante identificado com a direita, Danilo Gentili diz que está sendo perseguido por pessoas que até ontem defendiam seu direito à liberdade de expressão. O motivo da discórdia são as manifestações pró-Bolsonaro marcadas em diversas cidades para o dia 26 de maio – e que setores da direita, como os nomes os citados acima, decidiram não apoiar. LINK


Depois de poucos meses no poder, a direita já está rachando. O que não é surpresa, mas não deixa de ser o desfavor da semana.

SALLY

O grande desfavor da semana não foi uma notícia propriamente dita e sim a pancadaria pública e notória da direita por divergências como Reforma da Previdência e Manifestações do dia 26 e outros temas. Na verdade, o Desfavor da Semana vai muito além disso, essas brigas são uma mera ilustração de um problema que acontece na sociedade em escala muito maior, com todos os grupos. Difícil falar disso em apenas duas páginas, mas vamos lá.

Com essa polarização política que só aumentou nos últimos tempos, se criou uma falsa sensação de que sua “ideologia” política é o que você é, o que te define. Pois bem: não é. Sua ideologia política é uma pequena parcela da sua vida, uma crença que pode ser modificada, ressignificada ou desfeita conforme a sua vontade. Deixar que isso te defina é furada.

Mas, muita gente acreditou ser suas opiniões políticas. Se sou “de direita”, então, vou andar com gente “de direita” e vai estar tudo bem, afina, somos todos a mesma coisa, certo? Errado, muito errado. E descobriram isso do pior jeito possível: brigando entre si, feito casais neuróticos, na base do barraco, em público e passando vergonha.

O ser humano deu pra fazer isso de uns tempos pra cá: ficar escravo dos próprios rótulos que coloca ou colocam nele. Se sou de direita, sou a favor das armas, contra o aborto e contra a liberação das drogas. Um pacote de adesão. Se sou de esquerda sou a favor da liberação das drogas, do aborto e contra as armas. Pois é, muito fácil e conveniente aderir a um pacote para sentir pertinência a um grupo e, portanto, algum acolhimento, mas o ser humano não é tão preto no branco e agora estamos vendo tudo isso ruir.

Essa sensação de falta, essa “carência”, essa sede por pertinência e aceitação (em última instância, por amor) não vai passar com nada externo. É um trabalho interno a ser feito, da pessoa para com ela mesma. Procurar por isso fora é pedir para ser infeliz, pois será uma vida procurando sem encontrar. Mas, por hora, as pessoas parecem não se dar conta disso e estão na contramão do caminho que poderia trazer alguma paz.

Tudo que vemos é divisão. Cada vez mais divisão e menos união. Tudo é motivo para briga, para exclusão. Hostilizar o colega pela cor de pele, pela ideologia política, pela orientação sexual ou pela cor de esmalte que passou na unha, não importa, tudo formas de divisão. E, todo mundo sabe, a técnica mais manjada de poder/política é dividir para conquistar: deixe o povo brigando entre eles, assim não brigam conosco nem apontam nossos erros.

Estamos vendo acontecer diante dos nossos olhos: o país se dividiu em dois grupos, esquerda e direita, achando que assim teriam pertinência, afinidade, acolhimento. Mas a esquerda brigou com a esquerda e a direita brigou com a direita. Óbvio, não somos meras orientações políticas, somos muito mais complexos do que isso. Divergências iriam existir. A solução é saber lidar com as divergências sem divisão e não tentar a todo custo criar um nicho que não vai divergir de você para não ter que entrar em contato com isso (spoiler: é impossível).

Somir e eu discordamos em muita coisa, inclusive de forma “institucionalizada”: há dez anos, toda segunda-feira a gente discorda aqui, abertamente, na coluna “Ele disse, ela disse”. E, ainda assim, somos inatingíveis, inseparáveis, inquebrantáveis. Escrevemos blog juntos, trabalhamos juntos, somos parceiros de vida, algo muito maior do que ser namorados ou amigos. Se eu precisar de um rim amanhã, eu ponho minha mão no fogo que ele me doa. Então, é possível discordar e manter carinho, respeito, admiração e uma união muito, muito sólida.

Porém, o que vemos hoje é gente que não tolera discordância, a interpreta como ataque e reage atacando de volta. Para conseguir suprir essa busca por amor, aceitação e pertinência, as pessoas se dividem em nichos onde supostamente estarão cercadas de “pessoas iguais a elas”, não sendo obrigadas a lidar com divergências. Mas, não importa a bolha na qual você se enfie, sempre existirão discordâncias, ou se aprende a lidar com elas ou você vai passar a vida brigando e sofrendo, procurando e não encontrando.

Feministas já racharam: as negras acham que as brancas têm que calar a boca porque sofrem menos. Quem não se entende heterossexual (não sei nem que termo usar atualmente) se dividiu em inúmeras “subcategorias” onde uma critica a outra. Não perceberam que quanto mais divididos, mais longe da sua essência e mais enfraquecidos. E a cada briga, a solução é a mesma: divide mais um pouco, para tentar formar um grupo onde não existam divergências. Lidar com a coisa que é bom, nada.

Exemplo: supondo que existisse uma categoria de comedores de ovo. Eu me declaro comedora de ovo, faço disso minha bandeira, me identifico com esse rótulo e faço dele um sinônimo do que eu sou. Só ando com comedores de ovo, só falo sobre comer ovo e desprezo quem come outras coisas.

Um dia vem um pessoal dizer que ovo frito é melhor que ovo cozido e gera uma baita briga. O grupo racha. Agora seremos os Comedores de Ovo Frito x os Comedores de Ovo Cozido, esquecendo que, em essência, somos todos comedores de ovo, apenas por não saber lidar com divergências. Daí o subgrupo do ovo frito convive um pouco mais e novas divergências surgem. A solução? Lidar com elas? Não, nem pensar.

O subgrupo racha: os Comedores de Ovo Frito se desentendem sobre o que é melhor: gema mole ou gema dura. Nova pancadaria. Como não sei lidar com divergência, como procuro amor incondicional de uma forma truncada, me divido mais uma vez e passo a andar como os Comedores de Ovo Frito de Gema Mole, hostilizando os Comedores de Ovo Frito com Gema Dura.

Assim caminha a humanidade tupiniquim, se dividindo e subdividindo cada vez mais, buscando pertinência e amor incondicional pela divisão, sem perceber que, na verdade, só estão se afastando cada vez mais com essa atitude. Não é excluindo quem pensa diferente que se chega a algum bem-estar, é integrando essas diferenças que, por algum motivo estão aparecendo na sua frente: algo a ser trabalhado.

Este texto vai surtir algum efeito? Não, não vai, o que estou dizendo deve soar alienígena para a maior parte das pessoas, cegas pela dualidade, pela polaridade e por essa busca inconsciente por algum amor. Agora tá tudo muito bagunçado. Mas, quem sabe em algum tempo, quando essa poeira abaixar, este texto ajude a retirar alguém dos escombros. Jogo para o universo, se um dia alguém encontrar e for útil, que bom. Se não, tá tudo certo também, quem não aprende pelo amor, aprende pela dor, mais cedo ou mais tarde.

Para vomitar alguma opinião polarizada mostrando que não entendeu nada, para dizer que o tema deveria ter sido “Juntos e Shallow now” ou ainda para dizer que está muito feliz por estar em um lugar onde não se fala de Carlinhos Maia: sally@desfavor.com

SOMIR

Política é complicada por natureza. É mais ou menos como tentar fazer funcionar um casamento entre milhões de pessoas ao mesmo tempo. Não é à toa que passamos tanto tempo da nossa história milenar tentando achar a melhor forma de fazer isso e ainda não estamos nem perto de um consenso. São tantos os aspectos que regem a vida em sociedade que mesmo que duas pessoas concordem em um deles, é quase certeza que discordem em outro. Pessoas diferentes querem coisas diferentes. Não dá para achar duas pessoas idênticas em pensamento nem entre gêmeos siameses, imagine só num país? Escrevendo assim, parece óbvio.

Mas não é nada óbvia a forma como as pessoas parecem querer resolver esse problema fundamental da convivência humana: ao invés de tentar a coordenação, tentam a concordância. Quando você tenta a via da coordenação, aceita que existem visões diferentes de mundo e tenta encontrar formas de trabalhar junto com outras pessoas apesar das diferenças. Estabelece suas condições e cede no que puder para acomodar as necessidades alheias. É difícil, mas existem precedentes suficientes para nos provar que funciona. Pessoas que discordam podem trabalhar em prol de um objetivo compartilhado.

Porém, a coordenação, como todas as coisas boas, tem um fim. Ano passado, centro e direita coordenaram-se para evitar que Lula voltasse ao poder. Não era um projeto necessariamente para o Bolsonaro, mas contra um adversário comum. Quando o objetivo foi alcançado, não havia mais motivos para manter a base unida, navegávamos apenas nas correntes do otimismo que normalmente se sucedem a uma eleição presidencial. E agora que o sentimento finalmente se esvaiu, estamos diante de uma tempestade. O problema que divide a direita agora não é necessariamente o que o governo faz ou não faz, e sim o choque de realidade do fim de uma rara coordenação no Brasil. É como se não tivessem percebido o que criou aquela união anterior e sentissem que seus antigos aliados viraram a casaca sem aviso. Os bolsonaristas furiosos com os defensores abandonando o barco, o resto da direita furioso com a inépcia do governo que não tinham como não saber que seria assim.

Esse é o perigo de não entender a diferença entre coordenação e concordância. Quem quer trabalhar pela via da concordância está indo tão contra a natureza humana que provavelmente acha que seus aliados pensam de forma parecida com eles em tudo. Idealizam o outro como uma cópia de si e parecem ter certeza que essa é a única forma das coisas funcionarem. O que é um erro absurdo que infelizmente o ser humano parece não cansar de cometer. Concordância existe de forma limitada, tema por tema, o que une pessoas é coordenação. É uma ideia infantil de que tudo precisa ser perfeito e eterno para sermos felizes, que a conexão humana está em um grupo de opiniões parecidas e não na relação que duas pessoas formam.

Sally e eu não concordamos em tudo, na verdade, estamos discordando toda semana sem parar há mais de uma década. Isso é coordenação: apesar das diferenças, mantemos vários projetos juntos e já chegamos num ponto onde não podemos mais ser divididos. Ficamos tão experientes em nos coordenar que não precisamos concordar. Nossa conexão não é ideológica, é humana. Muito se engana quem acha que existe outro tipo de conexão que não essa. Se você depende de concordância, sua relação com outras pessoas é superficial, porque a meta não é defender a relação humana, e sim uma ideia. O ser humano tem uma habilidade instintiva refinada por milênios de evolução para formar laços com outros seres humanos, mas ainda somos muito inconsistentes e limitados para lidar com ideologias complexas como as que a política exige.

Não é surpresa nenhuma que direita e esquerda se esfacelem em guerras civis com o passar do tempo. Formar grupos baseados em características físicas explícitas como sexos já é muito complicado, imagine só tentar isso com conceitos ideológicos complexos como sistemas de governo! Grupos são formados por coordenação, mas as pessoas tendem a achar que foi por concordância e entram em choque quando percebem a realidade. A resposta acaba sendo formar mais subdivisões na esperança fútil de encontrar essa concordância num subgrupo mais homogêneo. A verdade é que se a humanidade começar a se subdividir até formar bilhões de grupos de 2 pessoas, ainda não vão encontrar essa concordância.

Em tempos de internet, criou-se a ilusão de que concordância une pessoas, quando na verdade é só uma “isca” para as aproximar. Com tantas comunidades se formando ao redor de interesses parecidos, é como se tivéssemos reaprendido o que configura uma relação humana baseados na ideia de que é a quantidade de pontos em comum que definem sua viabilidade. Em tempos antigos, quando a outra pessoa não tinha todas suas bandeiras levantadas num perfil online antes do primeiro contato, tentávamos nos conectar primeiro e depois achar pontos comuns. Hoje em dia é o inverso. E o inverso vem com esse problema sério de subdivisões: a falsa ideia de que concordância é a base de uma relação torna cada vez mais difícil que nos coordenemos. E só fomenta mais subdivisões em busca de algo que simplesmente não existe.

E no final das contas, ficamos todos frustrados, brigando entre nós justamente porque queremos estar mais unidos.

Política é complicada.

Para dizer que quer briga mesmo e não esse papo de coach, para dizer que discorda e por isso nunca mais vai ler meus textos, ou mesmo para dizer que vai abrir um outro desfavor melhor que esse: somir@desfavor.com


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