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Jornalista de verdade.

Jornalista de verdade.

| Somir | | 24 comentários em Jornalista de verdade.

Posso começar este texto com basicamente qualquer notícia, mas vou aproveitar para trazer um tema político dos EUA, já que continua sendo minha teoria que o Brasil eventualmente acaba seguindo os padrões culturais de lá. Recentemente saiu o relatório de Robert Mueller, um investigador do FBI que analisou oficialmente por dois anos um possível complô do então candidato Donald Trump com os russos durante a eleição presidencial de 2016. E apesar de boa parte da mídia americana tratar o tema como certeza por esses dois anos e colocar muita confiança na imparcialidade de Mueller, o relatório inocentou Trump. Ele não conspirou com os russos. O que só reforçou a retórica de “Fake News” vinda de seus apoiadores. E agora, como lidar com jornalistas e figuras públicas em geral que passaram esse tempo todo acusando o presidente?

Bom, os republicanos e conservadores em geral estão na fase do “não disse?”, mais tirando sarro da grande mídia do que necessariamente pedindo cabeças. Para eles, nem chega a ser grande surpresa: quem comprou a ideia de que boa parte da mídia mente durante a campanha presidencial não teve que se deparar com um fato novo. Já o lado que costuma bater no Trump parece desnorteado pelo fato: tinham certeza que o homem laranja conspirou sim para roubar a eleição de Hillary, e tinham muita esperança que Mueller exporia a verdade. Não faltaram elogios para o investigador nesses últimos dois anos. Quando o resultado da investigação chegou, não conseguiram lidar com isso. Um lado mais civil se sentia obrigado a aceitar o resultado, mas evidentemente causou muita frustração e desconfiança. Jornalista da MSNBC quase chorou ao vivo falando do tema!

Ambos os lados lidaram com o problema de duvidar da realidade apresentada diante de seus olhos. Os defensores de Trump acharam um absurdo sequer começarem a investigar o fato, dizendo que era basicamente um boato ganhando o poder de acusação, mas com o resultado, apossaram-se do fato da investigação não ter dado em nada para fazer sua propaganda política; os detratores fizeram o caminho oposto. Antes a investigação era válida e baseada na realidade, agora o resultado soa como uma traição e ninguém decidiu mudar de lado do que já acreditava, estão apenas tentando lidar com a informação para achar um ângulo favorável. É a natureza da divisão política em ação: a pessoa acredita no que quer e escolhe o que quer do bufê de fatos disponíveis ao seu redor.

Mas, não nos enganemos: em qualquer país, a maioria sempre vai ser composta por pessoas que não se interessam muito pelo ambiente político, no máximo assumindo alguma simpatia por um candidato ou outro. Por mais que a ideia de “Fake News” tenha entrado no ambiente cultural atual, não é como se tivesse uma cara muito bem definida. As pessoas parecem conscientes que existem mentiras passeando pela internet, mas não são muitas que tem a capacidade de separar o joio do trigo. Normalmente é necessário ter informações sobre o tema de antemão para perceber uma mentira. Claro que existem formas de presumir o que não combina com a realidade e pegar atalhos nesse processo, mas mesmo esse bom senso mínimo tem seu custo: se você não tem um interesse elevado por atualidades e curiosidade genuína para se aprofundar numa quantidade enorme de assuntos diferentes, é muito difícil formar esse bom senso.

Curiosamente, essa deveria ser a característica básica de um jornalista. Alguém capaz de intuir o que tem maior probabilidade de ser verdade e fazer pesquisas eficientes para apresentar informações objetivas e suficientemente seguras para o público. Todo mundo erra, todo mundo pode ser enganado, mas convenhamos que se alguém deveria ter uma proteção maior contra isso, deveria ser justamente o profissional dessa área. Mas hoje em dia ninguém é mais criticado por soltar informações falsas do que o jornalista. Oras, algo deu muito errado nesse processo! O jornalismo morreu? Não podemos mais confiar na imprensa? Todos têm alguma motivação política?

Permitam-me ser o advogado do diabo, ou… do jornalista, por alguns momentos: repito que somos humanos, somos falhos e ninguém está acima de ser enganado. Talvez a primeira coisa para pensar aqui seja que imputar ao jornalista a obrigação de não errar seja uma expectativa irreal. Quem nunca foi influenciado a acreditar em algo errado por mentiras ou mesmo coincidências? Sim, jornalistas são cobrados num nível diferente, afinal, deveriam ser mais capacitados para lidar com esse tipo específico de problema. Um encanador tem que saber mais sobre instalações hidráulicas do que o cidadão comum, um médico tem que saber mais sobre doenças e tratamentos do que seus pacientes… e evidentemente um jornalista tem que saber melhor separar boatos de fatos do que aqueles que se informam através dele. Mas tudo tem limite. Jornalistas erram. Buscar a verdade objetiva é tão complicado que filósofos continuam se formando até hoje…

Se você for prestar atenção mesmo, os maiores culpados pelo volume de informações falsas circulando por aí não são os jornalistas: é aquele seu tio que repassa QUALQUER coisa que recebe no WhatsApp. É quem reporta opinião como fato em rede social, é quem solta boatos por ignorância ou interesse nos ouvidos de quem estiver ao seu redor. Muito embora as Fake News tenham alcance maior quando apresentadas por jornalistas da grande mídia, elas são uma gota no oceano de desinformação no qual vivemos atualmente. A verdade (segundo o meu argumento aqui) é que o próprio conceito de verdade começou a ficar borrado.

Mas não porque começamos a mentir ou errar mais, mas pela quantidade avassaladora de informação disponível por aí. A história é recheada de eventos onde uma mentira tomou proporções assustadoras, os cidadãos de antigamente acreditavam piamente em uma quantidade enorme de bobagens no seu dia a dia. A diferença? Agora ficamos mais desconfiados. A quantidade de informações verdadeiras não diminuiu, longe disso. Ninguém pode ser mais bem informado do que o cidadão moderno, com acesso sem fio ao conhecimento acumulado da humanidade. O que mudou, consideravelmente, foi a capacidade do ser humano de simplesmente aceitar a informação que lhe é apresentada. Antigamente não existiam Fake News porque as pessoas simplesmente acreditavam nas notícias. Aliás, notícias e boatos quase que por igual.

Sim, é preocupante que não existam mais barreiras para exercer a profissão de jornalista, mas não é como se isso fosse mudar tanta coisa assim: os maiores culpados pela insanidade de informações conflitantes rodando por aí são comentaristas, colunistas, comediantes, advogados, médicos, garis… todo mundo tem uma voz. Mesmo quem mal consegue escrever consegue repassar notícias falsas. Mesmo quem não entende 90% das coisas que lê consegue empurra um boato para frente. Eu sei que irrita a ideia de que jornalistas estejam sendo preguiçosos ou tendenciosos com o trabalho de informar as pessoas, mas preste atenção em quem realmente fala as besteiras, mesmo em sites grandes: é a blogueira feminista do Universa e suas matérias sobre como todo mundo que não é ela é uma pessoa horrível e insensível, é o tiozão reaça do WhatsApp soltando boato de meio parágrafo no Antagonista…

A mídia americana está vivendo um momento confuso porque por lá já aconteceu o processo de politização completa do jornalismo. Você assiste o canal de TV do seu partido, visita os sites e vê os canais de YouTube de quem já concorda com você. No Brasil, o processo ainda não está completo, a maioria das grandes mídias não assume um posicionamento, na esperança de poder tirar vantagem de quem quer que esteja no poder a cada mandato. Mas a mídia online já está basicamente cooptada por esse pensamento: todo mundo parece estar defendendo algum ponto de vista e escolhendo as informações que passa com esse objetivo em mente. A verdade nunca foi monopólio dos jornalistas, cada pessoa sempre teve a possibilidade de acreditar em qualquer asneira que quisesse. O que vemos atualmente é uma mistura de politização excessiva dos meios de comunicação, seguindo o padrão americano, e o óbvio de bilhões de pessoas com capacidade de disseminar informações em tempo real para qualquer lugar do mundo.

A verdade sempre foi confusa, mas nada nos preparou para este momento: ficar dando chilique por causa de Fake News dificilmente reduz o impacto de uma mudança tão grande no conceito de comunicação humana. Talvez exista um lado positivo em tudo isso: antigamente tudo era verdade por falta de informação suficiente para contestá-la. Atualmente nada é verdade porque tem informações vindo de todos os lados, com interesses políticos altamente envolvidos. Nessa hecatombe da realidade causada pela internet, pode ser que a demanda por pessoas capazes de filtrar tudo isso em busca da verdade, mesmo que errando às vezes, comece a aumentar novamente. O jornalismo pode renascer, não mais só como investigadores e coletores de informação, mas como profissionais altamente treinados nessa espécie de arte do bom senso. Limpando informações de tendenciosidades, prestando atenção nas fontes e apresentando apenas o que alcança um padrão mínimo de qualidade.

Acredito que esse movimento não vá começar pelo Brasil, afinal, estamos apenas começando a sentir o gostinho de politizar a mídia e faturar os tubos com isso, mas se as tendências da civilização ocidental continuarem aparecendo por aqui com algum atraso, eu já vejo coisas interessantes acontecendo na mídia online americana e europeia: meus feeds de notícias, canais de YouTube e afins já começam a mostrar mais e mais jornalistas de centro. A demanda está aumentando, e francamente, é muito mais agradável e eficiente do que ficar saltando entre mídias de direita e esquerda o tempo todo para conseguir montar um cenário mental decente. Não é otimismo baseado na bondade do ser humano, e sim em tendências de mercado que começam a ficar mais aparentes. O dinheiro vai começando a ir na direção do centro do espectro político, ainda bem devagar, é claro, mas é bem possível que ele consiga ressuscitar o jornalismo dessa forma. Não agora, mas nos próximos ciclos. Porque se tem uma coisa que eu acredito, é que a humanidade não fica parada até mesmo para evitar o tédio, esquerda ou direita sempre cansam o povo depois de um tempo. Os jornalistas estão morrendo porque perderam o foco durante essa revolução da comunicação, mas nada impede que renasçam em figuras de filtragem de informação num futuro próximo.

Claro, considerando que um computador não aprenda a fazer isso primeiro… semana que vem tem mais um texto de Transumanismo!

Para dizer que não acredita em nada, para dizer que só acredita no que já acredita, ou para dizer que desconfia de tudo o que não acredita: somir@desfavor.com


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