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Geração Rivotril.

Geração Rivotril.

| Sally | | 22 comentários em Geração Rivotril.

Para onde você corre quando tem um problema que te angustia? Em um mundo ideal, as pessoas encontram força e sabedoria dentro delas mesmas para enfrentar as adversidades da vida, mas no mundo real, dificilmente é o que acontece. A pessoa tenta e se, com o que ela tem, não consegue segurar aquela barra acaba decretando, quase que de forma permanente que “sozinho não dá”. A busca passa a ser externa, algo que torne a situação suportável, de preferência de forma fácil, rápida e barata.

A resposta padrão dos últimos tempos tem sido remédios. Não tem nada de errado nisso, eu eventualmente preciso de ajuda, vocês eventualmente precisam de ajuda, todas as pessoas do mundo eventualmente precisarão de ajuda. O problema é: procurar uma muleta em vez de ajuda.

Para se fortalecer, para ter estrutura para lidar de frente sem desabar com as adversidades da vida, é preciso fazer uma “musculação” da mente e da alma e, como toda musculação, você não fica forte da noite pro dia, demanda longos períodos de treino ininterrupto e, quando você para, vai perdendo gradativamente tudo que ganhou. É por isso, poucas pessoas neste mundo tem o corpo ou a mente sarados: é um investimento constante que requer muita disciplina e força de vontade. É exercício pro resto da vida.

Mas, se ninguém cuida da mente e da alma com este empenho, o que fazem as pessoas quando se deparam com um momento de vida onde, graças a suas mentes flácidas, não conseguem segurar o tranco? Se medicam, e o queridinho do Brasil é o Rivotril. Nada contra o remédio em si, quem precisa tem que usar mesmo, mas via de regra tem que ser um SOS para tirar do buraco e ajuda a recomeçar. Rivotril como resposta permanente… melhor não.

O Brasil, aquele país que se diz feliz, alegre, praireio e festeiro, é o maior consumidor do mundo de Rivotril do mundo. Mais: boa parte deste público são jovens que sequer tem problemas tão graves assim. Estopins risíveis como término de um relacionamento ou não obter a popularidade desejada em redes sociais são mais comuns do que se imagina na hora de optar por este remédio.

Em tese, o Rivotril é um remédio para controlar a ansiedade, prescrito por tempo determinado, para situações pontuais. Não é exigível, por exemplo, que uma mãe que viu seu filho ser assassinado continue com sua vida sem algum tipo de apoio, provavelmente nenhum de nós conseguiria. O grande problema é que no Brasil, cada vez mais, as pessoas fazem uso de ansiolíticos para se anestesiar diante de frustrações normais da vida, adversidades que são inerentes à vida adulta, mas que adultinhos infantilizados não querem lidar ou não querem procurar ferramentas que os prepare para lidar.

Se apoiar em um remédio para conseguir lidar com problemas banais como pressão no trabalho, insônia ou brigas com namoradinho é, além de um sintoma de retardo emocional, uma questão de saúde pública muito séria. Hoje, o Rivotril é um dos remédios mais vendidos no país, o que é curioso, pois deve ser prescrito por psiquiatras e o brasileiro, por tradição, não costuma ir ao psiquiatra por achar que “é coisa para maluco”. Isso indica que boa parte das pessoas adquire o medicamento sem receita ou com receitas prescritas na camaradagem, por um dermatologista amigo ou coisa do tipo. Uma verdadeira temeridade.

Se o brasileiro fosse um povo instruído e responsável, não haveria maiores problemas. Mas, quero lembra-los que estamos em um país onde pessoas com um grau bom de instrução param de tomar antibiótico no meio do tratamento pois já estão se sentindo melhor e querem beber. Estamos em um país onde remédio para diarreia tem que ser vendido com prescrição médica, pois nem isso o povo consegue administrar com competência. Então, esse consumo indiscriminado e permanente de Rivotril é sim um problema de saúde pública, as consequências disso serão pagas por você e por mim.

Originalmente, os ansiolíticos foram pensados para regular um cérebro desregulado, que está over reagindo a algo. Quando, por qualquer motivo, há um desequilíbrio e pequenos estímulos causam reações exacerbadas, os ansiolíticos inibem esse funcionamento excessivo (que geralmente se traduz na forma de ansiedade). É um ótimo recurso enquanto a pessoa procura formas de resolver o que está causando o problema: coloca a mente no lugar descobrindo e entendendo a causa disso em uma terapia, se exercita para ajudar a regular a química do corpo, medita para acalmar a mente, aprende a lidar com as coisas de outra forma mais serena. São infinitos caminhos.

Rivotril é excelente, por exemplo, para quem está tendo uma crise de Síndrome do Pânico e ainda não conseguiu controlar a condição, congelando de medo no meio da rua. Isso tira a pessoa de uma situação perigosa enquanto ela não resolve o problema. Mas é péssimo quando usado como muleta para se anestesiar de frustrações e ansiedades do dia a dia, pois impede que a pessoa desenvolva estrutura e mecanismo para enfrentar adversidades da vida que não podem depender de medicação que mexe na química cerebral para serem vencidas.

Para começo de conversa, anestesiar sentimentos enfraquece a mente da pessoa progressivamente, causando uma regressão a um estado quase que infantil, onde ela fica cada vez mais “aleijada” para lidar com problemas que se apresentem. E, acreditem, ao longo da vida muitos problemas se apresentam. Existem muitas outras formas de se fortalecer e encarar o problema de frente sem precisar fugir dele quimicamente.

Nem vou entrar na questão do quanto se anestesiar impede de evoluir como ser humano, porque quem toma Rivotril “porque o Bolsonaro venceu” está tão preso à matéria que está fora do alcance de qualquer evolução. Vai ter que levar muita porrada da vida até aprender a dimensionar as coisas de uma forma sensata.

Mas, além da questão de virar uma ameba incapaz de lidar com a vida adulta, existem outros problemas mais sérios. Rivotril não é um remedinho mágico e inofensivo como muitos pensam. Coisas muito graves podem acontecer a longo prazo, as chances da pessoas sair pior do que entrou são enormes.

Para começo de conversa, o efeito do Rivotril dura, em média, 18 horas no organismo, ou seja, quem toma o remédio pensando que vai ter oito horinhas de sono gostosas ainda vai ter que lidar por mais de dez horas com aquele efeito. Mesmo que a pessoa não sinta sonolência, sua química cerebral está afetada, assim como seus reflexos, seu estado de alerta. Dependendo da profissão ou do trabalho da pessoa, isso pode ser um problema grave. Fatalmente sua capacidade de concentração e sua memória serão afetados, boa sorte no mercado de trabalho com esse freio de mão puxado.

Outro problema sério é que o Rivotril é muito barato, custa menos de dez reais. Isso faz com que ele seja sempre o remédio escolhido, mesmo quando não é o mais indicado. O preço camarada torna fácil viver à base dele, é mais barato viver de Rivotril do que fumar, por exemplo. E, graças a toda essa cultura dos remédios, do jeitinho e da atrofia na capacidade de lidar com sofrimento e frustração, o Brasil está se tornando uma nação de viciados em Rivotril. Os números são cada vez mais assustadores.

Existem dois tipos de vício: o físico e o psicológico. O físico ocorre quando o cérebro fica dependente daquela substância para funcionar corretamente, perdendo a capacidade (ainda que temporariamente) de produzir aquilo que o Rivotril fornece: como ele recebe aquelas substâncias, dá uma “ordem” para que organismo pare de produzi-las, afinal, já há o suficiente. Assim, a pessoa fica dependente de ingerir aquilo, caso contrário fica sem a substância e as consequências são devastadoras. É um processo de dependência química bem parecido ao da cocaína, com direito a síndrome de abstinência.

Também existe o vício psicológico, onde a pessoa precisa saber que o remédio está lá caso ela precise dele. Geralmente são aquelas pessoas que só se sentem seguras se andarem com uma caixinha na bolsa. Como o remédio não resolve nada, apenas anestesia, quando a pessoa para o remédio, todos os fantasmas que ela tinha camuflado com o medicamento voltam, e ela é obrigada a enfrenta-los. Então, com o constante medo de não conseguir, a pessoa mantem o remédio sempre por perto e fica em pânico se ficar sem ele, mesmo que não o utilize.

Como já foi dito, Rivotril é SOS para períodos difíceis, até que a pessoa se trate com um psicólogo (ou com o que quer que a ajude) e consiga se estruturar para superar o que quer que a esteja derrubando. Ainda assim, um dos principais erros do brasileiro é achar que ele soluciona e que basta continuar tomando que o problema acaba. É assustador ver os comentários de pessoas que fazem uso deste remédio em blogs, fóruns e sites de notícias. A maioria recusa tratamentos para resolver o problema e está disposta a continuar com o Rivotril, comprado na camaradagem por uma receita que a tia da prima conseguiu, para o resto da vida.

Repito: Rivotril não trata. É como se soasse o alarme de incêndio da sua casa avisando que um dos cômodos está pegando fogo e você apenas deligasse o alarme e voltasse a dormir. A casa continua pegando fogo e em algum momento isso vai ser fatal para você. Não dá para mascarar os sintomas para sempre, Rivotril atenua as coisas para permitir que a pessoa se trate de outras formas e consiga superar o problema. Usar Rivotril como tratamento ou solução permanente acaba mal.

Não é brincadeira, é um remédio altamente viciante. Estudos indicam que cerca de 80% das pessoas que usam esse tipo de medicamento ficam viciadas após 2 ou 3 meses de uso, com direito a síndrome de abstinência se parar de tomar de um dia para o outro. E a síndrome de abstinência de Rivotril pode ser tão forte, mas tão forte, que chega a demandar internação da pessoa.

Entre outros sintomas tenebrosos, a pessoa pode ver, ouvir e sentir coisas que não existem, ter delírios de perseguição (como ser perseguida por extraterrestres ou monstros), agitação e até uma crise de depressão. Muitas vezes, para não passar por esse terror de abstinência, as pessoas apenas continuam tomando, o que também é um inferno. Estudos indicam que o uso prolongado deste tipo de medicamento mata mais do que drogas ilegais, como cocaína e heroína.

Além disso, quem faz uso de Rivotril tem a interação com álcool no organismo afetada, ele quase que dobra os efeitos da bebida. Raramente alguém que usa Rivotril se furta de beber, até porque muitos médicos autorizam o paciente a beber “com moderação”, o que no Brasil, é um conceito mais do que relativo. Resultado: mais acidentes, mais coma alcoolico, mais bosta feita sob efeito de álcool.

Há centenas de estatísticas que mostram os perigos do Rivotril, desde um aumento absurdo no número de quedas entre idosos (muitas delas fatais) até o surgimento a longo prazo de problemas de saúde muito mais graves que aqueles que a pessoa estava tentando amenizar com o remédio. Acredite, o saldo final não compensa. Se não consegue acreditar, dá uma lida nos efeitos colaterais que ele pode causar na bula. Não são coisas raras, há alguns com mais de 30% de incidência, e são assustadores.

O problema é: Rivotril é um caminho mais fácil. Olhar pra dentro, enfrentar suas sombras, cavar a vida numa terapia, investir tempo em autoconhecimento em vez de ficar no bar, em redes sociais ou se anestesiando de alguma outra forma, ninguém quer. Dá trabalho. A pessoa prefere sentar na frente do computador ou da TV e ficar horas ali olhando para fora em vez de olhar para dentro.

Some-se a isso que hoje não é socialmente reprovável tomar ansiolítico, afinal, quase todo mundo toma, então, a pessoa não tem uma reprovação social como força motriz para tentar encontrar uma outra solução. Tem até quem faça piada disso, use camiseta com frase louvando o remédio. Uma pena, talvez estas pessoas não saibam que com o tempo o corpo começa a adquirir resistência e o remédio vai parar de fazer efeito.

Se você ficar apenas escorado no Rivotril, cedo ou tarde precisará aumentar a dose cada vez mais (pois a dose padrão para de fazer efeito com o tempo) e o destino final deste caminho é muito, muito tortuoso. Fatalmente chegará um momento que esse aumento de dose vai se tornar inviável, por ser tóxico ou nocivo demais para o organismo e a pessoa vai ter que lidar com uma abstinência fortíssima. Pare por bem, que é mais agradável do que parar por mal.

“Mas Sally, eu não consigo, eu não sei o que fazer, onde procurar”. Consegue sim. Você tem internet, agradeça muito por isso, algumas décadas atrás você de fato não teria onde procurar, mas hoje, você tem toda a informação do mundo a um clique.

Não existe “o caminho” certo para aprender a lidar com as adversidades da vida, existem uma infinidade de opções, às quais você vai ter que conhecer e experimentar, incorporando aquelas que dão certo para você e te fazem bem. Sem preconceitos, qualquer coisa que coloque sua mente em um bom lugar merece ser incorporada à sua vida.

Mas para isso é preciso querer fazer diferente e soltar o apego pelo conhecido, pelo seguro, pelo caminho fácil. É como dizem, quando o aluno está pronto, o mestre aparece. Não existe caminho certo mas existe um mindset básico: você precisa acreditar que consegue e você precisa saber que a resposta, em última instância, está dentro de você, só vai usar ferramentas de fora para conseguir acessá-la.

Ansiedade não é uma condição inerente ao ser humano, não é ok viver o tempo todo ansioso, estressado ou angustiado. Ansiedade é um modo de funcionamento errado da sua cabeça que pode e deve ser corrigido por você mesmo. Acredite, você tem essa capacidade, por mais que a negue o tempo todo. Só porque a maioria de uma sociedade doente vive de forma ansiosa não quer dizer que isto seja normal, muito menos aceitável. Esse papo de “mas todo mundo é” não faz sentido, como já dizia sua mãe, você não é todo mundo.

Não sei qual será o seu caminho para se fortalecer, alcançar estabilidade emocional e ter serenidade para lidar com as adversidades da vida, só posso te assegurar que se for viver à base de Rivotril (e similares) de forma permanente, você está, ainda que inconscientemente, abreviando seu tempo de vida e se fazendo mais mal do que bem. Saia do atalho, do caminho fácil mas que custa muito caro no final. Aprenda a ficar bem com você mesmo sem precisar mexer na química do seu cérebro, seu eu do futuro agradece.

Para dizer que prefere entrar em negação e acreditar que este texto é um exagero, para dizer que você não é viciado e que para a hora que quiser ou para dizer que ninguém consegue lidar sozinho com os problemas da vida moderna (consegue sim): sally@desfavor.com


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