Skip to main content
Casa caída.

Casa caída.

| Desfavor | | 12 comentários em Casa caída.

Um prédio de 24 andares pegou fogo e desabou na região do Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, na madrugada desta terça-feira (1º). O local era uma ocupação irregular, e moradores afirmam que o fogo começou por volta da 1h30 no 5º andar e se espalhou rapidamente pela estrutura. LINK


Tragédia, sem sombra de dúvidas. Mas, pouca gente parece focada no fato de que era uma ocupação ilegal. Desfavor da semana.

SALLY

O Brasil tem umas regrinhas implícitas bastante questionáveis: se alguém te pede desculpas você é obrigado a perdoar, se não o babaca é você. Se uma mulher se coloca em risco e acaba mal, sua parcela de culpa não pode ser apontada. Se a pessoa faz algo errado e se ferra por isso, é igualmente errado apontar sua parcela de culpa. Brasileiro tem essa culpa cristã de falar mal de quem se fodeu, como se a fodeção fosse “castigo suficiente”. Tá errado, pessoas tem que ser responsabilizadas pelos seus atos, independente das consequências deles.

Não falo em punição, falo em responsabilidade. Não tenho dúvidas de que as famílias vítimas desse desabamento estão sofrendo muito e que não queriam esse resultado final, mas elas têm sim sua parcela de responsabilidade. Não estou aqui achando “bem feito”, nem merecido nem nada. Quem comemora outras pessoas perdendo a casa e morrendo não tem um pingo de humanidade ou empatia. Porém, dizer que estas famílias são apenas vítimas… nem 8 nem 80, né gente? Tem quem culpe só as famílias, tem que culpe só o Poder Público e ambos estão se matando em redes sociais em vez de se unir e fazer algo realmente útil.

Era um prédio condenado, há anos interditado, com vários avisos de inspeção que listavam dezenas de riscos e irregularidades. “Mas Sally, as pessoas não tinham onde morar, iam fazer o que?”. Não é como se estivessem morando de graça ali. É cômodo morar naquela localização pagando um aluguel barato. Não são pessoas desavisadas que entraram ali enganadas. Era visível que o prédio oferecia riscos. Rachaduras, interdições e outros fatores tornavam isso visível aos olhos de todos, inclusive de leigos.

Quem enfiou as famílias lá dentro foi um movimento social, e ainda por cima cobrava aluguel deles. Seria possível pagar um aluguel barato e morar na hemorroida do mundo (aquele lugar que fica um pouco depois do cu do mundo) em segurança. Mas as famílias preferiram a comodidade de estar próximas a seus trabalhos. Fizeram uma escolha. Ninguém ali foi enganado ou achou que estava em um lugar seguro. Trabalhei por quase dez anos com esse tipo de problema e posso atestar: é mix de arrogância com teimosia que faz as pessoas ficarem, e não necessidade.

Lembro da primeira incursão que fiz em uma situação similar. Um prédio que desabaria a qualquer momento. O Poder Público tentava tirar as pessoas de lá. Fomos recebidos com pedradas, sacos de mijo e merda jogados pela janela, xingamentos. Alguns dos ocupantes irregulares do prédio ameaçaram me estuprar se eu entrasse. Jogaram paus, pedaços de metal e até tijolos na gente. Os policiais que me acompanhavam nessa incursão, já macacos velhos, não paravam de repetir: “deixa se foder, não adianta conversar, deixa se foder, não vão sair”.

Tentei entrar, tentaram me agredir. Cuspiram em mim. Jogaram coisas em mim. Eu só queria conversar para entender como poderia ajudar aquelas pessoas. Se a polícia não tivesse intervindo, provavelmente teriam me espancado e/ou me estuprado mesmo. Não é blefe, essas pessoas desconhecem civilidade. Depois de muito insistir, o “líder” do movimento veio conversar comigo e eu ouvi, com todas as letras, que eles queriam correr aquele risco, que queriam ficar ali mesmo sabendo que podia desabar e que só sairiam mortos.

Era minha primeira vez, como eu não tinha muita experiência, insisti e fazer o que achava certo: pessoas estavam em risco, elas iam sair, por bem ou por mal. Obviamente, saíram por mal. Morreu gente. Câmeras filmando. Todo mundo que de alguma forma tentou salvar a vida dessas pessoas, saiu como vilão.

As mesmas pessoas que me ameaçaram de morte, de estupro, que tentaram me bater com pedaços de pau, choravam na frente das câmeras como vítimas indefesas, dizendo que o Poder Público chegou lá e barbarizou todo mundo. O mesmo líder que disse que eles queriam correr esse risco deu uma declaração totalmente diferente e mentirosa. Desliga a câmera eles são agressivos, violentos e desrespeitosos. Liga a câmera, são vítimas chorosas sacaneadas pelo Poder Público e pela sociedade.

Então, francamente, existem dois lados. É óbvio que o Poder Público erra. Erra em diversos aspectos. Em primeiro lugar, por não dar destinação a seus imóveis. Pela Constituição, todo imóvel deve atender à função social da propriedade, ou seja, você pode ter quantos imóveis quiser, desde que dê uma destinação a eles. Pela lei brasileira, você não tem o direito de ter um imóvel e deixa-lo fechado, sem uso. Não me interessa se você concorda ou não, essa é a lei. O prédio era propriedade do Governo Federal, que deveria ter dado uma destinação a ele. Ao deixar o prédio abandonado, o Poder Público descumpre a lei, portanto, erra.

Também errara por ter permitido que as famílias invadam/ocupem o imóvel. Se o prédio não estava recebendo destinação por estar em condições precárias, é dever do Poder Público se encarregar de que ninguém chegue nem perto de uma construção que pode representar riscos. De preferência, o prédio tem que ser demolido e algo útil construído no lugar. Da mesma forma, pela lei brasileira, o direito a uma moradia digna é assegurado a todos, então, erram ainda em desviar descaradamente recursos da habitação para seus bolsos, deveriam usar todos os recursos e empenho para reduzir o déficit habitacional.

E, por último, deveria sim retirar as famílias de dentro do prédio, pois elas estavam em risco. Foda-se se querem ou não querem. Mas isso gera desgaste, gera mortes e, principalmente, repercussão negativa. Aos olhos da sociedade, estas pessoas são vítimas. Spoiler: em sua maioria, são pessoas que não tem nada a perder e geralmente tem uma longa lista de condutas duvidosas. Lembro de um dos sujeitos que me ameaçou sendo preso pouco tempo depois por trafico de drogas e, curiosamente, ele foi o que fez o maior chororô na frente das câmeras. Digno de Oscar o drama que ele fez, realmente comovente, realmente parecia uma vítima.

Então, nem 8 nem 80. O Poder Público errou, mas as famílias erraram também. Inclusive foram eles que causaram o curto-circuito que começou o incêndio, severamente agravado pelo fato de que eles jogavam o lixo no poço do elevador em vez de leva-lo para o lado de fora do prédio. Estou dizendo que elas mereciam passar por isso? De forma alguma, ninguém merece. Estou dizendo que também são responsáveis. Não tem mocinhos nem bandidos aqui, apesar de ser super cool meter o pau no Poder Público, apesar de ser regra que o Poder Público só faz merda, é preciso saber identificar uma exceção. Foi um somatório de erros, de ambos os lados.

Se existe algum vilão nessa história, são os movimentos sociais que enfiam essas pessoas em locais de risco e ainda cobram aluguel de gente miserável. Mas, da mesma forma que isso não excluí a responsabilidade do Poder Público, também não excluí a responsabilidade das famílias. Não tem só bandido, mas, podem ter certeza, também não tem só coitado. O grau de baixaria, corrupção e inconsequência que acontece nesses movimentos sociais, ONGs e afins é impensável para pessoas normais, só quem já esteve lá é que sabe do que o ser humano é capaz.

Então, chega de falar mal do Poder Público ou das famílias no piloto automático, chega de tentar polarizar o caso colocando um dos lados como vítima e o outro como opressor, a coisa é muito mais complexa do que isso. Usem suas forças, energia, tempo e voz para pensar em soluções. Soluções diferentes, soluções criativas, projetos, ideias para tentar solucionar o gravíssimo déficit habitacional do Brasil. Apontar problemas, meus amores, todo mundo faz. Não seja essa pessoa medíocre que fica apontando os problemas, seja o 1% que faz a diferença no mundo e aponte uma solução. Não é sua opinião que muda o mundo, são as suas atitudes.

Sejam melhores que a média. Eduquem-se para olhar sempre para a solução e não para o problema. Sejam a diferença no mundo.

Para dizer que achou o assédio na ginástica mais grave, para dizer que simplesmente não se importa ou ainda para dizer que os ocupantes podem não ganhar uma nova casa mas certamente ganharão um Premio Darwin: sally@desfavor.com

SOMIR

Estamos acostumados a viver numa sociedade estruturada, com hierarquia e responsabilidades de governos sobre a população. E não à toa, foi um dos modelos mais funcionais que encontramos até hoje. Escolhemos nossos representantes e eles fazem o trabalho de organizar e garantir o funcionamento da nossa vida. Claro, incompetência e corrupção atrapalham demais esse ideal, mas com o passar das eras, aceitamos esse funcionamento como a melhor resposta possível para os problemas da convivência humana.

O que não quer dizer que existe mágica. Em última instância, ainda somos nossa única rede de proteção contra as intempéries lá fora. Por mais eficiente que sejam as autoridades escolhidas para a missão de fazer a sociedade funcionar, nossas decisões pessoais ainda carregam a imensa maioria da responsabilidade sobre o que acontece na vida de cada um. Podem existir mil leis contra uma ação que ela continua sendo possível. Tenham em vista a quantidade de criminosos em qualquer grupo humano.

Porque infelizmente nem sempre fazemos boas escolhas. Claro que um Estado bom no que faz mitiga as chances de causarmos mal para nós e para os que nos cercam, mas não as elimina. Pessoas erram pelos mais diversos motivos o tempo todo, por melhor que seja o suporte governamental. E é aqui que devemos analisar uma situação como a do incêndio e desabamento do prédio em São Paulo. As pessoas que estavam lá não mereciam morrer, mas colocaram-se numa situação de risco, fazendo uma aposta que pode ter funcionado por anos até que um péssimo dia não valeu mais.

E para ser honesto, vivemos numa sociedade baseada em avisos “exagerados” sobre o perigo das coisas. Via de regra, você não vai ficar doente se comer algo depois do prazo de validade, não vai ser atropelado sempre que atravessar fora da faixa e provavelmente não vai nem ser pego se cometer algum crime (especialmente em países como Brasil). Colocamos avisos no caso de algo dar errado para nos livrarmos da responsabilidade sobre as escolhas alheias. Mas, cá entre nós… vamos concordar que na maior parte do tempo sequer estamos pensando no que pode dar errado. Talvez para o bem até, afinal, a vida seria bem complicada se ficássemos focados demais nos riscos e problemas potenciais dela.

Mas isso não alivia ninguém de fazer escolhas que dão errado. Se for pra pensar em tudo que pode dar errado nem sai na rua, mas escolhas erradas (ou que se tornam erradas a partir de elementos externos à nossa vontade) vão continuar existindo do mesmo jeito. Que aprendamos com cada uma delas, mas de tempos em tempos elas geram tragédias, pessoais ou coletivas. Não sei se é ranço religioso ou colonialista, mas o brasileiro parece especialmente suscetível à ideia de delegar suas responsabilidades para os outros. Especialmente se esses outros forem entidades incorpóreas como deuses ou sistemas políticos de poder.

Quando algum desses seres parece estar no comando, é como se regredissem para a infância imediatamente. Esperando um limite vindo de fora quando fizerem algo errado, alguém que os salve no último minuto se for necessário. E ainda de forma infantil, tendem a ficar putíssimos com quem tenta impor esses limites. O papel ingrato de pais e agentes públicos acaba sendo o mesmo: aguentar o choro da criança para fazer ela comer os vegetais no prato. É terrível para ambas as partes, mas presume-se que o adulto tenha estrutura para aguentar o confronto e o ressentimento da criança por um bem maior.

Se isso ainda funciona na criação dos filhos (os poucos que ainda fazem), não tem lógica nenhuma numa relação entre adultos. A grande vantagem de lidar com adultos é não ter que se desgastar para forçar o outro a fazer algo pelo próprio bem. Se quiser, faz, se não quiser, problema dele… afinal, é um adulto. Pode-se argumentar que a imensa desigualdade social do Brasil gera muitos adultos sem as ferramentas necessárias para tomar decisões saudáveis, pode-se argumentar que os agentes do poder público são responsáveis sim pelas falhas que geram essa situação… mas isso não torna o fato de fazerem escolhas ruins menos impactante nos resultados que alcançam.

Falta ensinar responsabilidade pessoal, falta explicar para as pessoas que o sistema é feito de outras pessoas, que o dinheiro não é infinito e que mesmo com as melhores das intenções, quem tem o poder vai cometer erros. É como se o brasileiro achasse que a única coisa entre a bandalheira atual e um governo que cuide deles como filhos são pessoas roubando dinheiro. É muito mais complexo que isso. Já argumentei isso outras vezes e repito: mesmo sem corrupção, esse país continua na merda por causa da incompetência. Gente honesta pode fazer tudo errado do mesmo jeito.

Não dá pra “jogar pra deus” no caso do poder público. Ele não sabe muito bem o que faz. Você é responsável pelas suas decisões, o Estado existe para garantir que você possa tomar boas decisões e manter os resultados positivos dela. Muito disso vem de reprimir aqueles que atrapalham a vida de quem quer tomar boas decisões e evitar na medida do possível que você tome as ruins. Mas não existe rede de segurança total: se você levar sua família para um prédio condenado e ele desabar, o poder público vai ter feito o básico não chancelando sua opção e tornando aquilo em invasão. Poderia ter tirado todos de lá na porrada para salvar as vidas? Poderia. Mas porque vocês acham que aquelas pessoas estavam lá pra começo de conversa? Justamente por saberem que o Estado seria falho nessa hora. Eles sabiam que o governo fazia besteira e não protegia as pessoas… e estavam lá.

A solução no curto prazo é arrancar na porrada se precisar, mas a solução no longo prazo é ter mais e mais gente que jamais iria morar ali sabendo que o prédio estava interditado e condenado. Se tem algum alento nessa história, foi o Temer saindo se borrando de medo de lá… até pela analogia com toda a história. O Estado não sabe o que faz boa parte do tempo. Ou aprendemos com isso, ou aprendemos sofrendo.

Para dizer que ficou derrubado com a notícia, para dizer que esses casos são fogo, ou mesmo para dizer que os assessores do Temer claramente são petistas: somir@desfavor.com


Comments (12)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: