
Transmusa.
| Desfavor | Desfavor da Semana | 11 comentários em Transmusa.
Parece uma notícia inocente até você começar a prestar mais atenção na mentalidade que se desenvolve para chegarmos nela. Desfavor da semana.
SALLY
Depois de uma semana exaustiva com rato ensaboando o sovaco, orca dando “oi” e gato andando de moto, eis que a gente se depara com esta pérola: “Lutei muito para ser mulher”. Ai ai ai… nem sei por onde começar.
Em momento algum vou entrar em juízo de valor sobre a moça, ela não tem nada com o texto de hoje. É sobre a reação social que quero falar. O que venho defender aqui hoje é a coerência. E não falo apenas por esta moça, que é tomada apenas como um exemplo de algo que vem acontecendo em larga escala: se fosse alguém mainstream, teria sido esculachado(a).
Vamos à sinopse do caso: Uma famosa escola de samba do Rio chamou a moça, que é transexual, logo, simplificando a grosso modo, um homem biológico que sente ter nascido no corpo errado uma vez que se percebe como mulher, para ser musa da escola. Até aí, tá de parabéns: chama quem quer, vai quem quer.
A primeira dissonância vem se a gente analisar que o enredo é sobre a história de grandes mulheres negras. Não que isso obrigue a escola a nada, ela coloca quem ela quiser em seu quadro. Minha birra é com a sociedade: se fosse uma mocinha comum branca, já estariam jogando merda e acusando de racismo pois o tema central é homenagear a mulher negra. Menina branca com câncer é hostilizada no metrô por usar turbante, acusada de apropriação cultural, imagina então o que não teria acontecido se uma moça branca fosse representar um enredo sobre grandes mulheres negras! Mas, curiosamente, não deram um pio.
Se a sociedade, via de regra, cobra uma pertinência temática correlacionando o assunto com quem o representa (e o faz o tempo todo, no cinema, nos acessórios de moda, em tudo!), então, acho bastante complicado que, ao homenagear MULHER e NEGRA se coloque uma pessoa que é homem e branco sem que ninguém reclame. Parece que só existe reclamação quando se prestigia um grupo que não está na moda, mas acredito que migramos para um novo patamar, é coisa pior o que está acontecendo.
E sobre não ser mulher, desculpa, mas isso é um posicionamento subjetivo, tenho o direito de discordar. Eu não acho que seja. E não tem que querer ser, pois é medíocre ter essa ânsia por se encaixar nessa dualidade homem x mulher. Eu posso me sentir negra, isso não faz de mim negra. Eu posso me sentir um homem, isso não faz de mim um homem. Eu posso me sentir um golfinho, como muito bem retratado pelo episódio de South Park sobre o assunto (para quem quiser assistir, primeiro episódio da nona temporada) e isso não faz de mim um golfinho.
Não é aquele papo quadrado de “se não tem útero não é mulher”, pois o que mais tem é mulher sem útero. Não é sobre um órgão, não é nem sobre anatomia especificamente falando. É sobre a mediocridade de querer se encaixar em um rótulo e o desserviço que isso presta para todas os trans do mundo. “A guerreira que batalhou e virou mulher”. Na boa, isso é péssimo para a causa trans. Quem me dera pudéssemos ser aquilo que nos sentimos… mas as coisas são como elas são, não como a gente gostaria que elas fossem. Então, ao vender publicamente que você é o que você se sente, esta moça vende uma ilusão que vai machucar muita gente que acabará acreditando.
Se você partir do princípio que para ser mulher basta se sentir mulher, então ela não lutou muito, pois é algo inato, nasceu com ela, é natural dela. Se você partir do princípio que só é mulher quem troca de nome, está condicionado algo muito complexo e importante a uma burocracia, igualmente um desserviço. Então, não vejo por qual ângulo essa postura não seja um tremendo desfavor.
Para piorar, o estagiário que fez ou editou a entrevista problematiza a “escolha de ser mulher” em uma sociedade machista, seguida de uma resposta que prefiro não comentar. Nunca que uma sociedade crítica e bélica como a nossa deixaria passar uma incoerência dessas envolvendo um homem branco hetero, por exemplo. Ele já estaria sendo detonado sem dó nem piedade, já teria virado Meme, já teria sido ridicularizado de todas as formas possíveis e imagináveis.
Se sentir mulher não te faz mulher. Por mais que esta moça tenha trocado o nome ou até cortado o pinto, ela nasceu com a massa muscular de um homem, a força de um homem. Então, dizer que ela sofre com a vulnerabilidade inerente a uma mulher é ofender não só a inteligência do leitor, como também a biologia. Se um dia a coisa ficar feia para o meu lado e ficar feia para o lado dela, certamente eu tenho muito mais chances de me foder e não conseguir escapar. Papinho de vulnerabilidade quando você tem 4x mais força que uma mulher? Grotesco. No entanto, nem um pio. De ninguém.
Todas as contradições e ginástica argumentativa passaram em brancas nuvens. Nem um pio. Por concordar? Não, se fosse um exemplo similar com alguém mainstream, teriam atacado aos berros. Minha teoria: passa batido por nem sequer refletirem sobre o assunto. É um novo patamar. Explico.
Acredito que houve um tempo onde as pessoas percebiam essas contradições e se calavam por medo de passar atestado de homofóbicas, preconceituosas, transfóbicas ou sei lá o que. Sabemos que pessoas inseguras, ofendidas, reagem a críticas com agressões verbais, faniquito e putez.
Com o passar do tempo, tantas bocas tiveram que se calar para não receberem agressão e acusações em resposta, pois na cabeça do brasileiro médio, crítica é ouvida como ataque e não oportunidade para refletir e melhorar, que isso passou a ser um processo automático.
A pessoa já lê a respeito com a premissa de que não pode criticar internalizada. E, se não se pode criticar, não há razões para uma leitura com senso crítico. Um exemplo concreto para que vocês entendam o mecanismo: me propus a ficar um ano sem comer chocolate. Antes disso, passava nos restaurantes, docerias e lojas e olhava as novidades, perguntava de que era cada chocolate, analisava se os lançamentos tinham sido ou não uma boa ideia. Agora, que sei que não posso comer, nem me preocupo com o que lançam, mesmo que chegue até mim. Se amanhã a Lindt lançar um chocolate sabor “Suor de mula selvagem” vai passar batido: como não posso, mesmo que saiba, não perco meu tempo analisando.
Isso tem respaldo na neurociência: se nosso cérebro tivesse que pensar em todas as nossas decisões diárias o tempo todo, morreríamos. Seria um gasto de energia e uma sobrecarga absurdos, inviáveis para o corpo humano. Então, aquilo que já está estabelecido como um padrão, uma rotina, é rebaixado da categoria de “decisão” para a categoria de “hábito” e é executado automaticamente, sem pensar.
Guardando nossa reflexão para coisas realmente importantes, nosso cérebro tem que escolher as suas batalhas. Assim, acredito que essa sociedade mimizenta conseguiu incutir um padrão cerebral no brasileiro médio de nem sequer analisar quando se fala sobre uma minoria, pois já está estabelecido que não será permitido criticar. Virou hábito nem analisar a questão.
Criticar minoria só desemboca em três caminhos: é inveja, é preconceito ou apenas uma grande injustiça despropositada que vai gerar uma agressão de volta. Minorias não cometem erros, não tem nada a melhorar, não praticam incoerências, não fazem ou falam besteira. Não. Jamais. Em tempo algum. Nunca. Não importa a forma como você tente falar, sempre ofende, mas a culpa é sua. Sim, VOCÊ é o culpado, não importa, o que quer que seja, você é responsável por aquilo. De alguma forma, se distorcem as coisas e eles nunca merecem uma crítica. Não me admira que esse mecanismo do hábito tenha se instaurado.
Então, deixo aqui minha reflexão: o fato de não poder falar em voz alta não pode significar o abandono do exercício de raciocínio. Leia, reflita, observe se é coerente, se é decente, se é plausível. Não se deixem automatizar por essa sociedade mimizenta, um dia a regra do jogo mudar (e atualmente, muda rápido, viu?), quem ainda souber pensar e não tiver medo de se expressar vai sair na frente. Não deixe que gente insegura, ofendida, medíocre cale seu pensamento.
Para me chamar de preconceituosa, para me chamar de invejosa ou ainda para ameaçar com mais um daqueles processos judiciais que nunca vem e passar vergonha pelo blefe: sally@desfavor.com
SOMIR
A sociedade humana evolui nas concessões. Luxos que vamos nos dando de acordo com o quão fácil é cobrir as necessidades básicas para as pessoas. Conceitos como justiça e igualdade não fazem parte do pacote mínimo necessário para a sobrevivência da espécie, mas com certeza tornam essa nossa existência mais agradável quando aplicados.
Quando só o que cabia na rotina de uma pessoa era garantir sua segurança física e ter o que comer e beber, não havia quase espaço nenhum para novidades nos papéis que representávamos. Lei do mais forte com foco elevado em reprodução. Equilibrar o poder entre homens e mulheres e aceitar pessoas que não tinham seus impulsos sexuais focados em gerar descendentes parecia um imenso desperdício de tempo e um risco elevado para a continuidade da espécie.
Mas, com avanços consideráveis na tecnologia e no conhecimento, começamos a viver mais, a população humana aumentou absurdamente num curto espaço de tempo e incrivelmente (para os humanos ancestrais), fomos capazes de mantê-la. Ótimo, a base não está mais ameaçada, temos o luxo de ser mais agradáveis uns com os outros, aceitar mais modos de vida e frequentemente até fazermos coisas só para deixar outros seres humanos mais felizes. Conseguimos um mundo onde mais homossexuais e transgêneros conseguem viver em relativa segurança e até mesmo partilhar de sonhos impensáveis há meras décadas atrás.
Eu não acho ruim que o mundo siga nesse caminho “luxuoso” de não ficar mais patrulhando genitália alheia e principalmente, de permitir que inteligência seja mais considerada como medida de poder do que força física. O caminho parece certo, mas… fico bastante desconfiado se as pessoas em geral entenderam o que sustenta esse caminho evolutivo. Que sempre houve um equilíbrio entre liberdade e opressão necessário para manter a humanidade dentro de um caminho ou outro na era de dominância humana no planeta.
Não sei se entendem que de uma forma ou de outra, sempre houve uma lógica por trás das nossas políticas generalistas como espécie: a lógica da evidente. Numa sociedade onde força física era a forma mais eficiente para se impor e garantir sua sobrevivência, era evidente que o gênero fisicamente mais fraco ameaçava a posição de poder do grupo. Uma mulher muito mais inteligente que a média não servia para impor decisões ao grupo, porque fatalmente seria desafiada a sustentar suas ideias com os músculos. E a natureza não desenvolveu o gênero para esse trabalho. Ficamos menos bestiais, e só recentemente pudemos entregar uma estrutura de defesa de poder eficiente o suficiente para termos mais líderes mulheres.
Homossexualidade também não era prática para manter estruturas de poder baseadas em hereditariedade. Num mundo onde praticamente tudo passava de pai para filho, inclusive o poder sobre nações inteiras, a própria ideia de casar por amor era evidentemente dispendiosa demais para ser sustentável, imagine então casar sem o prospecto de gerar descendentes genéticos diretos? Era evidente para aqueles seres humanos que os conceitos modernos de igualdade e tolerância sexual batiam de frente com a forma como estruturavam o poder. Até por isso, foi a norma durante a imensa maioria da nossa história.
Mas, evoluímos. Força bruta e transmissão de poder hereditária não são mais os únicos caminhos. Conseguimos enxergar além e temos tranquilidade suficiente na manutenção dos sistemas que cuidam de nossas necessidades básicas para aceitar o inaceitável no passado. Um mundo que pune aqueles que atacam homossexuais apenas por serem homossexuais deve ser celebrado. Deu muito trabalho chegar aqui. Mas, não podemos nos esquecer do caminho que nos trouxe até aqui. O caminho da lógica evidente.
Em tempos modernos é evidente que podemos nos dar ao luxo de aceitar o diferente e até mesmo fazer esforços extras para que a existência dessas pessoas seja mais feliz e recompensadora. Um jeito bacana de pensar na notícia que ilustra os textos de hoje é como uma celebração da estabilidade que a humanidade conquistou desde seu começo: podemos colocar um transexual vestido de forma colorida no meio de uma festa gigantesca e bater palmas para ele só porque queremos nos divertir. Não temos mais medo de predadores (animais ou humanos) ou de que falta de reprodução num indivíduo vá fazer qualquer mal à espécie.
Mas, a lógica do evidente parece estar se perdendo nesse processo. O transexual acha que é indiferenciável da mulher ao mesmo tempo que o reacionário acha que nossa espécie corre riscos imediatos! Falar a verdade soa como politicamente incorreto e o discurso de ódio preso há milênios passados continua aceitável. Não há como buscar refúgio num ponto médio. Ou você é uma pessoa horrível por apontar o fato de que o DNA (e todas as vantagens e desvantagens dele) ainda é masculino ou você é uma pessoa horrível por apontar o fato de que não corremos risco algum da sociedade humana afundar por causa de igualdade e tolerância sexual. Incrível como a gente gira, gira… mas volta pro mesmo ponto da polarização.
Talvez esse seja o lado ruim dos luxos da sociedade moderna: tempo livre para problematizar o que não precisa ser problema.
Para dizer que o bacana de tentar ser moderado é que todo mundo te acha uma pessoa horrível, para dizer que é crime não estar de algum dos lados inventados, ou mesmo para dizer que viu as fotos e isso é ainda mais impressionante que a orca que fala: somir@desfavor.com
Aproveitando a temática, não sei se já abordaram aqui, mas poderiam falar sobre a Tiffanny, jogadora trans de vôlei. Ela tá batendo todos os recordes anteriores de pontos mas jura que não tem nada a ver com o fato de ter nascido homem… Tá uma polêmica só.
A gente comentou por alto. É o mesmo princípio: por mais que não se sinta, biologicamente, é homem. É desigualdade, esporte é uma competição de corpos, não de almas!
“Virou hábito nem analisar a questão”.
Tanta polêmica com essa escolha. Escolha de uma singela… porta-bandeira (/turun tss/)
Lembro quando houve a primeira Parada do Orgulho Gay, nos anos 90, a primeira coisa que discutimos no trabalho foi como poderiam ter orgulho de algo que muitos deles alega(va)m ser desde que nasceram.
Pois orgulho mesmo teria de algo a que tivesse me dedicado de corpo e alma a conseguir…Reconhecimento, inclusão, respeito, sem dúvida, seriam pertinentes para justificar a parada. Orgulho? Bobagem. E se, na época, essa questão do orgulho passou batido, quanto mais agora…
E aí me deparei desde então pensando em como mostraria para alguém como estaria orgulhosa de um filho(a) gay dentro dessa lógica torta…
Até que me deparei com esse vídeo, em que o comediante (Norm MacDonald) expressou exatamente o que eu faria…
http://www.youtube.com/watch?v=iX_gUQeZcB8
É seletivo o argumento, né? Na hora de reforçar que é natural, que se nasce assim, que é inerente à alma da pessoa, todo mundo marreta. Mas logo depois vem o discurso do orgulho, do esforço, da superação. Não há a menor coerência nem conexão entre estes dois discursos, mas não podemos apontar isso em voz alta, caso contrário seremos homofóbicos, preconceituosos e até criminosos.
Pessoas que não encontram limites sociais acabam achando que podem tudo e se desacostumam a ouvir não. Criam um mundo de ilusão e vivem nele, com a concordância de todos nós. Evidente que mais cedo ou mais tarde vai dar merda…
Deixa essa turma na masturbação coletiva da internet e bora estudar, fazer cursos, praticar resiliência, dar o nosso melhor. A vida não se constrói com retweets e likes.
Nem quero pensar o que vai ser do Ocidente depois que as gerações anos 80 e 90 morrerem. A partir daí só tem gente inútil e improdutiva. Mas é menos concorrência no mercado de trabalho :D
O problema é que esse mundo de ilusão não é só na internet. Experimenta dizer em algum lugar metade das coisas que eu disse neste texto e você vai ver o que te acontece…
Ela é um “milagre da tecnologia moderna”: está mais “gostosa” do que muita mulher-mulher, e o trabalho para ficar exuberante não é muito diferente das candidatas a diva-musa do Carnaval carioca.
O problema, contudo, é que do ponto de vista masculino (e até do feminino) ela não é mulher. Ponto. Ninguém vai criticá-la na internet, meio no qual toda diversidade é permitida e estimulada – na “vida real”, contudo, muita gente torce o nariz para aquilo que não é natural (e que, em tempos antigos, era confinada ao Gala Gay).
Conseguimos problematizar até o Carnaval, profano (e desinibido) por natureza. Que… coisa…
O trabalho dela é bem menor, com a genética de homem, esse corpo se consegue bem fácil!
Essas minas de academia que tomam bomba, as Gracyanne da vida, tem força de homem? E mulher que virou homem, se tomar testosterona fica forte igual?
Tudo depende de quem você compara: se pegar uma mulher sarada cheia de bomba e comparar com um tiozão de 60 anos sedentário, talvez. Mas via de regra, mulher não consegue ter a mesma força que homem, pois a força não está só no músculo: nascemos com esqueleto, tendões, ligamentos, enfim, uma estrutura toda preparada para suportar um limite máximo muito baixo.