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Anestesia social.

Anestesia social.

| Sally | | 47 comentários em Anestesia social.

Pense nas coisas que você faz nos seus momentos de lazer. Se possível, faça uma listinha. Fez? Ótimo. Agora pense no motivo pelo qual você faz isso: é por estar alinhado com o seu propósito de vida, por contribuir para o bem de outras pessoas ou seu próprio bem, por aprimoramento pessoal ou… é por pura anestesia social?

Complicado generalizar, mas acredito que a maior parte das pessoas hoje busca determinados lazeres, hábitos e relacionamentos apenas em busca de anestesia social: algo/alguém para preencher um buraco, para se escorar, para esquecer daquilo que incomoda. Beleza, não vejo problema em eventualmente se dedicar a uma atividade de anestesia social, ninguém é obrigado a lidar com a realidade o tempo todo. O problema surge quando esta é sua única ou predominante fonte de lazer.

Tem um conceito muito mal entendido no Brasil de que lazer é algo que, por premissa, serve para nos alienar, caso contrário, não é lazer. Cansei de ver espírito sem luz debochando de atividades que eu considero de lazer (como uma noite de jogos ou assistir a uma palestra TED) e dizendo que “se fosse para aprender ia para a escola”. Lazer que tenha algum conteúdo, que acrescente algo (cultura, informação, consciência) é algo muito mal visto, taxado como sendo coisa de gente chata e que não sabe se divertir.

Assim, pelo que observo, há uma crença errada de que onde entra a informação sai a diversão. Não é para menos, com o sistema de ensino tenebroso que temos, com a ode à futilidade das redes sociais, com o culto à zoeira, é natural que acabem criando esta premissa: se aprendo alguma coisa, então não é divertido. Para ser divertido, é indispensável que seja diversão pura. Se não for diversão pura, não é diversão.

Assim, a diversão vazia virou uma obrigação e também uma forma de anestesia social, em um mecanismo que, provavelmente, nem os praticantes entendem direito: para se divertir é preciso esquecer por completo a realidade. A diversão tem que ser 100% ficcional. Sim, redes sociais normalmente são usadas como 100% ficcionais, uma realidade paralela na qual cada um cria a vida e a personagem que mais lhe agrada.

Isso gera um círculo vicioso, onde atividades que podem ter algum grau educativo ou instrutivo são sumariamente rejeitadas, pela falsa crença de que não podem ser divertidas. Isso vai passando de pais para filhos, sendo incorporado de forma definitiva na cultura do país. Lazer é ver seriado, jogar videogame, postar foto que saiu bonita em rede social.

Nem seria tão grave se as pessoas investissem um tempo do seu dia nesse lazer puro e outro em seu aprimoramento pessoal, mas um estranho fenômeno acontece com o brasileiro: para chopinho com amigos, para redes sociais e para falar da vida alheia sempre sobra um tempo, mas para aprimoramento pessoal e para cuidar da saúde, nunca há tempo. As pessoas se entregam a esta anestesia social e não investem em conhecimento, cultura e autoconhecimento. Depois reclamam que não tem reconhecimento profissional, que não sabem qual é o seu propósito na vida e que é muito difícil ser magro. Realmente, com esse lifestyle, é mesmo.

As mesmas pessoas que reclamam não ter reconhecimento profissional, não sabem falar nem inglês, mesmo existindo uma infinidade de aulas online gratuitas e aplicativos para isso. As mesmas pessoas que enchem o nosso saco com a ladainha de estar acima do peso não reservam meia hora do seu dia para sair e caminhar, pular corda ou colocar o corpo em movimento. Só precisa ter um chão onde você mora, lembra? Tem chão no seu bairro? Se tem, bem, você pode se exercitar. Não é acaso, destino ou karma, estas coisas das quais as pessoas mais reclamam são fruto de escolhas.

É mais fácil culpar o outro: o chefe é um filho da puta que não o reconhece, a pessoa é azarada por ser gorda, ela tem nenhuma aptidão especial, por isso não sabe seu propósito. A culpa está sempre em outra pessoa ou em um fator externo. Tudo que se passa que não é de responsabilidade da pessoa, ganha uma aura de inevitabilidade: não tem nada que ela possa fazer para mudar, a culpa está fora dela. Tudo isso para não se livrar do vício da anestesia social.

Se estas pessoas parassem de usar seu lazer/anestesia social para suportar esta escolha de vida, o incômodo ficaria grande demais. Elas seriam compelidas a uma mudança, pois sem anestesia, esse tipo de vida se torna insuportável. Mas sair da zona de conforto dá medo, né? Aí vem mais toneladas de abobrinhas como desculpa para continuar se anestesiando. Ninguém quer sentir a dor das próprias escolhas, isso gera mais dor e uma necessidade cada vez maior de anestesia.

O que será que acontece se a pessoa não puder tomar altas doses de anestesia social? Provavelmente ela vai ter que não apenas olhar para a própria vida, como também será obrigada a sentir aquilo do qual ela vem fugindo. Uma série de verdades e consequências sobre suas escolhas de vida começarão a gritar em sua cabeça. É chato, é ruim, mas é um mal estar necessário para impulsionar uma mudança. Se você vem fugindo dessas coisas, te dou um conselho que parece muito errado, mas que no fim dá certo: deixa a dor entrar. Ela é parte importante do processo para mudar sua vida. Se a realidade de hoje na sua vida é a dor, melhor senti-la de uma vez para poder muda-la.

No geral, a pessoa prefere se anestesiar para continuar na mediocridade. E, vejam bem, cada um leva a vida como quer, quando falo em “mediocridade”, é sem julgamento de valor. O ponto de reflexão é: se a pessoa precisa de constante anestesia social para suportar sua vida, é óbvio que, qualquer que ela seja, não está satisfatória. Ficar na anestesia parece uma escolha possível e sustentável, mas não é. Tem um pequeno detalhe que inviabiliza uma vida assim: enquanto a pessoa se mantiver nesse estado, a vida não flui. As coisas não acontecem, não dão certo, nada na vida da pessoa evoluí.

Em um resumo bem grosseiro, para progredir nessa vida precisamos de consciência (saber o que queremos, por qual motivo queremos e o caminho que vamos adotar para chegar lá) e hardwork (garra, perseverança e disposição para trilhar esse caminho, que fatalmente terá muitos altos e baixos). A anestesia social tira ambos: a consciência e o hardwork.

Aí muitos dirão que recorrem à anestesia social por não ter a menor ideia do que querem. O que veio primeiro, a galinha ou o ovo? Saber o que se quer da vida não é uma dádiva divina para poucos privilegiados. Não é como se um dia você acordasse e fosse tocado por um raio de luz do Espírito Santo e tivesse uma revelação mágica. Saber o que se quer da vida também requer consciência (sobre o que você realmente é) e hardwork (experimentar muitas coisas até se encontrar em alguma).

Se a pessoa não sabe quem é, não vai saber o que a faz feliz. E, novamente, saber quem você é não é fruto do acaso ou sorte. Existem infinitas formas de buscar autoconhecimento: ciência, psicologia, filosofias de vida… todos os caminhos levam ao mesmo lugar, adote aquele que mais te agradar. Basta testar todos eles e mergulhe do que for mais efetivo, como dizem, aquele com o qual você tiver afinidade ou entrar em “ressonância”. Não precisa de dinheiro, só de tempo e atenção.

É possível ler a respeito, assistir a palestras e cursos online sem gastar um centavo. Sugiro, para começar, escutar o que a Marcela Leal tem a dizer sobre o assunto. Por ser uma comediante de standup, ela fala de uma forma mais leve e divertida que os gurus tradicionais do autoconhecimento. Ela também reúne várias vertentes em um só lugar e, apesar de não concordar com todas, é inegável que o trabalho que ela faz é excelente. Veja os vídeos dela, pegue para você o que servir, o que não servir, simplesmente ignore, afinal, quem disse que precisamos concordar com tudo para tirar algum benefício? A vida não é um pacote de adesão.

Apesar do que nos dizem os filmes da Disney, as respostas não vem sozinhas, as coisas não se resolvem sozinhas e não vai aparecer ninguém para te resgatar. Você, e apenas você, é responsável por você. Se em 2017 você viu a vida passar, em 2018 seja protagonista da sua vida. Dá trabalho, mas você é capaz. Todos nós somos. E se não o fizer, ao menos tenha a decência de não passar o ano reclamando no ouvido dos outros: vai pra frente de um espelho e reclame com você mesmo. E sem se anestesiar com redes sociais enquanto reclama: escute-se, quem sabe assim você acorda para a vida.

Para perguntar por qual motivo eu resolvi desgraçar sua semana mexendo em um vespeiro, para dizer que você se acha tão ruim que prefere o autoignoramento ou ainda para dizer que você é tão especial e diferente de todos os seres humanos da face da Terra que nada disso dá certo com você: sally@desfavor.com


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