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Reflexos.

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| Somir | | 2 comentários em Reflexos.

Apenas o som eventual dos carros passando pela estrada interrompe o silêncio contemplativo dos três homens dentro do galpão. Claramente criado para algo muito maior como uma indústria, a construção antiga parecia subutilizada pelos poucos equipamentos espaçados pela estrutura. Os três parecem concentrados em um deles, especificamente. Uma espécie de cabine, alta o suficiente para um homem adulto, acoplada a vários tanques por uma aparentemente infindável estrutura de cabos.

O mais próximo suspira, olha para os outros dois e começa a andar em direção à cabine. Um botão lateral libera a porta, que se abre lentamente gerando uma nuvem de vapor no processo. Ele então entra na cabine. Outro, sentado diante de uma bancada cheia de livros e anotações, interpela o colega:

HOMEM SENTADO: Você tem certeza disso?
HOMEM NA CABINE: Não. Mas não vou ter certeza nunca. Preciso testar.
HOMEM SENTADO: E se você fizer mais um teste de volatilidade da substância?
HOMEM NA CABINE: Já fiz centenas. Não consigo mais prever novos perigos para esse experimento.

O homem sentado parece se resignar. Volta o olhar para um calhamaço de anotações. O terceiro presente no local observa um monitor perto do que parecem ser os controles da máquina com a cabine.

HOMEM NOS CONTROLES: Posso começar o processo?
HOMEM NA CABINE: Eu já configurei tudo. Está num timer.
HOMEM NOS CONTROLES: Por que você fez tudo sozinho?
HOMEM NA CABINE: … não… não sei.
HOMEM NOS CONTROLES: Estou achando que dois minutos é um valor perigoso.
HOMEM NA CABINE: Eu não tinha pensado nisso, é o exato tempo do timer… mas só temos energia para dois minutos.

Um outro homem surge de uma sala lateral. Ele está segurando um livro.

HOMEM COM O LIVRO: Pensando agora, não existe o risco de ficarmos presos no mesmo campo?
HOMEM SENTADO: Faz sentido. Partículas virtuais fazem isso o tempo todo. Talvez nem seja uma função tão esotérica da matéria no final das contas.
HOMEM NOS CONTROLES: Mas o que poderia acontecer?

Outro homem, esse observando gráficos num laptop do outro lado da bancada com a papelada, interpela:

HOMEM NO LAPTOP: É possível que o campo se reescreva com o novo input. Ao invés de atravessar na direção inversa, caímos no mesmo ponto, mas com a energia transformada.
HOMEM SENTADO: Isso não violaria a entropia? Estaríamos criando energia.
HOMEM COM O LIVRO: Talvez não, a energia da máquina poderia ser transformada em matéria para acomodar a repetição. Essa energia continua sendo retirada do ambiente.

Uma nova voz surge, um homem que mexe nos cabos ligados aos tanques atrás da máquina:

HOMEM NOS TANQUES: Acredito que nos precipitamos. Deveríamos ter conversado sobre isso antes.
HOMEM COM O LIVRO: Verdade, por que não fizemos isso?
HOMEM NOS CONTROLES: Não faz o menor sentido, como chegamos nesse ponto do projeto sem fazer uma reunião com toda a equipe?
HOMEM SENTADO: Opa…

Mais uma voz surge próxima a uma das portas de saída:

HOMEM NA SAÍDA: Vocês não estão percebendo? Vocês são todos iguais!
HOMEM SENTADO: Nós… meu Deus!
HOMEM COM O LIVRO: Então estamos presos no mesmo campo.
HOMEM NOS CONTROLES: Somos todos a mesma… pessoa?
HOMEM NOS TANQUES: A realidade se reescreve a cada ativação da máquina!

Mais um:

HOMEM TOMANDO CAFÉ: O ideal é desligar a máquina.
HOMEM PINTANDO UM QUADRO: Impressão minha ou está ficando mais rápido?
HOMEM DOMANDO UM TIGRE: E mais aleatório? AARGH!

O galpão rapidamente é tomado por cada vez mais cópias, cada uma numa situação mais incompreensível que a outra. Alguns surgem e se matam instantaneamente, outros saem correndo do galpão. O homem nos controles começa a entrar em pânico:

HOMEM NOS CONTROLES: Não como desligar o sistema! Não tem como desligar o sistema!
HOMEM NOS TANQUES: E se eu desconectar a fonte de energia?
HOMEM SENTADO: Não! Se você fizer isso, a próxima cópia não vai ter de onde puxar a energia necessária para se materializar!
HOMEM NOS CONTROLES: Então isso acaba!
HOMEM ESCREVENDO COM OS PÉS: Mas aí ele volta como energia pura.
HOMEM DANÇANDO COM UM PALHAÇO: E todos nós morremos na explosão atômica! Haha!

A quantidade de cópias aumenta tanto, tão rápido, que ninguém mais consegue se ouvir numa cacofonia de gritos, tiros e desabamentos da estrutura local.

HOMEM COM O LIVRO: Já sei!

Ele corre por entre as cópias que se multiplicam sem parar, e dá uma ombrada na sua versão diante do painel. Ele digita alguma coisa no teclado, e pouco depois acontece um imenso clarão, todos os sons desaparecendo ao mesmo tempo.

HOMEM NA CABINE: Argh!

A cabine se abre, mostrando um galpão completamente vazio. O homem sai de lá, e volta para perto dos controles da máquina. Na tela do computador, ao invés do sistema, uma nota num arquivo de texto:

“Eu te mandei dois minutos para o futuro ao invés do passado. Gastamos mais da metade da energia disponível do universo nisso, mas provavelmente ninguém vai notar, vão criar uma nova teoria para explicar isso. Desligue e destrua essa máquina dessa vez.”

Para dizer que vai precisar de uma explicação, para dizer que queria mais versões engraçadas dele, ou mesmo para dizer que tecnicamente eu estou errado: somir@desfavor.com


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