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A menina que gritava assédio.

A menina que gritava assédio.

| Sally | | 26 comentários em A menina que gritava assédio.

Era uma vez uma mocinha que trabalhava em uma empresa com muitos coleguinhas. A mocinha se esforçava, mas fazia apenas um trabalho razoável, nunca conseguia se destacar em nada. Seu Papai e sua Mamãe sempre deram mais atenção a outras coisas, fazendo com que a mocinha se sinta deixada de lado. Ela só queria ser especial.

Esta mocinha tinha um amigo oculto, chamado Inconsciente, que tentava aconselhá-la de tempos em tempos. Porém, nem sempre a mocinha entendia os conselhos do Inconsciente da forma correta, pois em vez de se dedicar a tentar escutá-lo e entender a forma como ele se comunicava, ela passava seu tempo investindo em outros amigos, na verdade, falsos amigos, como o Facebook, o Instagram e o WhatsApp, que apenas tomavam seu tempo e lhe faziam mal sem que ela perceba.

Seus falsos amigos a faziam se sentir querida, mas, como tudo que é falso, esta sensação não era totalmente satisfatória. O Inconsciente tentou avisar à mocinha que aquele não era o caminho, mas ela estava muito ocupada para ouvi-lo. Ele tentou de tudo: falar com ela em sonhos, mandar sinais em seu corpo e até impedir que ela consiga pegar no sono. Nada adiantou.

Com o passar do tempo, a mocinha começou a sentir que havia algo errado, mas, por não investir em seu autoconhecimento, continuava sem entender as mensagens do Inconsciente. Uma angústia começou a tomar conta da mocinha e, quanto mais sua angústia aumentava, mais ela apelava para seus falsos amigos, criando um círculo vicioso que só lhe fazia mal.

Um dia, esta angústia acumulada tomou proporções insuportáveis. Ela finalmente sentiu que, apesar de todos os falsos amigos, estava sozinha, não fazia diferença no mundo, não tinha a menor ideia de qual era seu propósito e muitas vezes era invisível para seus colegas. Então, pela primeira vez, ela decidiu escutar seu Inconsciente.

O problema é que quando você não está familiarizado com a pessoa que conversa, que, no caso, era ela mesma, podem ocorrer falhas na comunicação. O Inconsciente, aliviado por finalmente receber a atenção da mocinha, lhe disse: “Mocinha, você precisa conquistar a simpatia e atenção das pessoas à sua volta, a vida é no mundo real, não no mundo virtual. Se você não fizer algo para cativar as pessoas à sua volta, vai acabar sozinha e esquecida”.

Sem saber o que fazer com esta informação, a mocinha continuou pensando. Então, seu Inconsciente, na melhor das intenções, lhe disse: “Não se permita ser apenas mais uma! Queira ser especial!”. A mocinha entendeu esta frase da forma que pôde e desde então, algo mudou em sua cabeça. Ideias confusas que fugiam ao seu controle começaram a aparecer, uma visão de mundo deturpada pelo medo e carência começou a se formar. Isso abriu portas para que um novo amigo oculto apareça na vida da mocinha, a Projeção, um falso amigo que adora enganar as pessoas. Ele induziria a mocinha a erro.

Conversando com um colega de trabalho, a mocinha percebeu nele um olhar diferente. De fato, era verdade, o colega, muitos anos mais velho do que ela, havia perdido uma filha em um acidente de carro e a mocinha lhe lembrava muito esta filha. Por não estar familiarizada com interações ao vivo, graças a seus falsos amigos, a mocinha ficou confusa com esse olhar. Então ela se lembrou da mensagem do seu amigo Inconsciente: “Não se permita ser mais uma!”. O recado era claro: aquele homem a estava tratando como mais uma, cobiçando seu corpo como um pedaço de carne e ela não podia deixar isso acontecer! Tudo obra da Projeção: como a mocinha se via sem valor, presumiu que o resto do mundo a via igualmente sem valor e a tratava assim. Ela não pensou duas vezes.

“Assédio!” – ela gritou. O homem olhou surpreso. “Assédio! Assédio! Assédio!”. Rapidamente, seus colegas de trabalho correram para sua sala, a trataram de forma carinhosa, lhe deram atenção e regalias. A mocinha nunca tinha recebido tanto carinho, ficou deslumbrada com tantos cuidados. Fazia muito tempo que a mocinha não se sentia tão querida e não recebia tanto afeto.

Seu Inconsciente tentou avisar que aquele não era o caminho, mas era tarde demais: a percepção da mocinha havia sido alterada pela mensagem que ela interpretara de forma errada e agora ela tinha certeza de que havia sido assediada. A mocinha não era mentirosa ou má pessoa, ela realmente acreditava no que estava dizendo. Passaria tranquilamente por um polígrafo se fosse necessário, pois estava convicta de que aquilo tinha acontecido. Coitadinha da mocinha, ela era tão ingênua que acreditava piamente que sua percepção sempre correspondia à realidade.

Passaram-se alguns meses e a atenção dos colegas foi diminuindo gradualmente. A mocinha começou a se sentir sozinha e angustiada novamente. Seu Inconsciente tentou enviar uma nova mensagem, desta vez de forma mais clara, na forma de um sonho: “Preste atenção, mocinha: nessa sua busca por amigos, afeto e carinho, você não pode permitir que ocorram abusos ou injustiças”. A mocinha estava tentando decodificar a mensagem, quando outro rapaz esbarrou nela sem querer nos corredores da empresa.

“Assédio!” – ela gritou. O homem olhou surpreso. “Assédio! Assédio! Assédio!”. A mocinha gritava convicta de que estava fazendo a coisa certa, afinal, seu Inconsciente a alertara de que nessa busca ela não poderia permitir abusos ou injustiças e aquilo claramente era um abuso injusto: em sua busca por novos amigos ela vinha sendo mais simpática e o rapaz havia se aproveitado disso e tocado em seu corpo sem o seu consentimento. A mensagem era clara e contra fatos não havia argumentos, afinal, sua percepção sempre correspondia à realidade! A mocinha tinha mais certeza do que nunca e continuou gritando “Assédio!” até seus colegas aparecerem novamente.

Mais uma vez, seus colegas a acudiram, dando carinho e atenção. A mocinha se sentiu amada e cuidada novamente. A sensação era boa. Seu amigo Inconsciente, que graças às más interpretações de suas mensagens, estava agindo sem querer como inimigo, tentou gritar o mais alto que pôde, mas não foi ouvido. Quanto mais ele falava, mais deturpadas eram suas mensagens. É que neste ponto, a mocinha acabara de fazer amizade com outro amigo oculto muito poderoso: o Ganho Secundário.

O Ganho Secundário não era mau, mas tinha seus vícios. No caso específico da mocinha, seu Ganho Secundário era viciado em atenção e carinho. Não demorou muito para que seu novo amigo oculto ofusque totalmente a voz do Inconsciente e dê alguns conselhos bem errados, para justificar seu vício. Como todo viciado, o Ganho Secundário era um negador: não admitia o vício, muito menos que estava norteando seus conselhos para sustentar um vício.

Assim, com os pretextos mais ridículos, o Ganho Secundário começou a convencer a mocinha a se colocar em situações onde poderia ser assediada, buscando na verdade todo o carinho e atenção que viriam depois, como consequência. A mocinha aos poucos foi mudando seu comportamento, se colocando em diversas situações onde era possível antever um risco considerável, escorada pelos pretextos furados que o Ganho Secundário contava: “Você tem o direito de fazer o que quiser, se quiser tomar um táxi pelada, isso não dá ao motorista o direito de fazer nada com você!”. Sim, viciados são terríveis, mentem e enganam o quanto seja necessário para alimentar seu vício.

Este mecanismo continuou por muitos meses. Se por um lado a mocinha gritava “Assédio!” cada vez que se sentia sozinha e carente, convicta de que realmente tinha sido assediada, por outro se colocava cada vez mais em situações de risco para sua incolumidade física sem se dar conta do que estava fazendo, aconselhada pelo seu amigo viciado. Até que um dia, o pior aconteceu.

A mocinha foi agressivamente assediada, por seu chefe, em seu trabalho. Uma experiência traumática. Ela não hesitou e, mais uma vez, gritou “Assédio!”. Só que desta vez, ninguém apareceu. A mocinha percebeu o olhar de descrença nos seus colegas e até mesmo algum olhar de reprovação. Seu amigo Ganho Secundário obviamente ficou desesperado, como qualquer viciado quando é privado de sua droga. Então ele a aconselhou a buscar aquilo que seus colegas estavam lhe negando em outros lugares: redes sociais, delegacia de polícia, programas de TV, não importa, o que ele queria era mais uma dose do seu vício.

A mocinha percorreu todas as mídias e todas as instâncias do Judiciário gritando “Assédio!”. Para sua surpresa, não foi ouvida por ninguém, graças a seu péssimo hábito de gritar “Assédio!” com muita frequência, sem que tenha realmente acontecido. A mocinha estava prestes a cair em depressão, pois perdera sua principal fonte de atenção, carinho e afeto, até que…

Para sua surpresa, foi salva por um velho amigo chamado Internet. A Internet deu voz a esta mocinha e permitiu que outras mocinhas que escolheram viver como ela a escutem. Estas mocinhas se reuniram e fizeram um combinado: já que as pessoas não as ouviam mais quando cada uma gritava “Assédio!”, um acreditaria na outra e lhe daria atenção, carinho e afeto cada vez que uma acusação destas fosse feita. Assim, as mocinhas passaram muito tempo retroalimentando suas necessidades.

Mas o vício é terrível. Se hoje uma dose basta, amanhã provavelmente o viciado precisará de mais. Chegou um tempo onde aquele pequeno círculo simbiótico se tornou insuficiente. Então, as mocinhas decidiram que se juntariam e, unidas, gritariam “Assédio!”, assim poderiam falar mais alto e, quem sabe, seriam ouvidas pelas pessoas. A credibilidade individual já havia sido minada, mas a coletiva não. Não custava tentar.

De fato funcionou por algum tempo, pois ao gritarem juntas, gritaram mais alto, alcançando mais pessoas. Algumas destas pessoas, com coração mais bondoso, com menos maldade ou que nunca haviam sido expostas aos excessivos gritos de “Assédio!” acreditaram cada vez em que elas gritaram juntas. Deram atenção, afeto e carinho para estas mocinhas. Mas, como uma situação dessas não se sustenta por muito tempo, com o passar dos anos todas as pessoas do mundo perceberam que estas mocinhas estavam, na verdade, influenciadas pelo mesmo amigo viciado, o Ganho Secundário, que mente e deturpa para alimentar seu vício.

Assim, gritar de forma coletiva também havia perdido efeito. Elas pararam de receber a atenção, carinho e afeto de que tanto precisavam. A síndrome de abstinência começou a falar mais alto e as mocinhas ficaram realmente transtornadas. O vício é uma coisa terrível, faz a gente esquecer com muita facilidade o que é certo e o que é errado quando conseguimos um bom pretexto para justificar nossos atos. Então, as mocinhas se reuniram para decidir o que fariam para alimentar o vício do Ganho Secundário, que, em suas cabeças, era visto como “fazer justiça”. Impressionante como vícios mexem com a percepção das pessoas.

As mocinhas decidiram que teriam que tomar o poder para isso. Cegas pelo vício, traçaram um plano em três etapas: primeiro iriam desacreditar todos os homens, assim nenhum deles poderia refutar quando uma delas gritasse “Assédio!”. O próximo passo, com os homens neutralizados, seria constranger a sociedade para que não possam ser recriminadas por seus atos, acusando e incriminando quem tentasse desacreditá-las, assim como haviam feito com os homens. E, finalmente, o último passo seria alcançar cargos de poder e alterar não apenas as leis, como também as regras sociais, criando uma sociedade voltada para acolher qualquer mulher que grite “Assédio!”, sem a necessidade de se discutir a veracidade do fato.

O plano corria muito bem, as mocinhas haviam completado os dois primeiros estágios com sucesso e, ao que tudo indicava, chegariam ao terceiro sem maiores problemas. Eis que um novo amigo, ainda mais poderoso que o Ganho Secundário, apareceu e mudou o rumo desta história: o Ego. O Ego, egoísta como ele só, convenceu cada uma das mocinhas de que ela era mais importante, mais sofredora, mais apta a liderar, mais “qualquer coisa” do que as outras. Assim, as mocinhas começaram a brigar entre si, por se julgarem melhores que as outras. Divididas, totalmente focadas no que o Ego falava, elas acabaram brigando e perdendo poder. Seu plano fracassaria miseravelmente.

Hoje as mocinhas estão reclusas, decadentes, e tiveram como única opção buscar a validação, carinho e atenção que precisam em animais de estimação, que, por não falarem, jamais as refutarão. Eu sei que não parece, mas, acreditem, este é sim um final feliz.

FIM

Para dizer que eu sou uma vergonha para a raça feminina, para me acusar de machista ou ainda para dizer que em algum lugar Esopo se revira no túmulo: sally@desfavor.com


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