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E se você se arrepender depois?

E se você se arrepender depois?

| Sally | | 96 comentários em E se você se arrepender depois?

Já repararam que quando uma mulher diz que não quer ter filhos sempre tem um cerumano para dizer “Não quer? Tem certeza? E se você se arrepender depois?”. Já repararam que quando uma mulher diz que pretende engravidar nunca ninguém cogita fazer esta mesma pergunta? Pois é, queria bater um papinho sobre isso…

“E se você se arrepender depois?” pressupõe que a decisão de não ter filhos é irreversível, algo que você deve ter medo de decidir, pois pode gerar um transtorno eterno do qual a pessoa não pode se livrar. Curioso que as pessoas usem esse argumento apenas para contraditar quem não quer ter filhos, já que ter um filho também é uma decisão irreversível. Então, qualquer que seja a escolha é irreversível e existe a chance de se arrepender depois. Por qual motivo então indagar apenas um dos lados?

Talvez se parta da premissa (falsa) que apenas não tendo filhos você pode se arrepender, pois seria impossível se arrepender de ter um filho, de tão maravilhoso que isso é. Isso não é verdade. O que acontece é que ninguém tem coragem de admitir, nem para si mesmo, que se arrependeu de ter filhos, pois dificilmente alguém tem a maturidade emocional de perceber que isso não quer dizer que não ame muito seu filho. São duas coisas bem diferentes, que a maior parte das pessoas não tem refinamento emocional para distinguir.

Mas, meus amigos, mesmo quando tentam esconder, o arrependimento pode se manifestar de diversas formas nesta vida, inclusive de forma indireta e camuflada. Não é socialmente aceito dizer (e nem ao menos confessar para si mesmo) que filho dá muito mais trabalho e despesas do que você imaginava e que está exausto, arrependido e de saco cheio. Qualquer pessoa que chegue perto de pensar assim vai enterrar isso fundo e se obrigar achar o contrário com as mais diversas gincanas argumentativas. Convencionou-se pensar que se você se arrepende, é por não amar o seu filho, uma bela duma mentira. Mas a pessoa dá sinais disso, ah dá…

Felizmente, o ser humano não é muito competente na hora de esconder sentimentos. Existem atos, posturas e escolhas de vida que, de forma implícita, demonstram sim um arrependimento. Mas há um pacto social de fingir que não vê, pois arrependimento de ter filhos é tabu, ninguém ousaria acusar uma coisa dessas. Um exemplo muito comum que tenho visto são pais surtando pois colégio dos filhos vai entrar de férias no meio de ano. Os pais simplesmente não conseguem suportar, dar conta e entreter filhos dentro de casa o dia todo. Isso mesmo, pais que não conseguem conviver o dia todo com seus filhos, ficam de saco cheio, perdem a paciência, mal podem esperar para as aulas recomeçarem. Feio, né?

Se você fica exausto e de saco cheio de ficar full time com seu filho por vários dias seguidos, não me odeie, mas eu acho que você meio que se arrependeu de ter filhos e não tem coragem de confessar isso nem para você mesmo. Ficar de saco cheio do filho de vez em quando faz parte, mas ficar de saco cheio sempre que tem que passar vários dias full time com ele é cheirinho de arrependimento enterrado.

Nada contra, crianças são chatas e exaustivas, super te entendo, você tem todo meu apoio e compaixão. O que não pode é se sentir assim e continuar fazendo propaganda do quão maravilhoso é maternidade e paternidade, por uma questão de coerência, né? Se você não aguenta seu filho full time por vários dias, não deve ser tão maravilhoso assim, não é mesmo? Você sabe, lá no seu íntimo, que se passar vários dias com seu filho vai ficar de saco tremendamente cheio e louco por um descanso? Então não seja hipócrita. Se você não consegue suportar de boa, muito feliz, 15 dias seguidos o dia todo com seu filho, bem… reflita.

E para você que, assim como eu, ousou ser mulher e não querer ter filhos, algumas considerações sobre essa odiosa frase.

“E se você se arrepender depois?”. Se eu me arrepender depois estarei serena e consciente de que, na época, tomei a decisão racional com base no que eu achava melhor para mim e, como adulta que sou, lidarei com as consequências disso da melhor forma possível. Ninguém morre por não ter filho, ninguém é menos mulher por não ter filho e, calma, não gritem e não desmaiem, ninguém é menos feliz por não ter um filho. Você pode ser menos feliz se tiver um filho e ele morrer, pois já experimentou a alegria que é ficou sem ela, mas quando não se tem filhos, investimos a busca da nossa felicidade em outros lugares, tão válidos e eficientes quanto. Pois é, não existe apenas uma forma de ser feliz. Quem tem filhos por medo de faltar algo, de uma vida incompleta, os tem pelos motivos mais errados do mundo. Medo não pode ser motivo para ter um filho.

Se eu me arrepender, terei orgulho de olhar para trás e ver que não tomei uma decisão importante como essa por pressão social, familiar ou marital. Por mais que, no fim das contas, eu termine a vida achando que foi uma decisão errada não ter filhos, saberei que tive culhões de fazê-lo e, sim, sentirei orgulho de mim, afinal, como eu disse, ter filho por medo (no caso, medo de me arrepender) é muito feio. No contexto social em que vivemos, acho motivo de orgulho ter coragem de não ser mainstream. Nunca tive vocação para fazer o que todo mundo faz e isso me auto-mata de orgulho. Eu não sou mais uma, eu sou eu. Filho é coisa séria, é muito feio dar um passo importante como esse por medo.

Se eu me arrepender depois, posso adotar uma criança. Não acho minha genética nada fundamental nem privilegiada a ponto de ter que passa-la adiante (spoiler: não somos tão importantes). O amor não está no DNA, ao menos, não deveria. Quem faz questão de filho com mesma genética provavelmente está tendo uma criança por vaidade, outro motivo errado.

Se eu me arrepender depois, tenho a opção de focar em todas as coisas que posso fazer justamente por não ter um filho: total liberdade para relacionamentos, poder fazer meus horários como melhor desejar, poder dedicar muitas horas do meu dia para mim e para atividades que eu goste, poder gastar meu dinheiro basicamente comigo e com coisas que eu ame e, acima de tudo, poder decidir o que eu gosto e o que me dá prazer. Pais acabam vivendo em função de filhos e se anulam: gostam de agradar ao filho, o que lhes dá prazer é o que dá prazer ao filho, os programas legais são os programas que divertem o filho. A pessoa esquece o que ela quer, o que ela gosta. Mesmo que eu me arrependa, saberei que levei uma vida investindo em mim, no meu querer, na minha vontade. Isso não tem preço. Quantas pessoas podem bater no peito e dizer que viveram assim?

Se eu me arrepender depois, saberei que arrependimento não basta para me deixar infeliz. Saberei que eu, como pessoa adulta e inteligente, tenho grande capacidade de adaptação e de buscar minha felicidade em diversos lugares, em vez de concentrá-la em outro ser humano, o que, diga-se de passagem, não é saudável e é um tremendo peso para esse ser humano. Dormirei em paz, sabendo que eu sou tão inteira que tenho a capacidade de ser feliz por vários caminhos diferentes, pois a minha felicidade não está em fatores externos como filho, casamento ou dinheiro, ela está dentro de mim, ao alcance da minha mão e eu sei e posso fazer o que for preciso para alcança-la, trilhando pelo mais diferentes caminhos.

Se eu me arrepender depois, muito francamente, talvez baste olhar para o lado e ver minhas amigas, que, em sua maioria, tiveram filhos com as pessoas erradas e pelos motivos errados. Olharei para o lado e vou respirar aliviada por não me encontrar com 40 anos, separada, tendo que recomeçar minha vida amorosa, dar conta de uma criança sozinha vários dias por semana, quase que detonando minha vida pessoal e financeira. Respirarei aliviada por não engolir traição de marido ou casamento sem amor e/ou sem sexo pensando no bem da criança ou no quanto minha qualidade de vida ($$$) vai cair se eu tiver que me separar. Uma rápida espiada à minha volta vai me mostrar que filhos não são esse mar de rosas que unem casais e deixam mulheres plenas. A realidade não é um comercial de margarina.

Se eu me arrepender depois, bem, é a vida. Fiz a escolha que achei mais correta e, como qualquer escolha, sempre há o risco de arrependimento. Mas, que se foda, eu fiz o que eu quis, não é isso que conta? Quão triste deve ser tomar uma decisão importante como a de ter filhos baseada no medo de se arrepender depois? Não, obrigada. Posso ter muitos defeitos, mas medíocre eu não sou.

Não vou fazer filho sem ser com o grande amor da minha vida, sem ser com um pai excelente e emocionalmente maduro, tendo tempo para conviver diariamente (no café da manhã e na janta é mole, assim eu tenho dez filhos!). Não vou ter filhos deixando babá, avó ou creche passarem mais tempo com ele do que eu. Não vou ter filhos sem a mais completa e absoluta certeza de que os quero e que estou com um parceiro que amo e tem maturidade, equilíbrio e inteligência emocional para criar uma criança.

Destas condições, meus queridos, eu NÃO VOU ME ARREPENDER, são as condições que eu considero mínimas para criar um ser humano da forma decente. Acho é questão essencial ligada à minha ética e caráter, sempre vou achar uma maldade que não se faz nem com cachorro: colocar na sua vida sem ter muito, muito, muito tempo e inteligência emocional para dedicar.

Agora eu te pergunto, você que tem ou pretende ter filhos: E se você se arrepender depois? Eu posso buscar fontes alternativas de felicidade, projetos pessoais e profissionais. Posso viajar o mundo, me dedicar a um grande amor, aprender idiomas, dança, estudar, me aprimorar, iniciar uma startup, empreender, dar aulas, fazer outra faculdade, criar gado, virar astronauta. Em resumo, eu posso fazer tudo que eu quiser da minha vida, exceto ter um filho com a minha genética (apesar de sempre poder adotar).

Já você, que vai ter um filho, tem um leque muito menor de possibilidades para lidar com isso caso de arrependa: independente de qualquer coisa, você vai ter que ter um filho como prioridade. Todo santo dia cuidar, educar, alimentar, vestir, dar banho, etc. Você não vai poder fugir disso e vai ter que encontrar sua felicidade com menos tempo, recursos e disponibilidade emocional. Para quem será que o arrependimento vai pesar mais? Não seria melhor a sociedade começar a fazer essa perguntinha cretina para quem pretende ter filhos?

Então, comecem a perguntar para quem quer engravidar se a pessoa não tem medo de se arrepender. Não tem medo de investir uma vida em um filho e ter um filho e ele ser morto pela violência urbana? Já pensou? (parabéns a todos os que criam filhos no Rio de Janeiro por ter sangue frio de assumir esse risco, eu jamais teria). Ou de ter um filho e ele acabar virando um viciado que vai trazer sofrimento e criminalidade para dentro de casa? Ou de tantas, mas tantas outras coisas que podem dar errado. Ao não ter um filho, só uma coisa pode dar errado para mim: me arrepender de não ter um filho. Porém, ao ter um filho, olha, tanta coisa pode dar errado e causar arrependimento, que eu acho prudente que a perguntinha seja direcionada a quem vai ter, e não a quem não vai ter.

Essa ilusão social de que filho é sempre uma benção, de que automaticamente e inevitavelmente você vai amar seu filho e ser sempre feliz não importa o que aconteça e essa suposta garantia de que se você tiver filhos não vai se arrepender é um tremendo desfavor social. No fundo, lá no fundinho, a pessoa sabe que está arrependida, mas não tem coragem de assumir, pois se considera como algo monstruoso, terrível e condenável. Todos nós temos uma vozinha lá no fundo de nossas cabeças que vez por outra nos assopra umas verdades. Há quem chame de anjo da guarda, há quem chame de Deus, há quem chame de inconsciente. Muita merda pode acontecer no caminho, ao contrário do meu caso, onde só pode acontecer uma merda relacionada ao assunto.

Tive apenas uma amiga, uma psicóloga muito bem resolvida, que me confessou que se arrependeu de ter filhos apesar de amá-los muito. Excelente mãe e amava de verdade seus filhos e cuidava como uma mãe deve cuidar, priorizando de verdade. Porém, admitiu que comprometeram sua vida de uma forma que ela não gostou. Acho que ainda vai demorar séculos para que as pessoas se libertem desse medo de julgamento e consigam admitir isso para terceiros e até para elas mesmas. As pessoas precisam ser libertas dessa obrigação de achar lindo ter um filho! Quem sabe aí parem de perguntar “E se você se arrepender depois?” para quem não vai ter filhos e passem a perguntar para quem vai ter filhos.

Para ambos os lados, ter ou não ter filhos, se você se arrepender depois a resposta é a mesma: lide com isso. O que não tem remédio, remediado está. E, convenhamos, é muito mais fácil lidar com liberdade absoluta e menos despesas do que ter que lidar com todas as restrições de um filho. Cá entre nós, meus amores, se tem um arrependimento que deveria realmente assustar, é o de ter filhos, e não o de não ter.

Então, se alguém vier te atormentar com essa falácia de “E se você se arrepender?”, explique para a pessoa que, se você se arrepender, tem todo o resto do mundo para focar e se dedicar e encontrar sua felicidade em qualquer outra coisa – e sim, é possível, não existe uma única forma de ser feliz. Já quem tem filho e se arrepende, carrega essa cruz limitante para o resto da vida, apesar de amá-lo muito.

Do fundo do coração, recomendo que guardem essa perguntinha nefasta para as mocinhas que querem engravidar…

Para se ofender, para se ofender muito ou ainda para se ofender muito mesmo: sally@desfavor.com


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