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Relatos de um médium cético.

Relatos de um médium cético.

| Desfavor | | 8 comentários em Relatos de um médium cético.

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Relatos de um médium cético.

Durante minha adolescência, ao longo dos anos eu ficava em negação de que estava envelhecendo. Bradava aos quatro ventos de que não aceitava nenhuma religião, de que nunca iria me casar, de que nunca teria filhos, enfim, eu queria evitar ao máximo ter qualquer tipo de compromisso com o mundo adulto. Porém, após conhecer a Kitsune (ela, sempre ela) pouco a pouco esses pensamentos foram mudando. Comecei a aceitar a passagem do tempo, comecei a aceitar a diversidade teológica e após um ultimato por parte dela, embarquei na aventura de ser pai. Tive que abrir mão de muitas coisas para ter um mínimo de maturidade para cuidar de uma criança, algumas delas foram bem difíceis, mas valeram a pena.

V – Pandinhas

Kitsune é cadeirante e tem certa dificuldade em engravidar, por isso, começamos um tratamento para que pudéssemos ter um filho. Dessa maneira, a decisão de ter um filho era mais consciente e assertiva do que pelo método de tentativa e erro das relações sexuais. A partir do momento que eu fizesse a coleta de esperma e ela do óvulo, estaríamos embarcando em um caminho sem volta, já que o tratamento é bem caro para se arrepender ou desistir. Mesmo com medo do futuro, mesmo com medo de colocar mais uma criança nesse mundo maluco e mesmo achando que eu ainda não estava pronto para ser pai, fiz a coleta e nove meses depois minha pandinha nasceu.

O nascimento dela foi bem conturbado, já que minha esposa não poderia receber a anestesia peridural por ter uma haste na coluna. Por isso os médicos teriam que dar uma anestesia geral e me foi avisado de que minha filha nasceria dopada. Eu estava mentalmente preparado, mas não emocionalmente, já que no momento que ela nasceu, não chorou. Ao não escutar nenhum choro, fiquei em pânico e senti o tempo parar. Eu não conseguia pensar em nada, a não ser: “Chora menininha, vamos lá, você tem que chorar”. Enquanto isso, os médicos e enfermeiros corriam de um lado pro outro, falando termos técnicos que me deixavam só mais nervoso achando que alguma coisa tinha dado errado. Em questão de momentos, que pra mim pareceu uma eternidade, ela finalmente começou a chorar e o tempo voltou ao normal após eu respirar fundo. Após um tempinho, um dos enfermeiros veio me perguntar:

_Você quer vê-la?

_Sim. – respondo

_Não vai se impressionar com o sangue?

_Acho que não, já trabalhei no Mário Gatti.

O enfermeiro riu e me levou até minha filha, que ainda estava sendo limpa da placenta e do sangue. Ela abriu os olhos e me olhou. Mesmo sabendo que ela não conseguia enxergar nada, sentia que ela me via até na alma. Já eu, olhando aqueles olhinhos, tive a sensação de que já a conhecia a tantos anos, de que já sabia qual seria sua personalidade e a vi crescendo em minha mente, com sua vida inteira passando em questão de segundos apenas na profundeza daquele olhar. Me tiraram da sala e me levaram para o quarto aonde elas ficariam. Esperei durante horas até que minha esposa chegasse no quarto e mais uma hora até que a pandinha fosse trazida para conhecer a mamãe. Creio que minha esposa tenha sentido uma conexão maior que a minha, já que as duas passaram longos minutos abraçadas, apenas uma olhando pra outra. O momento se quebrou apenas com o chorinho dela, querendo mamar.

Mais ou menos um ano depois a Aline teve o AVC dela, que me deixou paranoico com relação ao assunto, que por sua vez me levou ao terreiro como vocês já sabem. Não me lembro se foi na segunda ou na terceira visita ao terreiro, mas lá estava eu conversando com o Sr. Sete, o Exú que foi meu primeiro grande amigo e conselheiro do mundo espiritual, quando ele diz algo que já estava sentido:

_Você vai ter mais um filho, será um menino. Ele será um menino especial, que virá com uma missão espiritual muito forte e será de sua responsabilidade guiar essa criança. É uma missão difícil, pois crianças assim são muito impulsivas, com grande energia física e emocional. Se você não souber conduzi-lo, ele facilmente se deixará levar pelo ódio desse mundo, se fechando em amargura e rancor. Por isso, se prepare meu filho, você e sua esposa terão que ter muita paciência.

Ao chegar em casa, contei aquilo para Kitsune e ela começou a questionar que não era possível, que teríamos que fazer outro tratamento. Na época morávamos na casa da mãe dela e eu vivia estressado por não ter total controle sobre a educação da minha filha, então fiz que fiz para comprarmos um apartamento e nos mudarmos o mais rápido possível. Após um ano da mudança, comecei a sentir cada vez mais a presença de uma criança, que por vezes eu chegava a escutar pedindo para nascer. Certa noite, após ter uma relação com a Kitsune, fiquei acordado sozinho na escuridão e senti uma presença. Era Vó Benedita, a preta velha que é a guia dirigente do terreiro aonde vou. Ela se aproximou, deu um beijo de boa noite em Kitsune, me deu um beijo no rosto e sussurrou:

_Está feito, ele está vindo.

Não contei nada para Kitsune, para não deixá-la incomodada com o assunto. Um mês depois, era dia de eleição e ela me diz que a mestruação está atrasada. Dou um pulo dessa altura e grito:

_Você está grávida!

_Que nada, atrasar um pouquinho é normal.

Fui votar e de teimoso passei na farmácia pra comprar um teste de gravidez. Custou a alma para convencê-la a fazer o teste, mas fez. Deu positivo. Estranhando o resultado, ela diz:

_Devo ter feito errado, vai lá comprar outro.

Vou lá, compro outro teste. Positivo novamente. Já chorando, ela ainda não acredita:

_Vamos fazer teste de sangue, nem que tenhamos que pagar.

No dia seguinte fomos ao laboratório e fizemos o teste de sangue, que só ficaria pronto no próximo dia. Quase morrendo de ansiedade, abro o site do laboratório e vejo o resultado do teste. Positivo e agora não tinha mais o que ter dado errado. Ficamos como duas crianças, chorando na frente do computador, vendo aquele resultado tão inesperado. Algumas semanas depois foi festa de Cosme e Damião e lá vamos nós, a família inteira, conversar com a Vó Benedita:

_Eu falei pra vocês se prepararem que o menino estava vindo, agora é com vocês. – diz a preta velha.

Minha esposa abraça a mãe de santo/ preta velha com tanto carinho que me impressiona, já que até aquele momento ela não era muito propensa a acreditar nesse lance de espiritismo, incorporação, etc. Os meses passaram, confirmando que era mesmo um menino, sendo que toda a gravidez foi acompanhada por um médio muito gentil, que aceitou fazer o parto sem cobrar um centavo. Apesar de termos convênio médico, ele só cobre o parto feito em emergência, caso o paciente prefira marcar data e horário, isso é cobrado a parte, um dinheiro que não tínhamos na época. Pra mim estava claro que meus amigos espirituais estavam conduzindo toda a situação, para que dessa vez tivéssemos um parto mais tranquilo e uma situação financeira diferente da nossa filha.

Chega o grande dia, me avisam novamente que vai ser anestesia geral, que ele nasceria dopado e la ia eu, preparado mentalmente, mas não emocionalmente. E ele nasce chorando, me aliviando de toda aquela tensão e rapidamente o enfermeiro me leva pra vê-lo. Ao ver meu filho, parecia que ele brilhava, vibrando em pura luz branca e ele me olha, aquele mesmo olhar que fulmina a alma. Porém, diferente da minha filha, ele me parece uma força desconhecida, a força de alguém que eu teria que aprender a conviver, que seria obrigado a entender, mas que seria meu companheiro nos momentos mais difíceis, enquanto que minha pequena era mais meu porto seguro sentimental e minha esposa era a minha fortaleza. Tive a certeza de que nossa família estava completa, de que juntos passaríamos pelas maiores dificuldades mas que sempre nos apoiaríamos.

A adaptação do novo pandinha não foi fácil, minha filha teve crise de ciúmes e voltamos a morar na minha sogra, o que voltou a me deixar transtornado. Porém, a cada vez que eu achava que ia perder a cabeça, olhava pro meu menino e sempre sentia a presença dos espíritos irmãos que nos ajudaram durante sua gestação. Isso me acalmava e ao mesmo tempo me dava forças. Certo dia, ele aprendendo a falar, diz sua primeira palavra com muita clareza:

_Vovó.

Durante algumas semanas vovó era a única palavra que ele falava, depois veio mamãe, papai e aí desandou a falar de tudo. Após muitos surtos meus de querer sair da casa da sogra, minha esposa aceita em voltar para o apartamento. Ela sofreu muito com a readaptação, com a aceitação de que não iria conseguir fazer muitas coisas e prometi a ela que nunca faltaria com o meu compromisso de pai, que estaria sempre presente. Abri mão de sair com os amigos, de ir pra academia, de ir pro terreiro e até mudei meu horário de trabalho para sempre estar junto dela e dos meus filhos. E eles foram crescendo, ficando mais conscientes das dificuldades da mamãe e sempre tentam ajudá-la, principalmente meu menino. mesmo sem pedir, ele sempre se mostra prestativo, pronto pra ajudar e ao mesmo tempo é tão manhoso, sempre pedindo colo e carinho. Às vezes, nós cansados, perdemos a paciência por termos que dar tanta atenção a sua energia que parece nunca acabar, mas dái nos lembramos que isso havia nos sido avisado e tentamos nos controlar.

Certa noite, tentando fazê-los dormir, minha filha pergunta:

_Papai, aonde eu estava antes de nascer?

Eu quase nunca respondo as respostas dos meus filhos, prefiro deixá-los tirar suas próprias conclusões, então respondo:

_Aonde você acha?

_Eu acho que eu estava no céu, eu era uma estrelinha. Meu irmãozinho também era uma estrelinha, mas eu vim antes pra mostrar pra ele que nascer era legal.

Olho pra ela e começo a rir, daí ela me diz:

_Papai, sabia que às vezes vem um velhinho aqui em casa?

_Um velho? O que ele vem fazer?

_É papai, ele vem ver nossos totôs (paninhos que meus filhos usam pra dormir) e deixa um pozinho mágico igual da sininho neles.

_E ele vem sozinho?

_Não né papai, ele vem sempre com um menininho. Ele é um erezinho né papai?

_É sim.

_Papai, você pede pro erezinho parar de fazer bagunça nos totôs?

_Peço sim, mas como ele é criança você empresta um pouquinho pra ele?

_Empresto sim, mas só um, não precisa bagunçar todos.

Fico rindo sozinho e espero eles dormirem, vou dormir com a certeza de que a melhor decisão de minha vida for ter aceitado todos os desafios que só a paternidade proporciona.

Por: Tender


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