
Enquanto isso…
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Enquanto isso, durante a madrugada numa área rural da cidade:
HOMEM: Senhor das Trevas, aceite minha oferenda e mostre-se para mim.
O homem, vestido com um manto negro, repousa sobre um pentagrama desenhado com sangue no chão de terra batida. Ao redor do símbolo, velas e restos de animais sacrificados. Depois de alguns segundos, um pequeno foco de luz avermelhada surge diante de seus pés. Com um flash, uma forma demoníaca aparece à sua frente.
DEMÔNIO: O que desejas, mortal? Diga seu nome e pedido. Meu tempo é valioso.
HOMEM: Meu nome é Arnaldo e desejo vida eterna, riquezas… poder!
DEMÔNIO: E o que ofereces em troca?
ARNALDO: Minha alma imortal.
DEMÔNIO: Assinarás um contrato com sangue, contrato que jamais poderá ser quebrado.
ARNALDO: Sim, mostre-me o contrato.
VOZ: Opa, opa… não! Não foi assim que combinamos.
O demônio revira os olhos enquanto materializa-se ao seu lado um outro homem, muito bem alinhado, portando uma prancheta e uma caneta.
ARNALDO: Quem é você?
HOMEM: Boa noite, sou um consultor de atendimento contratado para garantir a otimização deste processo. Um minuto, por favor. Senhor… Mizolial Belzebul, o quinto, correto?
DEMÔNIO: Agora ele sabe meu nome, seu imbecil!
ARNALDO: Mizolial Belzebul, o quinto, eu te comando a ser meu servo pela eternidade!
DEMÔNIO: Sim, senhor.
CONSULTOR: Na verdade, não. Nossa empresa fez cada um dos funcionários assinar um contrato de exclusividade, o que torna inválido o arranjo verbal que acaba de ser feito. Era uma falha absurda no regimento interno.
ARNALDO: Não é assim que funciona!
CONSULTOR: Nisso concordamos. Qualquer um podendo subtrair mão-de-obra especializada do Inferno mencionando apenas um nome? Terrível para os negócios. Mas já está corrigido.
DEMÔNIO: Então eu posso simplesmente matar esse mortal insolente que tentou me aprisionar?
CONSULTOR: Apenas nas suas horas livres. Você está em horário de serviço.
DEMÔNIO: Eu não sabia que eu tinha folgas!
CONSULTOR: Não tem. Tecnicamente você está sempre em horário de serviço, se tiver problema com isso, consulte seu sindicato.
DEMÔNIO: Tem um sindicato?
CONSULTOR: Não. Por que você acha que não tem folgas? Mas, temos um departamento de consultoria jurídica trabalhista ao qual você pode se dirigir. Neste momento meu foco está em otimizar a transação que estava prestes a ser feita.
ARNALDO: Isso é normal?
CONSULTOR: Exatamente. Senhor Belzebul, nossa nova orientação no setor de pactos é prezar pela transparência e boas práticas comerciais. O que infelizmente ficou faltando no seu atendimento ao cliente potencial.
DEMÔNIO: Por que diabos o chefe foi contratar vocês?
CONSULTOR: Você nos vê como vilões agora, mas o trabalho que fazemos é essencial para o equilíbrio das contas do Inferno e sua viabilidade continuada. Senhor Belzebul, estou aqui para garantir que você continue tendo um emprego.
DEMÔNIO: Argh… você não tem água benta por aí?
ARNALDO: Eu?
CONSULTOR: Em primeiro lugar, precisamos de uma análise mais realista dos valores envolvidos no pacto. Se não estou enganado, o cliente pediu vida eterna, riqueza e poder, correto?
ARNALDO: Sim, foi isso que eu pedi!
CONSULTOR: O senhor tem o pleno direito de fazer seu pedido, porém, nosso caro senhor Belzebul deve fazer a avaliação da viabilidade do mesmo. Vamos fazer um exercício de fixação, ok?
DEMÔNIO: Se eu me arrepender, eu vou para o céu agora?
CONSULTOR: Não. Está no contrato. Vamos para o exercício: o cliente pediu riqueza, correto? Ele especificou a quantia?
DEMÔNIO: Não.
CONSULTOR: Então, quem vai definir o quanto é riqueza?
DEMÔNIO: Não sei…
CONSULTOR: No caso Rockefeller contra Inferno ficou definido que riqueza não especificada em contrato deve se conformar à definição do cliente. Você sabe o quanto o senhor Arnaldo aqui julga riqueza?
DEMÔNIO: Não.
CONSULTOR: Senhor Arnaldo, o quanto você julga riqueza, em dólares, por favor.
ARNALDO: Um bilhão?
CONSULTOR: Compreendido. Está anotando?
DEMÔNIO: *bufando*
CONSULTOR: Você não está anotando.
O demônio faz surgir um pergaminho nas mãos, e com a unha começa a escrever algo nele.
CONSULTOR: Senhor Arnaldo, no seu pedido também havia a questão do poder. No caso Stalin contra Inferno, ficou definido que poder também é uma medida pessoal caso não definida em contrato. Então, por favor, defina o que espera com poder.
ARNALDO: Ser dono de uma grande empresa, ter funcionários e amigos no governo…
CONSULTOR: Defina faturamento anual da empresa e quais cargos no governo de que local você deseja ter poder de influência.
ARNALDO: Deixa… com um bilhão eu resolvo tudo isso depois.
CONSULTOR: O senhor abre mão do poder em contrato?
ARNALDO: Sim… só vamos logo com isso, está um frio terrível aqui.
CONSULTOR: Anotando?
O demônio rosna, mas continua anotando.
CONSULTOR: E por fim, vida eterna. Correto?
ARNALDO: Sim.
CONSULTOR: Defina vida.
ARNALDO: Não sei… estar respirando?
CONSULTOR: Então, se o senhor respirar pela eternidade, considera a condição respeitada?
ARNALDO: Isso tem cara de pegadinha…
CONSULTOR: Estou obrigado a te informar que todos os pedidos relacionados com vida eterna vem sim com uma contrapartida negativa.
ARNALDO: Deixa pra lá.
CONSULTOR: Perfeito. Anotado?
DEMÔNIO: SIM!
CONSULTOR: E agora, a avaliação da viabilidade econômica. O senhor Arnaldo deve entregar sua alma imortal pela soma de um bilhão de dólares. Senhor Belzebul, isso parece um bom negócio?
DEMÔNIO: …
CONSULTOR: Senhor Arnaldo, quando o sistema de troca de bens materiais em vida por almas imortais foi aplicado, tínhamos não mais do que algumas milhões delas disponíveis. Hoje temos quase oito bilhões. O senhor está familiarizado com o conceito de inflação?
ARNALDO: Quanto vale a minha alma?
CONSULTOR: Direto ao ponto. Gosto do seu estilo. Estamos autorizados a te oferecer até dez mil dólares parcelados em doze vezes pela sua alma imortal.
ARNALDO: Oi? Só isso?
CONSULTOR: Considere que podemos apenas especular que você vai fazer alguma coisa horrível durante sua vida e recebermos sua alma da mesma forma no inferno, porém sem custo algum. Vamos concordar que você já não deve estar em bons lençóis com o criador por estar tendo essa conversa conosco.
ARNALDO: Dez mil? Não dá pra ser um milhão pelo menos?
CONSULTOR: Quinze mil. Doze parcelas. Oferta final.
ARNALDO: …
CONSULTOR: Que pena. Provavelmente nos veremos daqui a alguns anos. Passar bem.
ARNALDO: Espera…
CONSULTOR: Pois não?
ARNALDO: Aceito os quinze.
CONSULTOR: Doze.
ARNALDO: Mas você disse quinze!
CONSULTOR: E você demonstrou se importar mais com o resultado do acordo do que nós. Aceite os doze antes que eu resolva voltar para dez.
ARNALDO: Feito!
CONSULTOR: Excelente. Senhor Belzebul, acredito que você seja capaz de finalizar os trâmites legais e coletar a assinatura em sangue do senhor Arnaldo. Tenho mais consultorias para fazer, mas espero que todos tenhamos aprendido lições no dia de hoje. Uma boa noite para ambos.
O consultor desaparece numa nuvem de fumaça. Arnaldo e o demônio se entreolham.
ARNALDO: Quando eu for para o inferno, vou ter que ver ele de novo?
DEMÔNIO: Não. A sede da consultoria fica mais pra cima…
Para dizer que foi tecnicamente um texto bom, para dizer que a sua alma deve estar valendo menos ainda, ou mesmo para dizer que o diabo está nos detalhes: somir@desfavor.com
Somir, esse Arnaldo é uma figura…Se o que ele tem pra oferecer é sua alma imortal, pra que diabos ele quer obter vida eterna? Alem do mais, ele é descuidado: como é que ele me faz uma sandice dessas ao tentar aprisionar o ser demoníaco sem usar a ameaça de destruir o selo do mesmo? Como esperava ter sucesso na negociação sem ter antes conhecido o básico da Goethia?
Parece que não era apenas eu que desconhecia a existência de sindicatos para demônios. O do conto, alem de simpatizante do cristianismo, é um DM (demônio médio) burro e alienado que negligencia conhecer seus próprios direitos.
Somir,
Dos melhores Des contos dos últimos tempos.