Skip to main content
Relatos de um médium cético.

Relatos de um médium cético.

| Desfavor | | 7 comentários em Relatos de um médium cético.

Desfavor Convidado é a coluna onde os impopulares ganham voz aqui na República Impopular. Se você quiser também ter seu texto publicado por aqui, basta enviar para desfavor@desfavor.com.
O Somir se reserva ao direito de implicar com os textos e não publicá-los. Sally promete interceder por vocês.

Relatos de um médium cético.

Sou uma pessoa confusa, que sempre busca aquilo que mais tenta manter distante. Por exemplo, quando eu era adolescente, morria de medo de alienígenas, mas mesmo assim não conseguia parar de estudar sobre ufologia. Tanto fiz que acabei virando colaborador da revista UFO, a maior revista de ufologia do Brasil. Já de espíritos não sentia medo exatamente, eram mais sensações estranhas que me faziam sentir um arrepio na espinha. Em algumas épocas, eu fazia o máximo para não ficar sozinho em casa, com medo de que alguma coisa estranha acontecesse. Repito, não era medo, era uma expectativa tensa de que alguma coisa ruim fosse acontecer. Sozinho ou não, elas aconteceram.

III – Sombras

Dois anos após me mudar para Campinas, conheci minha primeira namorada. Nós éramos muito parecidos e éramos muito ligados, mas acabamos nos separando após 4 anos de relacionamento. Isso foi na mesma época que meu pai começou a ter problemas de saúde, o que acabou impactando ainda mais na carga emocional pela qual eu passava. Antes de nos mudarmos para a casa perto do shopping do texto anterior, morávamos em um apartamento no centro de Campinas. Meu pai se recuperava de uma de suas inúmeras cirurgias e passava muito tempo em Socorro, cidade que fica a uns 100 km de Campinas. Foi lá que eu nasci e todos meus parentes moram lá, inclusive minha mãe, que não é separada do meu pai, mas que precisou morar lá por causa do trabalho. Quando eu ficava sozinho naquele apartamento, eu sentia coisas estranhas, sensações ruins. Comecei a ficar meio deprimido, com a sensação constante de que eu ia ter um surto a qualquer momento. Eu tentava desviar essa sensação focando na faculdade e no meu estágio na Unicamp, mas era difícil controlar a sensação de pânico que eu sentia.

Certo final de semana minha irmã veio para Campinas e pedi para ela dormir no meu quarto, para evitar de ficar sozinho mais uma noite. No meio do sono sinto alguém me cutucando, achando que é minha irmã, acordo. Ao lado dela, vejo uma menina de uns 5 anos, loirinha, de cabelos encaracolados, me olhando com muito medo e apontando para a porta. Ao olhar para a porta vejo uma sombra parada, com dois olhos brilhantes. Apesar de ser apenas uma silhueta, consigo identificar que é uma figura masculina. Ele fica lá, apenas nos olhando, parado na porta sem se mover. Era a primeira vez que eu via algo assim com tanta clareza, pois sempre que eu via espíritos eram apenas vislumbres ou coisas rápidas. Aquela sombra ficou lá durante alguns minutos a me encarar e eu não conseguia fazer nada além de encará-la de volta. Foi a primeira vez que senti medo de verdade e ao contrário das outras coisas que eu via, que apareciam e sumiam do nada, a sombra saiu pela porta “andando”. Não fiz questão de segui-la, apenas continuei deitado, paralisado pelo medo.

Daquele dia em diante, comecei a ter um distúrbio conhecido como Paralisia do Sono. Eu dormia mas continuava consciente, pensando, escutando o que estava acontecendo ao meu redor e desesperado para tentar acordar e recobrar minha consciência. Muitas vezes eu gritava mentalmente e quando acordava, achava que havia gritado de verdade, mas descobria que tudo havia acontecido apenas na minha cabeça. Com a paralisia, comecei a ter muitos pesadelos. Na maioria deles eu era apenas um espectador, como se eu estivesse vendo apenas um filme. Minhas noites alternavam entre pesadelos e tentativas desesperadas de acordar da paralisia. Nas vezes que eu conseguia acordar, me via na escuridão do quarto, com a sensação de que alguém havia acabado de sair dali.

Quando fui para a casa perto do shopping, as crises diminuíram e deram lugar ao que relatei no último texto, mas voltaram com força quando saímos de lá e nos mudamos para um outro apartamento. Nesse novo apartamento meu pai já estava bem e eu já estava namorando a Kitsune, então era um contexto completamente diferente da tristeza e depressão que eu havia passado nos anos anteriores. Quando resolvi contar para Kitsune todas as coisas que haviam acontecido comigo e que estavam voltando, ele me aconselhou:

_Da próxima vez que tiver uma crise, reze com força um Pai Nosso. Peça para Jesus e Nossa Senhora intercederem por você e verá que essa entidade irá embora.

Kitsune sempre foi devota de Nossa Senhora e possui uma força interior que sempre me impressionou. Desde a primeira vez que a vi, percebi que ela era uma mulher diferente. Não só pelo fato de ser cadeirante, mas também por ser uma pessoa que não desistiu, seguiu em frente e conquistou sem espaço em uma época em que inclusão social praticamente não existia. Por isso, dei ouvidos aos conselhos dela e sempre que percebia uma crise se aproximando eu rezava mesmo não acreditando naquilo. As coisas foram melhorando, até que certa noite eu estava sozinho em casa, deitado na cama, quando tenho a sensação de que alguém entrou no apartamento.

_Droga, vou ser assaltado, estuprado e esquartejado. – penso.

Desligo a televisão e finjo que estou dormindo, achando que se fosse um ladrão ele iria me deixar em paz e levar o que quisesse. Abro um dos olhos e olho o reflexo da TV, de repente uma silhueta aparece andando e parando na porta. Sinto seu olhar através do reflexo da TV e me lembro daquela outra noite em que havia visto uma sombra no quarto. Junto coragem e me viro lentamente e olho para a porta. No fim das contas não era uma pessoa, mas sim a mesma sombra de anos atrás, ainda parada na porta. Começo a rezar mentalmente, pedindo para Jesus, Nossa Senhora, anjos, santos ou quem quer que fosse para me ajudar. A sombra então começa a andar, vindo em minha direção e pula na cama. Em questão de segundos ela está em cima de mim, tentando me estrangular enquanto continuo a rezar em voz alta. Numa medida desesperada, dou várias socos na sombra e continuo a rezar. Pouco a pouco ela vai perdendo as forças e começa a sumir, evaporando diante dos meus olhos.

Após ela sumir de vez, continuo deitado com a adrenalina a mil, apenas tentando recobrar o fôlego. Me levanto, acendo a luz e procuro pelo apartamento se há mais alguém ali. Não encontro mais nada e vou ao banheiro me aliviar de toda a tensão. Lavo o rosto e me olho no espelho, vejo leves marcas de dedos no meu pescoço, que aos poucos também vão sumindo. Não consegui mais dormir naquela noite e no dia seguinte contei tudo para Kitsune:

_Tenho certeza que agora não vai mais acontecer isso, mas continue rezando.

Rezei mais alguns dias, mas acabei parando. Daquele dia em diante não tive mais paralisia do sono, não tive mais pesadelos e nunca mais vi a tal sombra. Até que certo dia, já no terreiro, começo a conversar mentalmente com o preto velho que me acompanha. Nessa conversa, começo a questionar se realmente incorporo ou se estou fingindo:

_Se você acha que está fingindo, porque não faz um teste? – propõe o preto velho.

_Que teste? – pergunto

_Tente desincorporar sem seguir o método ensinado pelo terreiro, veja o que acontece.

Faço então essa desincorporação forçada e a sensação que tenho é de que deixei um portal aberto no meu campo de energia. Imediatamente sinto alguém entrando pelo portal, invadindo minha mente. Vejo apenas dois olhos brilhantes e um sorriso, que desta vez fala:

_Agora você é meu filho da puta, quero ver você me tirar daqui.

Entro em desespero, imaginando como poderia mandar aquela entidade de volta ao lugar de que tinha vindo. Atrás de mim o Preto Velho ressurge e me acalma:

_Filho, eu estava aqui o tempo todo, apenas observando o que ia acontecer. Essa sombra te persegue a tanto tempo, mas já é hora dela tomar o rumo dela. Você já sabe onde pode encontrar luz, não precisa mais ter que passar pelo tormento da escuridão. Reze comigo.

O preto velho que me acompanha também é devoto de Nossa senhora, então juntos começamos a rezar e a expulsar a sombra de dentro da minha mente. Ela xinga e tenta reagir, mas as orações são mais fortes e ela some. Depois daquele dia nunca mais duvidei do processo de incorporação e nem achei mais que eu estava fingindo.

O tempo se passou, meus filhos nasceram, cresceram e outro dia estou dormindo, quando sinto alguém me cutucando. Abro os olhos e vejo uma menininha, loirinha e de cabelos encaracolados, me olhando com muito medo:

_O que foi filha? – pergunto.

_Papai, pode vir dormir comigo? Estou com medo de ficar sozinha.

Me levanto e vou com ela até o quarto. Falamos baixinho, para não acordar meu outro filho:

_Do que está com medo baixinha? – pergunto.

_Estou com medo do bicho papão, papai.

Minha filha não costuma ter medo e anda no escuro como se fosse dia, então respondo:

_Filha, não existe bicho papão.

_Existe sim papai. O bicho papão mora nas sombras…

Por: Tender


Comments (7)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: