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As pedras do meu caminho – Parte 11

As pedras do meu caminho – Parte 11

| Sally | | 22 comentários em As pedras do meu caminho – Parte 11

CAPÍTULO 23 – NA CLÍNICA EVANGÉLICA: CHUTES E ORAÇÕES

No último capítulo, nosso herói havia sido internado em uma rehab de Cristo. Seu primeiro dia na clínica evangélica começou com um culto. Pilhão estava de joelhos, só que em vez de estar orando como deveria, estava pegando no sono. O pastor resolveu o problema de forma nada cristã: deu um baita chute no Pilha, que caiu no chão gemendo de dor. Logo depois, veio um funcionário de cassetete na mão, e o obrigou a ficar novamente de joelhos e continuar orando. Se no amor não foi, desta vez ele experimentaria na dor.

A rotina do Pilha, além de orar, era acordar quando o sol ainda não havia nascido e desempenhar tarefas rurais, coisas como capinar, plantar, cuidar de porcos e vacas. Não sei ao certo o quanto isso contribuiu para ajudar com sua dependência química, mas certamente o ajudará a ganhar A Fazenda, se ele um dia entrar no programa. Na torcida. Obviamente ele demorou para se adaptar a essa nova realidade e com essa “disciplina” na base da porrada de Cristo.

Ele conta uma breve sinopse de sua estadia ali: “Era um lugar radical, nem sapatos a gente podia usar. Chutavam quem não orasse, usavam cassetete, batiam. O tratamento incluía até máquinas de choque! Foi muito difícil, porque tinha que acordar às 05:30h, ir para o culto, orar, tomar café da manhã e depois trabalhar na roça. Não havia acesso a rádio, televisão, qualquer tipo de informação era proibido. Nem jornais, revistas, nada! Só a Bíblia. Apesar de tudo isso, eu quis ficar lá. Foi a maior internação que já tive, de agosto de 2000 a outubro de 2001. Estava disposto a continuar por séculos, se necessário, desde que me curassem. Já tinha perdido mais de dez anos da minha vida por causa do vício, então, tempo nenhum seria longo demais para mim, se me dessem a certeza de que sairia recuperado. Sofri todos os dias, mas tive um despertar espiritual e encontrei sentido para a minha vida!”. Aparentemente, o espírito acorda na porrada mesmo.

Nas crises de abstinência, continuava fazendo loucuras, inclusive colocando sua própria vida em risco, geralmente com sua tática favorita: engolir objetos estranhos. Seu “guardião” (pessoa encarregada de zelar por ele na clínica) conta alguns casos: “Na primeira crise, engoliu bucha e parafusos. Aí saiu correndo, pegou o discman, tirou a pilha e engoliu também. Gritava o tempo todo `Vou morrer se não me tirarem daqui´ (…) Fazia ameaças: `Vou pedir uma indenização milionária se me acontecer alguma coisa aqui´, aí ele caia no chão e fingia uma convulsão, era um artista nesses momentos”. O problema era que essas pessoas evangélicas eram mais malucas que maluco, pela primeira vez ele encontrou uma trava real, pessoas dispostas a serem mais loucas do que ele.

Quando percebeu que o Pilha fazia chantagem emocional, seu guardião resolveu o problema rapidamente: “Foi minha vez de gritar: `Pastor, esse cara tá fingindo! Vamos parar ele na raça, ele tá pensando que é inteligente mas não me engana não! Vou arrancar as calças dele e vou bater na bunda dele!”. Segundo ele relata, na mesma hora Pilha acordou da “convulsão”, levantou e saiu andando de boinha.

Ainda assim, era preciso ir ao pronto-socorro, pois ele tinha engolido de tudo um pouco. Foi levado para um hospital, mas, graças ao cabo de guerra que os crentes travaram com ele, passou tempo demais e uma das pilhas já tinha saído do estômago e estava no intestino, o que obrigou os médicos a fazer uma cirurgia muito complicada. Conclusão: tivera que alugar dois quartos separados por um vidro, um para o Pilha, outro para seguranças, para impedir que ele não fuja e que a imprensa não tenha acesso a ele. Mesmo assim o caso vazou e foi um novo escândalo. A clínica tomou um puta prejuízo financeiro, pois teve que arcar com a cirurgia e internação e ainda ficou com fama de um lugar que não tem controle dos pacientes. Os crentes não ficaram felizes.

Com o passar do tempo, a permanência do Pilha na clínica foi reavaliada, pois foram diversas tentativas de fuga onde ele atentava contra a própria vida ou ficava agressivo. Levaram a questão ao psiquiatra, que, em laudo, disse que ele seria “mais do que irrecuperável”. Porém, seu guardião lutou para que o Pilha ficasse ali, e acabaram chegando a um consenso: ele ficaria, desde que medicado.

Adiantou? Claro que não adiantou. Os médicos contam que nunca viram um caso como o do Pilha: “Mesmo anestesiado ele tentou morder um cateter” (quem rir vai para o inferno). Se nem anestesia parava o rapaz, não seriam comprimidos a realizar essa façanha. Um mês depois, ainda em recuperação da última cirurgia e devidamente medicado, Pilha fez graça novamente. Engoliu mais duas pilhas. Nova internação. Perceberam que remédios não bastavam, então agora ele ficaria medicado e com vigilância 24h por dia. Mais: apenas homens poderiam vigiá-lo, pois, segundo narram, ele “seduzia e persuadia” mulheres.

Porém, a vigilância nunca é 100% eficaz. Pessoas se distraem, pessoas falham. E quando isso aconteceu, o Pilha não perdoou: engoliu uma caneta Bic e um lápis. Voltou para a mesa de cirurgia. Redobraram os cuidados, colocando mais gente para vigiá-lo. Adiantou? Não adiantou. Passou um tempo e ele engoliu mais duas pilhas novamente! Desta vez, o médico se recusou a operar: “Não vou operar, tentaremos expulsar as pilhas com laxante. Não vou te enganar: se você engolir mais algum objeto estranho, você morre! Vai ter aderência no intestino e aí não escapa!”. Pilha ficou uns dias se cagando todo, encharcado de laxante, e conseguiu eliminar as pilhas pelas vias naturais, o que lhe rendeu o apelido de “lanterna” no hospital, pois as pilhas saíam por trás.

Pensa que as ameaças do médico assustaram o Pilha? Negativo. Passou um tempo e ele engoliu uma escova de dentes, para sair da clínica e tentar fugir quando estivesse no hospital. Como cirurgia não era mais uma opção, tiveram que retirar a escova de dentes por endoscopia, procedimento que foi apelidado de “pescaria” pelos médicos. Durou mais de quatro horas. Mesmo anestesiado, cada vez que os médicos conseguiam pegar a escova de dentes e puxá-la até a garganta com o aparelho, ele fazia força e a engolia novamente. Chegou a um ponto onde meteram a mão mesmo e puxaram no dedo a escova para fora da garganta.

Depois de cinco internações por engolir objetos, a clínica jogou a toalha e admitiu que não adiantava nem remédio nem vigilância, era preciso uma nova estratégia. Lembra que eu falei que pela primeira vez ele achou gente mais maluca do que ele? Pois é.

Quando Pilha teve sua próxima crise de abstinência, foi apresentado à nova estratégia. Começou a gritar que queria sair dali e que ninguém o impediria, ao que os médicos responderam “Daqui você não sai nem morto!”. Resposta do Pilha: “Saio sim, você vai ver como eu saio. Vou fazer isso até morrer e vocês vão ver quem é mais louco aqui!”. Imediatamente ele correu para pegar uma caneta, no que entrou em ação o novo plano da clínica.

Enfermeiros amarraram o Pilha à cama, passando cordas por suas mãos e seus pés, depois amarraram seu peito à cama com uma faixa grossa e, para completar, colocaram um capacete na sua cabeça. Saem do quarto e trancam a porta, deixando-o imobilizado e com um capacete na cabeça em um quarto completamente escuro. Esta seria a realidade do Pilha pelos próximos 3 meses: amarrado à cama, em um quarto escuro, com portas e janelas fechadas, e com um capacete na cabeça. Deus deve estar orgulhoso dessas pessoas tão bondosas.

Segundo o próprio Pilha conta, nunca tiravam o capacete, apenas abriam a viseira três vezes ao dia para lhe dar comida e depois fechavam de volta. Sorte dele não ter vomitado, se não teria morrido. Ele também diz que não era desamarrado nem para ir ao banheiro ou tomar banho, assunto que me permito não abordar por ser nojento demais até mesmo para uma piada. Depois de três meses, o guardião do Pilha pediu que ele fosse solto e ofereceu uma solução alternativa: Pilha iria morar com ele, na casa dele e seria de total responsabilidade dele, assim, o que quer que que acontecesse, não respingaria na clínica.

Decidiram soltar o Pilha, que conta como foi: “Quando soltaram as amarras e me tiraram da cama, eu não sentia mais meu corpo. Tinha desacostumado com o peso dele, por ter ficado três meses deixado, sem poder me mexer (…) levei vários dias para conseguir voltar a andar”. Mas, o próprio Pilha confessa que o castigo foi tão ruim que depois disso ele nunca mais engoliu nada, de onde depreendemos que pessoas como o Pilha de fato funcionam melhor na dor. Fica a dica.

O pavor de voltar para aquela situação de confinamento, amarrado, fez com que o Pilha andasse na linha. Pilha acompanhava seu guardião no resgate de pacientes que eram levados para internação e começava a tomar gosto pela prática. Mas, o Pilha é o Pilha, e a convivência com ele nunca foi fácil. Com o tempo, seu tutor começou a perceber isso. Um belo dia, o Pastor responsável pela clínica disse que estava pensando em fazer um filme sobre a vida do Pilha, que adorou a ideia e teve uns surtinhos megalomaníacos. Porém, para isso, era preciso que ele cedesse todos os direitos de imagem para que o valor arrecadado com o filme fosse usado com a clínica. Pilha não topou, então o Pastor disse que não seria possível fazer o filme. Pilha ficou puto. Pilha ficou muito puto.

Chegando em casa, seu tutor interveio e disse que Pilha deveria ceder os direitos do filme ao Pastor, o clima esquentou e o Pilha partiu para cima de seu tutor. Obviamente Pilha levou a pior ao brigar com um homem de 1,90 de altura e 160kg. Saiu bem machucado do evento, teve até que levar alguns pontos. Pilha diz que a agressão foi injusta e desmedida, que só engoliu porque a outra opção era voltar para o inferno de viver amarrado com um capacete na cabeça. Detalhe: tudo isso aconteceu na véspera de seu aniversário.

No dia seguinte, seu aniversário, ele recebeu a visita de Dona Sylvia e de sua avó Yolanda. Ao encontrarem o Pilha todo arrebentado, perguntaram o que aconteceu. Quando ele contou a história, Dona Sylvia deu razão ao tutor, usando a frase “Faz parte”. Mãe coruja. Apenas Yolanda se revoltou e bateu boca com o tutor, que não mediu palavras: “Eu disse para dona Yolanda, com todas as letras: `Bati no seu neto sim, mas é melhor bater do que fazer garrote para aplicar cocaína, como a senhora já fez no braço dele!”, informação esta confirmada pelo Pilha. Uma família muito saudável: a mãe acha normal que espanquem o filho, a avó o ajuda a usar cocaína. O filme, óbvio, acabou não acontecendo. Era Gezuiz guardando esse roteiro para mim!

A poeira abaixou e ele fez as pazes com seu tutor. Eles se aproximavam cada vez mais e o Pilha se abria cada vez mais com seu tutor. Acabou contando coisas pesadas, como o fato de ter descoberto que sua própria mãe o roubava. Pilha continuava trabalhando na clínica de dia e à noite voltava para casa com seu guardião. Até que um dia, teve um siricotico no meio da plantação, uma espécie de flashback da sua vida, provavelmente causado pelas drogas, mas que ele atribuiu conotação religiosa.

Sentiu um medo inexplicável e pediu ajuda a Deus. Ficou parado na mesma posição por horas, chorando, até que anoiteceu e foi encontrado pelo Pastor, que ao vê-lo jogado no chão e chorando perguntou o que aconteceu. Pilha disse que havia falado com Deus, que algo havia se transformado dentro dele. Conversaram e o Pastor deu seu parecer: “Você foi tocado pelo Espírito Santo! Esse toque divino significa um novo chamado da vida. Está chegando a hora de voltar para casa!”. Pilha ficou feliz, mas não por muito tempo.

Por “voltar para casa” o Pastor entendia o Pilha gravar um CD evangélico, divulgar o trabalho de Deus, abrir sua clínica de reabilitação e se casar com uma moça evangélica que eles já haviam arrumado. Pilha ficou decepcionado, mas cogitou levar o plano adiante, nas suas palavras por motivo de: “seria uma chance de eu voltar a ter uma vida sexual”. Porém, Dona Sylvia não concordou. Amarrar o filho na cama por três meses com um capacete ok. Espancar o filho, ok. Mas casar? Não, não pode.

Apareceu na clínica e tirou o Pilha de lá no mesmo dia. O Pastor lamenta: “a moça escolhida para ele é uma cristã, que hoje tem marido e filhos, além de trabalhar como personal training. Rafa poderia ter sido feliz com ela, poderia ter formado uma família, finalmente teria um lar. Com certeza não teria vivido momentos trágicos como prisão e tentativas de suicídio, que vieram depois que deixou a clínica”. Alega que Dona Sylvia só queria o dinheiro, pois só deu as caras para resgatar o filho quando ele estava pronto para trabalhar novamente.

Pilha, por sua vez, saía muito feliz da clínica, que ele classifica como a pior de todas em que já esteve internado. Apesar de todos os horrores que passou ali dentro, nunca tinha ficado tanto tempo sóbrio desde que se viciou e, agora que sabia que era possível, saiu confiante. Levou um choque ao voltar para a realidade, principalmente ao saber que os EUA haviam acabado de sofrer o atentado de 11 de setembro. Apesar disso, ele sentiu que todo o sofrimento tinha valido a pena. Mas, tadinho, nosso herói ainda tinha muita merda para enfrentar…

Para dizer que esta coluna é uma fraude pois a história do Pilha se conta sozinha, para dizer que o amor cristão é estranho ou ainda para dizer que eu deveria começar a escrever esse roteiro: sally@desfavor.com


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