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A anatomia da ofensa.

A anatomia da ofensa.

| Somir | | 4 comentários em A anatomia da ofensa.

É um tema recorrente, não só aqui mas em virtualmente todos os lugares onde se questiona a onda do politicamente correto: as pessoas parecem ofendidas com tudo! Parece que as palavras nunca foram tão poderosas como nos dias atuais. Muito se fala sobre o que ofende ou não, muito se fala sobre se devemos controlar o discurso ofensivo ou não… mas… como se ofende? Não é razoável ir na raiz de um problema se queremos lidar com ele?

Alguma coisa está acontecendo para em tão poucas décadas passarmos de ser aceitável fazer piadas racistas para ser ofensivo sequer mencionar questões raciais. Hoje eu vou tentar me manter distante de júizos de valor sobre o que é ou não é ofensivo, o que devemos ou não dizer. A ideia é tentar entender o que se passa na cabeça de quem se ofende, reagindo ou não ao que causou essa ofensa.

Para entender um ser humano, o básico é entender que também somos humanos e não é para ter nenhuma diferença tão fundamental assim entre os processos mentais de duas pessoas distintas. Faz sentido começar de dentro para fora. Não nego que seja privilegiado por ter nascido com um conjunto de características que me blindam dos preconceitos mais “famosos”. Homem, branco, heterossexual… tecnicamente ninguém consegue me fazer sentir inferior ao apontar qualquer um desses elementos. Tenho plena consciência disso… mas já começo argumentando que cérebros seguem uma mesma lógica de funcionamento em qualquer pessoa.

Por exemplo: se você for homem ou mulher, branco ou negro, hetero ou homossexual, se removerem o pedaço do seu cérebro responsável por lidar com memória de curto prazo, você vai perder a memória de curto prazo. Não tem como fugir disso, mesmo considerando que cada ser humano tem suas peculiaridades, tanto genéticas como de desenvolvimento. Aceito o argumento que eu não tenho a experiência necessária com preconceito para saber “na pele” como é, mas se sofresse com algo parecido, podem ter certeza que eu e uma mulher negra e lésbica teríamos o mesmo processo cerebral acontecendo.

Somos diferentes, mas somos muito parecidos no projeto da máquina viva que é nosso organismo. Dito isso, eu posso não ter a experiência com me sentir ofendido da mesma forma que alguém que costuma se ofender com as palavras alheias tem, mas a cada vez que algo me deixa ofendido, posso afirmar que o processo é parecido, se não em intensidade, mas pelo menos em lógica cerebral. Por isso vou começar de dentro para fora.

Não me ofende que esse subgrupo humano ao qual eu pertenço seja demonizado sem repercussões, acho ridículo e hipócrita, mas não me ofende. Muito difícil conseguir apontar os canhões para mim e ter uma reação. O que me ofende com mais segurança é um estranho acusando uma pessoa querida minha de algo que EU acho demérito, concordando ou não, inclusive. A ofensa, até onde eu identifico, é o sentimento de incômodo e frustração com a expressão de outra pessoa, que você acredita que não deveria ter acontecido.

Irritação, tristeza, desmotivação… esses são sentimentos que se ligam ao incômodo específico da ofensa, mas são derivações do sentimento original. E no caso da ofensa, eu identifico como uma base de impotência. Tem alguém se expressando com algo que te incomoda e você não aceita que isso tenha acontecido. Quando se tem um pouco de pensamento crítico e um mínimo de segurança, isso não quer dizer que sempre desemboque em querer calar ou punir de outra forma a pessoa que expressou aquela informação incômoda. Só quer dizer que você não queria que ela tivesse feito isso. Mas, a vida tende a ser injusta de acordo com nossas vontades pessoais… para que eu possa falar o que bem entender, tenho que aceitar que o resto das pessoas deveria gozar dos mesmos direitos, certo?

O mais perto de ofendido que eu fico com a expressão alheia costuma estar relacionado com charlatanismo místico (religiões incluídas). Quando alguém aparece prometendo curas e salvações baseado na crença em algum poder obviamente fantasioso, eu sinto a ofensa pura: não quero que essa pessoa tenha o poder de comunicar aquela coisa horrível. Eu não me sinto ameaçado pelo discurso, sei que já passei do ponto de não retorno sobre crença em mágica, e no fundo nem estou tão interessado assim no bem estar coletivo. A ofensa é pessoal, é pela existência daquele discurso. E a única cura para a ofensa é o discurso deixar de existir.

De uma certa forma, a ofensa é quase psicopata: ela elimina contextos e quer “matar” a ideia que incomoda você. A ofensa está em todos nós. O que muda é que algumas pessoas querem dar vazão a essa psicopatia ideológica, outras aprendem a se controlar. Posso estar sendo polêmico aqui, principalmente aqui… mas eu acredito que existe uma “feminista histérica” dentro de cada um de nós, só mudam os contextos no qual ela é convocada para as linhas de frente da nossa mente. Sempre tem alguma coisa que quando dizem, você fica furioso(a).

Novamente, não estou fazendo juízos de valor do que pode ou não pode gerar essa fúria em mim ou em qualquer outra pessoa. Essa é uma discussão derivada do ponto que abordo hoje, que é a falta das pessoas olharem para dentro e lembrarem que são… humanas. Que o que está lá fora nos influencia, mas nem sempre justifica o sentimento diante do resto das pessoas.

Não sou contra essa cultura da ofensa porque eu sou imune a ter esses momentos de censor irracional, e sim porque eu pelo menos me esforço para buscar um meio termo entre a necessidade de lidar com o desejo interno e o que é necessário para vivermos em sociedade. Essa histeria toda com palavras, piadas e discursos é uma expressão extremamente visceral da passionalidade que todos temos. Duvido que as pessoas não ficassem putas da vida com o discurso alheio no passado, é muito natural tratar a ideia como uma entidade viva. O que parece ter mudado nessas últimas décadas é a falta de “vergonha” de dar vazão a todas essas necessidades primais, doa a quem doer.

O curioso é que na sanha por fazer justiça social, começamos a ruir algumas bases sociais, como a liberdade de expressão e o direito à individualidade. O feminismo existe faz tempo, a pessoa razoavelmente inteligente já entende que direitos iguais não passam da obrigação… mas porque a “direita alternativa” apareceu agora e não antes? Se os opressores iam lutar de volta, podem ter certeza que teriam cortado as asinhas delas logo na época do direito ao voto. Liberdade sexual não teria sequer entrado em pauta.

E feministas são apenas um exemplo dentre tantos. Num mundo onde a polarização virou a norma, talvez estejamos deixando de notar o mais básico de tudo: que quando um lado abandona o “acordo social” de não ser psicopata de ideias e deixar seu senso de ofensa correr solto, começamos um ciclo de violência intelectual que fatalmente desemboca na física. Quando as paixões humanas podem correr soltas, o caminho é justamente esse. Não é uma realização complexa, é?

Eu sei que é fácil ficar ofendido com o que alguém diz. Mas nem tudo nessa vida tem que ser o mais fácil… controlar esse ímpeto assassino ideológico que cada um de nós carregamos faz parte de viver num mundo civilizado… e justo!

Para dizer que está ofendido até agora com a minha história de quarta, para dizer que não adianta falar sério agora, ou mesmo para dizer que não leu e achou ofensivo (as coisas andam de mãos dadas): somir@desfavor.com


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